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A DITADURA MILITAR
(25/04/2009)
“Este é tempo de divisas, tempo de gente cortada... É tempo de meio
silêncio, de boca gelada e murmúrio, palavra indireta, aviso na
esquina.”
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
“Dormia
"A
nossa Pátria mãe tão distraída Sem perceber que era subtraída Em
tenebrosas transações.”
CHICO BUARQUE DE HOLLANDA
Recife, 1964. Beira da praia, brisa da noite, mansões dos usineiros.
As garrafas de champanha são abertas. Festa. Pessoas bonitas,
perfume, olhares de fêmeas, dentes brancos de alegria. As risadas
unem o gozo ao deboche. Vida longa para o novo governo! Que nunca
mais se falem em greves nem nessa maldita terra para os camponeses!
Morte aos inimigos da propriedade!
Um pouco longe dali, noite negra e silêncio. De repente, chegam os
soldados. Vasculham os casebres. Procuram os inimigos da pátria. As
pessoas simples têm medo. Precisam dormir cedo porque amanhã têm de
ir para roça cortar cana. Mas o olho continua aberto. Só a boca é
que permanece fechada.
No quartel, homens armados de fuzil automático arrastam o ancião.
Espancado em praça pública. Maxilar quebrado por uma coronhada de
rifle. Chutaram-lhe tanto os testículos, que arrebentou a bexiga.
Vai urinar sangue por quase um mês, O velho ferido está algemado. Ao
seu redor, caminhões do Exército, berros de oficiais, rádio,
holofotes, metralhadoras,
Por que tanto aparato? Por que tantos homens, tantas armas, tanta
força bruta? Por que o velhinho é tão perigoso?
Gregório Bezerra nasceu no sertão. Criancinha, viveu a fome e a
prepotência dos latifundiários. Foi quase um escravo. Brinquedo de
menino era enxada e foice, sonho de um dia comer carne-seca. Nunca
viu escola. Só aprendeu a ler e escrever com 24 anos, quando servia
o Exército - e nunca mais deixaria o orgulho de ter sido militar.
Pouca instrução, mas o conhecimento da vida e a argúcia do homem do
povo.
Um dia, entrou em contato com aquela gente estranha. Falavam coisas
que ele nunca tinha ouvido mas que, extraordinariamente, parecia já
saber. Alguns eram até doutores, mas o tratavam como igual. Muitos
dos estranhos eram como Gregório, como Severino, como José, como
tantos outros: mãos de calo, cara rasgada de sol, trabalho e
sofrimento.
Ouviu, refletiu e juntou-se a eles.
Voltava ao canavial, onde o homem perde a perna, ou o juízo, pela
picada de cobra, o golpe errado do facão, o jeito doido de o capataz
falar. Mas agora, era ele que tinha o que dizer para contar para os
seus irmãos de labuta. Nos campos, nos mocambos miseráveis, nas
portas das usinas e das fábricas, Gregório seria a voz da
consciência dos que ainda não tinham consciência, a posse dos que
nada possuíam. Ele era o homem do povo que descobre sua força e,
finalmente, se levanta. Em vez de lamentar suas misérias, ergue-se
para combatê-las.
Sabia falar a língua dos humildes e fazer as perguntas decisivas; a
quem pertence? A quem é dado? O que se deve transformar? Os homens
mais poderosos de Pernambuco o temiam. Gregório Bezerra, velho quase
analfabeto, ferido e enjaulado em 1964. Líder camponês, ex-deputado
federal, inimigo do latifúndio. E se um dia todos aqueles homens e
mulheres com as mãos grossas e rosto queimado se transformassem em
milhões de Gregórios? Era preciso evitar a qualquer custo.
Por isso, Gregório Bezerra tinha sido preso. Naquele momento, os
grandes senhores da terra comemoravam sua vitória. O reveillon de
1964 acontecia em 31 de março.
Governo
Castello Branco (1964 – 1967)
Bem que Leonel Brizola propôs ao presidente Jango resistir ao golpe
de 1964 com armas na mão, a partir do Rio Grande do Sul. Mas o
presidente, muito deprimido, não queria derramamento de sangue. Como
milhares de brasileiros, os dois também se exilaram no estrangeiro.
Enquanto isso, no Rio de Janeiro - Copacabana e Ipanema -, a classe
média se confraternizava com a burguesia. Chuva de papel picado,
toalhas nas janelas, buzinaço, banda e chope. Abraços, choro de
alegria, alívio pelo fim da desordem. O Brasil estava salvo do
comunismo! Os crioulos não invadiriam mais as casas das pessoas de
bem! As empregadinhas voltariam a ficar de cabeça baixa!
Mas nos subúrbios o medo substituía o chope. Ali, a revolução iria
procurar os "inimigos do Brasil". E quem seriam esses monstros?
Pessoas simples, enrugadas pelo trabalho duro, mas que tinham ousado
não se curvar; operários, camponeses, sindicalistas.
Nenhum banqueiro, nenhum megaempresário, nenhum tubarão foi sequer
chamado para depor numa delegacia, Eram todos homens de bem, pessoas
que amavam o próximo... principalmente se o próximo fosse um bom
parceiro de negócios.
Os soldados armados de fuzis prendiam milhares de pessoas:
dirigentes populares, intelectuais, políticos democratas. A UNE foi
proibida e seu prédio, incendiado. A CGT, fechada. Sindicatos
invadidos à bala. Nas escolas e universidades, professores e alunos
progressistas expulsos. Os jornais foram ocupados por censores e
muitos jornalistas postos na cadeia. A ordem era calar a boca de
qualquer oposição.
Os políticos que não concordaram com o golpe, geralmente do PTB,
tiveram seus mandatos cassados. Ou seja, perderam seus
direitos políticos por dez anos. O primeiro cassado, inimigo número
um do regime, foi Luís Carlos Prestes. O segundo foi o ex-presidente
João Goulart. Depois, veio uma lista de milhares de pessoas que
foram demitidas de empregos públicos, presas, perseguidas,
arruinadas em sua vida particular. Juscelino e Jânio também perderam
seus direitos, para que não tentassem nenhuma aventura engraçadinha
na política. Só a UDN não teve punidos: coincidência, não?
Os comunistas, claro, eram perseguidos como ratos. Muitos foram
presos e espancados com brutalidade. O pior é que o xingamento de
“comunista” servia para qualquer um que não concordasse com o
regime. Seria o suficiente para ser instalado numa cela, Fariam a
reforma agrária num cubículo 2 X 2 e socializariam a propriedade do
buraco no chão que servia de privada.
Para espionar a vida de todos os cidadãos, foi criado em 1964 o
SNI (Serviço Nacional de Informações). Havia agentes secretos do
SNI em quase todos os cantos: escolas, redações de jornais,
sindicatos, universidades, estações de televisão. Microfones,
filmes, ouvidos aguçados. Bastava o agente do SNI apontar um
suspeito para ele ser preso. Imagine o clima numa sala de aula, por
exemplo. Eu mesmo perguntei, certa vez, a um professor de história,
“o que ele achava” de algo que os militares haviam decretado. Ele,
apavorado, respondeu algo como: “Não acho nada! Eu tinha um amigo
que achava muito e hoje ninguém acha ele!” Eram muitos os
“desaparecidos” naqueles tempos... O professore correndo o risco de
ser detido caso fizesse uma crítica ao governo. Os alunos, falando
baixinho, desconfiando de cada pessoa nova, apavorados com os
dedos-duros. A ditadura comprometia até as novas amizades! O pior é
que o SNI cresceu tanto que quase acabou tendo vida própria,
independente do general-presidente, a quem estava ligado. Seu
criador, o general Golbery do Couto e Silva, no final da vida, diria
amargurado: “Criei um monstro.”
O novo governo passou a governar por decreto, o chamado AI (Ato
Institucional) O presidente baixava o AI sem consultar ninguém e
todos tinham de obedecer. O AI-1
determinava que a eleição para presidente da República seria
indireta. Ou seja, com O Congresso Nacional já sem os deputados e
senadores incômodos, devidamente cassados, e um único candidato.
Adivinha quem ganhou? Pois é, em 15 de abril de 1964 era anunciado o
primeiro general-presidente, que iria nos governar o Brasil segundo
interesses do grande capital estrangeiro nos próximos anos:
Humberto de Alencar Castello Branco.
Castello tinha sido um dos figurões da Sorbonne, ou seja, dos
intelectuais da ESG. A maioria de seus ministros também era oriunda
da ESG, a “Escola Superior de Guerra”, réplica nacional do “War
College” norte-americano. Tranqüilos com a vitória, os generais nem
se importaram com as eleições diretas para governador em 1965.
Esperavam que o povo brasileiro em massa votasse nos candidatos do
regime. Estavam errados. Na Guanabara e em Minas Gerais venceram
políticos ligados ao ex-presidente Juscelino Kubitschek. (Em São
Paulo não houve eleições. Seriam depois.) Mostra clara de que alguns
meses depois do golpe ainda tinha muita gente que não apoiava o
regime. Pois bem, os militares reagiram. Vinte e poucos dias depois
das eleições desastrosas, foi baixado o AI-2, que acabava em
definitivo com as eleições diretas para presidente da República.
Agora, o presidente seria “eleito” indiretamente, ou seja, só
votariam os deputados e senadores. Voto nominal e declarado, ou
seja, o deputado era chamado lá na frente para dizer, no microfone,
se votava ou não no candidato do regime. Quantos teriam coragem de
dizer, na cara dos ditadores, que não aprovavam aquela palhaçada?
Muito poucos, inclusive porque os mais ousados eram sumariamente
cassados.
O AI-2 também acabou com os partidos políticos tradicionais. O PSD,
o PTB, a UDN, tudo isso foi proibido de funcionar. Agora, só
poderiam existir dois partidos políticos: a
Arena e o MDB.
A Arena (Aliança Renovadora Nacional) era o partido do
governo. Estavam ali todos os políticos de direita que apoiavam
descaradamente a ditadura. De onde vinham? Basicamente, da UDN. Mas
também um bando de gente do PSD, do PSP de Adhemar de Barros e, por
incrível que pareça, muitos da velha guarda integralista. Apoiavam o
regime militar em tudo que ele fazia.
O MDB (Movimento Democrático Brasileiro)
era o partido da oposição consentida. A ditadura, querendo uma
imagem de democrática, permitia a existência de um partido levemente
contrário. Contanto que ninguém fizesse uma oposição muito forte. O
MDB era formado pelos que sobraram das cassações, um pessoal do PTB,
alguns do PSD. No começo, a oposição era muito tímida. Nos anos 70,
porém o MDB conseguia votações cada vez maiores para deputados e
senadores. Então seus políticos - muitos eram novos valores surgidos
na década - começaram a fazer uma oposição importante ao regime,
capitaneados pela figura do deputado paulista Ulisses Guimarães
(1916-1992) . Naqueles tempos, brincando é que se diz a verdade,
comentávamos que o MDB era o “Partido do Sim” e a ARENA era o
“Partido do Sim Senhor!”
O AI-3, do começo de 1966, determinava que as eleições para
governador também seriam indiretas. Os únicos com direito a voto
eram os deputados estaduais, que tinham de ir lá na frente e
declarar para todo mundo em quem votavam. Mais intimidação seria
impossível, não é mesmo? O circo estava todo armado para que a ARENA
governasse todos os setores da vida nacional.
A
Constituição de 1967
No Brasil, os homens da ditadura faziam questão de criar uma imagem
de que o país era um regime “democrático”. Alegavam que existia
partido de oposição e eleições para deputado e senador. Vá lá, mas
acontece que os políticos mais críticos estavam cassados e o MDB,
sob vigilância. Além disso, o Congresso Nacional ficou com os
poderes muito cerceados. Um deputado podia fazer pouca coisa além de
elogiar as praias douradas do Brasil. No fundo, quem mandava mesmo
era o general-presidente e pronto. Dentro dessa preocupação de
manter a aparência (só a aparência) de “democrático”, o regime
promulgou a Constituição de 1967, que vigorou até 1988,
quando finalmente foi aprovada a Constituição atual. Promulgar não é
bem a palavra. Porque não existiu sequer uma Assembléia
Constituinte. Os militares fizeram um rascunho do texto
constitucional e enviaram para o Congresso aprovar. Congresso
mutilado pelas cessações, nunca devemos esquecer. O trabalho era
pouco mais do que aplaudir. Trabalhos regulados por um relógio que
tocava corneta. Deputados obedientes como soldados em marcha.
Para começar, eleições indiretas para presidente da República e
governadores de Estado, Os prefeitos de capital e cidades
consideradas de “segurança nacional” (como Santos, em São Paulo, o
maior porto do país, ou Volta Redonda, no Rio de Janeiro, por causa
da gigantesca Companhia Siderúrgica Nacional) seriam nomeados pelo
governador. Em outras palavras, a Arena governaria o país pela força
da lei (e das armas, claro).
A Constituição de 1967 aumentava as atribuições do Executivo e a
centralização do poder. É por isso que havia Congresso aberto. Pela
Constituição, os deputados e senadores não podiam fazer quase nada,
a não ser discursos. Veja bem: a lei não permitia nem mesmo que o
Congresso pudesse controlar as despesas do Executivo. No país
inteiro, governadores e prefeitos também podiam gastar à vontade no
que quisessem - estradas para valorizar latifúndios, estádios de
futebol para enriquecer empreiteiras, teatros para a elite se
divertir, prédios públicos enormes para os figurões ficarem sem
fazer nada no ar condicionado. Os deputados estaduais e vereadores
não tinham poderes para impedir esses gastos.
Os governadores perderam a autonomia para gastar. Para qualquer obra
importante, tinham de pedir dinheiro ao governo federal, ou seja, ao
general-presidente. O mesmo valia para os prefeitos. Por exemplo,
vamos imaginar que na cidade X, o Fulano do MDB fosse eleito
prefeito. A maior parte do dinheiro dos impostos ficava com o
governo federal, em Brasília. O prefeito Fulano quer fazer uma
escola municipal para X. Não tem dinheiro. Tem de pedir para o
governador, que é da Arena e, certamente, recebe ordens de Brasília
para não dar nada. Agora, se o prefeito fosse da Arena, as coisas
mudavam de figura. Principalmente porque o prefeito se lembraria de
apoiar a eleição de deputados e senadores da Arena. Esqueminha
montado e quase sem furos. Dá para entender por que o regime militar
não teve medo de manter eleições para o Congresso e permitir a
existência do MDB? Era como um jogo de futebol facílimo de ganhar,
porque o juiz roubava escancarado para o lado de quem já estava no
poder...
O pior de tudo é que o regime iria fechar mais ainda. O último ato
do governo de Castello foi a LSN (Lei de Segurança Nacional).
Reprimir passava a ser sinônimo de “defender a pátria”.
A Economia no Governo Castello Branco
A primeira atitude do novo governo foi anular as reformas de base.
Criaram um Estatuto da Terra, que previa uma tímida reforma
agrária. Claro que jamais sairia do papel dos burocratas. O
latifúndio estava livre para engolir os camponeses.
A lei de 1962, que controlava remessas de lucros para o estrangeiro,
foi anulada. As multinacionais foram ofertadas com todas as
facilidades.
Os mestres do PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo) foram
os ministros Otávio Gouveia de Bulhões (Fazenda) e Roberto Campos
(Planejamento).
Para diminuir a inflação, eles aplicaram receitas econômicas
monetaristas. Trataram de tirar o dinheiro de circulação. Para
começar, cortaram os gastos públicos, ou seja, o governo investiria
menos em hospitais e escolas – já se preparava a
introdução do
ensino pago nas universidades públicas e começava-se com a política
de esvaziamento na qualidade do ensino público gratuito de boa
qualidade, valorizando mais as instituições privadas. Até
antes da
Ditadura Militar, estudar em colégios particulares era amesquinhante
demonstração de incompetência para acompanhar o elevadíssimo nível
que então o ensino público mantinha... Em 1964, tinha sido fundado o
Banco Central para controlar todas as operações financeiras do país.
Também foi criada uma nova moeda, o cruzeiro-novo.
Os salários foram considerados os grandes responsáveis pela crise
econômica do país. Claro, os operários deviam estar ganhando
fortunas e o país não poderia suportar um soldador ou torneiro
mecânico passando férias na Cote d’Azur, fazendo compras na Avenue
Montaigne, em Paris. Assim, os aumentos salariais passaram a ser
sempre menores do que a inflação. A idéia era fazer com que o
aumento de preços, por causa do crescimento dos salários, fosse cada
vez menor.
Acompanhe o raciocínio dos caras. Por exemplo, se a inflação fosse
de 30% naquele ano, a lei obrigava o patrão a conceder um aumento
abaixo daquela inflação, de só, digamos, 20%. Claro que esse patrão
iria compensar o prejuízo de ter de pagar mais salários aumentando
os preços de seus produtos e serviços. (Por isso mesmo, diziam,
existia a inflação!) Mas, em quanto? Se o salário aumentava em 20%,
o patrão poderia aumentar os preços em, digamos, 21%: teria até um
pouquinho mais de lucro do que antes. Mas o aumento geral dos preços
(por causa do salário maior em 20%, todos os empresários reagiriam
aumentando os preços em 20% e quebrados) seria perto dos vinte e
pouco por cento, e não mais os 30% anteriores, No ano seguinte, com
inflação de, suponhamos, uns 22%, o patrão poderia dar um aumento de
salário de só uns 10%. Aí os preços, para compensar esse aumento
salarial, subiriam uns 12%, por exemplo. E assim, num passe de
mágica, a inflação teria caído de 30% para 12% ao ano. Claro que
tudo isso está simplificado, mas a idéia básica era essa mesma.
Agora, não sei se você se tocou: por essa receita, os salários eram
comidos pela inflação. Em outras palavras, a ditadura militar
reduziu a inflação arrochando os salários dos trabalhadores.
Um dos recursos para diminuir salários foi a extinção da
estabilidade. Pela lei antiga, depois de dez anos numa empresa, era
quase impossível despedir um empregado. Isso acabou. No lugar, foi
criado o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), em
1966, que ainda existe mas, com os ventos ainda mais conservadores
que andam soprando neste país, tem havido uma tendência a propor a
suspensão até deste direito para os trabalhadores. Funciona assim: a
cada mês, o patrão deposita nos bancos uma parte do salário do
empregado, formando uma espécie de caderneta de poupança (outra
invenção do regime militar) chamada de FGTS, Acontece que o FGTS só
pode ser sacado em momentos especiais, como na compra de uma casa
própria ou, caso mais comum, quando o empregado é despedido. Essa
lei facilitou a vida dos empresários. Agora, despedir era tranqüilo.
Os empregados, sabendo que podiam perder o emprego a qualquer
momento, eram obrigados a aceitar salários mixurucas.
Grandes empresas (como as automobilísticas) chegaram a ser acusadas
de ter uma armação para, de vez em quando, despedir alguns operários
(logo absorvidos por outra fábrica, tudo combinado secretamente). A
rotatividade da mão-de-obra (rodando de emprego em emprego) seria um
excelente mecanismo para baixar salários.
Em princípio, o dinheiro do FGTS serviria para que o recém-criado
BNH (Banco Nacional da Habitação) financiasse casas populares. Na
prática, o que aconteceu foi que o BNH acabou financiando a
construção de condomínios de luxo para milionários. Ou seja, o
pobrezinho pagando, indiretamente, a mansão do ricaço.
Não devemos esquecer que as greves estavam totalmente proibidas. O
peão tinha de engolir quieto a pancada salarial, senão haveria outra
paulada mais dolorosa ainda. Para que os empréstimos do governo
federal e os impostos devidos a ele fossem pagos decentemente,
criou-se a correção monetária. Antes, o sujeito podia esperar
um ano para pagar impostos porque então ele pagaria uma quantia
desvalorizada pela inflação. Agora, a correção monetária
simplesmente aumentava o valor da dívida no mesmo percentual da
inflação.
Como o governo não queria emitir papel-moeda (estava combatendo a
inflação), obviamente os empresários sofreram restrições ao crédito.
Juros altos, dificuldade de obter empréstimos,
poucos investimentos.
A economia crescia pouco. Os ministros sabiam que estavam provocando
esta recessão. Achavam que era um dos remédios para baixar a
inflação. Realmente, as compras diminuíram. Reduzida a demanda
(procura), caíram os preços: outro fator deflacionário.
Para agilizar o crescimento da economia, Roberto Campos e Otávio
Gouveia de Bulhões, os ministros-gurus do PAEG,
criaram muitas
facilidades para o investimento estrangeiro. Tinham-se ido os tempos
do nacionalismo trabalhista.
Bem, e o PAEG deu certo? Para o que ele se propunha, sim, foi
bem-sucedido. A inflação caiu. O preço social disso é que representa
problema. Os economistas “iluminados” da época falavam pudicamente
no “lado perverso” das medidas econômicas.
Por que a economia voltou a se recuperar? Há várias explicações.
Para começar, os investidores estrangeiros ficaram mais tranqüilos:
não havia mais ameaça de nacionalismo, nem de greves e muito menos
de socialismo. Além disso, o novo governo tinha eliminado as
restrições ao capital estrangeiro. Assim, as multinacionais
começaram a investir em peso na construção de novas fábricas. O FMI,
feliz com o Brasil militar, também emprestou dinheiro, E nós vimos
que ajuda do FMI era uma espécie de garantia para que outros
banqueiros confiassem no país.
Uma das causas mais importantes da inflação é o descontrole da
economia: cada empresário tenta lucrar na marra, simplesmente
aumentando os preços. Vira uma corrida histérica de preços e
salários aumentando sem parar. Para reverter o quadro, deveria haver
um acordo nacional dos empresários entre si e dos empresários com os
trabalhadores. Mas Jango, no seu tempo, encontrara dificuldade em
montar o acordo. Ocorria o oposto: as lutas de classes se tornavam
mais agudas.
Obviamente, a ditadura não resolveu as coisas por consenso,
promovendo um plano com que toda a sociedade concordasse. As coisas
foram impostas na marra. Na marra principalmente sobre os
trabalhadores. Ou seja, o consenso foi obtido na base do “Ou você
concorda comigo ou entra na porrada!” De qualquer modo, a
estabilidade foi conseguida.
Quer dizer então que uma ditadura consegue estabilidade? Essa
pergunta necessita de outra: de que tipo de estabilidade estamos
falando? Quando examinamos as estatísticas econômicas percebemos que
a estabilidade teve um preço: o aumento de exploração da força de
trabalho.
Costa e
Silva (1967 – 1969)
Os militares tinham indicado e o Congresso balançou a cabeça: o novo
general-presidente era Arthur da Costa e Silva. Só a Arena
tinha votado na eleição indireta. Em vez de levantar o braço, batia
continência. O MDB, em protesto (era minoria), havia se retirado do
plenário. Com mãos ao alto.
Costa e Silva era tido como um homem de hábitos simples. Em vez da
companhia dos livros, como gostava o pedante Castello Branco,
preferia acompanhar as corridas de cavalos. Pessoalmente, diziam que
era “gente boa”. Mas se Costa e Silva queria tranqüilidade, tinha
escolhido mal o emprego. Melhor seria dar palpites no jockey.
Depois do impacto de 64, com aquela onda de prisões e fechamentos,
as oposições ao regime voltaram a se articular. Até mesmo Lacerda
tinha virado oposição. É que ele tivera esperança de se tornar
presidente, mas aqueles a quem bajulara lhe viraram as costas.
Magoado, procurou unir Juscelino e Jango, exilados, numa Frente
Ampla. Pouco resultado daria. Longe do país, tinham pouca
influência.
Apesar do PAEG de Castello diminuir a inflação e retomar o
crescimento, a situação da classe operária vinha piorando.
Em 1965,
os operários paulistas ganhavam, em média, apenas 89% do que
recebiam em 1960, em 1969, apenas 68%. Estava ficando feia a coisa.
Os anos 60 formaram a grande década revolucionária. Os anos da
minissaia, dos homens de cabelo comprido, da pílula
anticoncepcional; da guerra do Vietnã, dos hippies, do feminismo; da
Revolução Cultural na China, da Primavera de Praga, dos Beatles, dos
Rolling Stones, de Jimi Hendrix e Janis Joplin, do LSD, do
psicodelismo, das viagens à Lua; de Kennedy, Krutchev e Mao Tsetung;
do cinema de Godard, Pasolini e Antonioni; das idéias e dos livros
de Sartre, Marcuse, Althusser, Hermann Hesse, Erich Fromm e Wilhelm
Reich; dos transplantes de coração, dos computadores e do amor
livre, de Bob Dylan, Jim Morrison e Martin Luther King; de "Paz e
Amor", Woodstock e Che Guevara.
Especialmente, 1968. Trabalhadores e estudantes se levantaram
no mundo inteiro. Em Paris, cidadela do tranqüilo capitalismo
desenvolvido, os operários fizeram greve geral e os estudantes
jogavam pedras na polícia. Nos muros da capital francesa, os
grafites anunciavam o novo mundo: “É proibido proibir”, “A
imaginação no poder!”, “Amor e revolução andam juntos”. Nos EUA,
atacava-se o racismo. Tempos de Martin Luther King e de Malcolm X,
grandes líderes negros. Os estudantes norte-americanos também
sonhavam com socialismo e milhares deles protestariam contra o
absurdo de a máquina de guerra ianque agredir o povo do Vietnã. Na
América Latina, sonhava-se com guerrilhas libertadoras. Na
Tcheco-Eslováquia, aconteceu a Primavera de Praga: os comunistas,
liderados por Dubcek, tentaram construir o socialismo humanista.
Na China Popular, o camarada Mao Tsetung estimulava a Revolução
Cultural. A Cuba revolucionária de Fidel Castro e Che Guevara
mostrava o caminho para os jovens latino-americanos: guerrilha,
revolução popular, socialismo “Hasta la victoria compañeros!”
(Até a vitória companheiros!) No Brasil, a luta era contra uma
ditadura militar e um capitalismo troglodita. Desafiando abertamente
o regime, os operários fizeram greve em Contagem (Minas Gerais).
Pouco depois, pararam os metalúrgicos de Osasco (São Paulo).
O governo militar, através da Lei Suplicy, quis impedir que os
estudantes se organizassem. O maldito acordo MEC-Usaid previa a
colaboração dos técnicos americanos na reformulação do ensino
brasileiro. E o que os ianques propunham? Acabar com as discussões
políticas na universidade: estudante deveria apenas ser mão-de-obra
qualificada para atender as multinacionais aqui instaladas. Além
disso, o governo queria que o ensino superior fosse pago. Ou seja,
faculdade só para minoria de classe média alta para cima.
Mas a UNE estava lá para lutar contra. Época gloriosa do movimento
estudantil. Coragem, sonhos libertários, utopia na alma. A juventude
queria o poder no mundo! Os estudantes iam para a rua contra um
governo que esculhambava a universidade pública, contra um regime
militar. Apesar de proibidas, suas passeatas nas ruas atraíram cada
vez mais participantes, de operários e boys a donas de casa e
profissionais liberais. A grande imprensa chamava-os de “infantis”,
“toxicômanos”, “desequilibrados”. A polícia atacava. Cassetetes, gás
lacrimogêneo, caminhões brucutu. Eles respondiam com pedras, bolas
de gude (contra a cavalaria da PM), coquetéis molotov e idealismo.
Os principais líderes estudantis estavam no Rio de Janeiro: Vladimir
Palmeira e Luís Travassos.
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Voltando no tempo... Imagine que você, com sua idade atual, acaba de voltar no
tempo. Estamos em 1968, no Rio de Janeiro. Em que é que você está pensando? O
que é que você faz no dia-a-dia?
Imagine que você é de classe média e está se preparando para o vestibular.
Assustador. A faculdade tem vagas reduzidas. Aliás, essa é uma das bandeiras do
movimento estudantil: alargar o funil que desemboca na universidade. Que curso
você vai seguir? A maioria quer ser engenheiro, médico, advogado. Mas tem gente
que quer conhecer o Brasil para transformá-lo: vão estudar sociologia, história,
filosofia e até economia. Um amigo seu diz, brincando, que tem um professor de
sociologia da USP que um dia ainda vai ser presidente da República.
Na faculdade, quem não é de esquerda está por fora. Claro que há uma povão de
gente alienada, que nem dá bola para o que acontece no país. Mas você e seus
amigos são conscientizados. O problema é que existe uma floresta de partidos e
grupelhos de esquerda: PC do B, AP, Polop, Dissidência na Guanabara e tantos
outros (sigla era um troço importante naquela época). Só não vale o PCB, que não
é bem visto pela garotada, que o chama de “Partidão”. Parece com um velho sábio
que não dá mais no couro. Na verdade, o fato de o PCB não aceitar a luta armada
contra o regime tira o charme dele. Afinal, todos temos pôster de Che Guevara e
Ho Chi Minh na parede de casa e gostamos de nos imaginar na selva entre os
camponeses, com idéias na cabeça e um fuzil na mão.
As pessoas lêem o suficiente para não se sentirem alienadas. Estamos em 1968 e
alguns autores são obrigatórios: Leo Huberman, Engels, Lênin, Nélson Werneck
Sodré, Caio Prado Jr, Moniz Bandeira e o famoso manual marxista de Politzer.
Quem não leu, ouviu falar. O que é suficiente para participar de um debate, que
é o que mais interessa. Para os mais metidos a espertos, cabe citar Marcuse,
Althusser, Gramsci e Erich Fromm.
No corredor da faculdade, vocês discutem política. Baixinho, mas escancarado
(até 1968 ainda dava para fazer isso). De um lado, os que acham que primeiro
devem organizar os trabalhadores para depois partir para luta armada, do outro,
os que acham que a luta armada organizará os trabalhadores. Isso mesmo que você
está lendo: na cabeça do pessoal, a revolução está ali na esquina. É só pegar.
Hoje tem passeata convocada pela UNE. Na faculdade, pintamos as faixas com os
dizeres manjados como “Abaixo a ditadura” e o provocativo “Povo armado derruba a
ditadura”. Vamos para a passeata? É um problema. Sua mãe tem medo, seu pai (na
época, é claro, lembre-se de que estamos em 68) apoiou o golpe. Melhor ir
escondido. Se você é mulher pior, porque tudo é proibido: freqüentar boate,
beber, chegar em casa tarde da noite, viajar com o namorado e, óbvio, ir à
passeata. Portanto, mais uma que vai escondida alegando que ia “ficar na
biblioteca estudando”.
Lá está você com o pessoal, no centro da cidade. Gritando palavras de ordem
contra o regime. Dos edifícios, papel picado e aplausos. O apoio dos escritórios
te enche de autoconfiança e você realmente se sente fazendo algo de importante
na história do Brasil. Na cabeça, o grande hino da época, Pra não dizer que
não falei das flores, de Geraldo Vandré: “Vem, vamos embora / que esperar
não é fazer / quem sabe faz a hora / não espera acontecer”...
De repente, chegam os homens. Marcham juntos, compactos, uma massa sem
indivíduos. É a polícia. Escudo, cassetete de madeira, capacete protegendo o
miolo mole. Corre que eles estão vindo! Dá tempo de pixar o muro com o spray
“Abaixo a repressão!” Sai fora. O cheiro de gás lacrimogêneo incomoda. Hora de
botar a pastilha de Cebion debaixo da língua, lenço molhado no nariz. O pau
cantou! Contra a violência cega, a consciência estudantil, contra a brutalidade
do Estado, pedradas, xingamentos e alma libertária transbordando.
Não há graça nenhuma. Tem gente que sai com o rosto ensopado de sangue,
hematomas pelo corpo, dentes quebrados, Muitos são presos e empurrados para o
carro coração de mãe. Haja claustrofobia. Seguirão para a delegacia, para serem
fichados, humilhados e levar uns cascudos. Só no final do ano é que a polícia
começa a atirar para matar.
Se você não apanhou muito nem foi preso, dá para chegar num barzinho no começo
da noite, Depois de uns chopes, ou cuba-libre (rum com Coca-Cola), todo mundo
ficava animado para contar pela décima vez suas proezas, sempre um pouquinho
exageradas, é claro. Você pode estar interessado(a) numa pessoa, num cara ou
numa menina. (Mas não há duplo sentido: o homossexualismo não era tolerado nem
pela esquerda. Ser bicha era quase sinônimo de ser contra-revolucionário. Muitos
guerrilheiros machos se remoeriam de culpa pelos anônimos desejos
inconfessáveis. Só no final dos anos 70 as mentalidades começaram a mudar.) Pois
bem, se você estivesse a fim de alguém, logo trataria de falar alto para
aparecer. Essas coisas não mudaram demais desde então, não é mesmo? Um bom
caminho era se mostrar intrépido no combate aos policiais e, ao mesmo tempo,
estar por dentro das últimas novidades culturais.
No cinema, contavam muito os filmes intelectualizados. O esquema de Hollywood,
bajulando atores e espetáculos, não estava com nada. Pelo menos nos
papos-cabeça. O negócio era filme de diretor-autor. Antonioni (Blow-up, 1967, e
, Zabriesky Point, 1969), Jean-Luc Godard (A Chinesa, 1967), Pasolini, Bergman,
Visconti, Fellini e o nosso Glauber Rocha (Terra em Transe, 1967, Dragão da
Maldade contra o Santo Guerreiro, prêmio de Cannes 1969 como melhor diretor), É
claro que também se via muita coisa comercial... Aí as estrelas eram Marlon
Brando, Richard Burton, Marilyn Monroe, Sophia Loren, Jane Fonda, Paul Newman,
Marcelo Mastroiani, Alain Delon e, claro, Jane Fonda, que depois de posar nua
virou militante contra a Guerra do Vietnã.
Em literatura, a turma gostava de coisas engajadas como obras de Brecht,
Maiakovski, Pablo Neruda, Gorki, Sartre. Mas também valia Franz Kafka, o judeu
tcheco que escrevia em alemão sobre o absurdo da sociedade burocrática. O
americano Henry Miller descrevia o sexo com uma crueza tão violenta que achavam
que era arte. Quem já gostava de misticismo lia Hermann Hesse.
Claro que ninguém era um chato de ir a um bar e ficar conversando sobre coisas
intelectuais e políticas o tempo inteiro. Isso só existe em série da Globo. As
pessoas também dançavam, iam a festas, bebiam além da conta, namoravam, iam às
compras, estudavam para as provas.
Toda menina moderninha falava de amor livre. Anticoncepcional era a pílula da
moda. Entretanto, mesmo entre o pessoal de esquerda, havia muito
conservadorismo. A maioria das moças casaria virgem mesmo e, no máximo,
permitiriam algumas carícias avançadas. Mulher que transasse com alguns caras
era vista como “galinha”, e certamente ninguém iria querer algo mais “sério” com
elas. Como já
ensinava
Maquiavel no Renascimento italiano, os preconceitos têm mais raízes do que os
princípios.
O fechamento do regime (mais ainda!)
A esquerda voltava a crescer no Brasil. Nas ruas, as passeatas contra o regime
militar começavam a reunir milhares de pessoas em quase todas as capitais.
Diante disso, a direita mais selvagem partiu para suas habituais covardias.
Aliás, covardia era a especialidade da organização terrorista de direita CCC
(Comando de Caça aos Comunistas). O nome já diz tudo. Consideravam que a
esquerda era feita por mamíferos a serem abatidos. Os trogloditas, então,
atacaram os atores da peça Roda Viva, de Chico Buarque, em São Paulo,
Surraram todo mundo, inclusive a atriz Marília Pêra. Depois, metralharam a casa
do arcebispo D. Hélder Câmara, em Recife (alguns membros da Igreja Católica
estavam deixando de bajular o regime). Em São Paulo, os filhinhos-de-papai da
Universidade Mackenzie (onde nasceu o CCC) agrediam os estudantes da USP, na rua
Maria Antônia, valendo desde pedradas até tiros de revólver.
De acordo com o jornalista Zuenir Ventura, o fanático brigadeiro João Paulo
Burnier elaborou um plano criminoso, o Para-Sar. Uma loucura: os pára-quedistas
da aeronáutica, secretamente, pegariam os inimigos do regime e jogariam do avião
no mar alto, a uns 40 quilômetros da costa. Além disso, havia o projeto de
explodir o gasômetro do Rio de Janeiro, começo da avenida Brasil, área
industrial e de trânsito engarrafado. Morreriam umas 10 mil pessoas queimadas.
Tragédia nacional. Burnier botaria a culpa nos comunistas e, com a população
querendo o linchamento dos responsáveis, prenderia os esquerdistas e os
executaria sumariamente. Que coisa diabólica, não? Só não se concretizou graças
à bravura e ao patriotismo de um militar da aeronáutica: o grande brasileiro
capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, o Sérgio Macaco. A operação teve de
ser cancelada. Mas o capitão Sérgio foi afastado da Aeronáutica.
A greve operária de Contagem terminou com acordo salarial entre patrões e
empregados: Mas em Osasco a coisa foi diferente. Ela tinha sido bem melhor
preparada, inclusive com participação de estudantes esquerdistas na organização
do movimento. O governo então falou grosso. O sindicato dos metalúrgicos foi
invadido e o presidente, José Ibraim, teve de se esconder da polícia. O exército
preparou uma operação de guerra e ocupou as instalações industriais. A partir
daí, quem fizesse gracinha de greve teria de enfrentar os blindados e fuzis
automáticos. Ou seja, as greves acabaram.
Contra os meninos e meninas do movimento estudantil, foram lançados homens
armados até os dentes. Agora passeata começava a ser dissolvida a bala. No
Calabouço, um restaurante carioca freqüentado por estudantes, a polícia militar
assassinou um rapaz, Édson Luís. Nem a missa de sétimo dia, na catedral da
Candelária, foi
respeitada pela
polícia, que baixou o sarrafo nas pessoas que saíam do templo. Em resposta, a
maior passeata já vista na avenida Rio Branco: a célebre Passeata dos Cem Mil
(26/6/1968). Era a multidão, bonita, vigorosa, olhando para a vida, exigindo a
mudança.
Os militares estavam apavorados. Até onde aquilo tudo iria levar? Concluíram que
precisavam endurecer mais ainda o regime. E endureceram. As passeatas de
estudantes passaram a ser reprimidas pelas próprias Fonas Armadas e muitos
estudantes foram baleados. Agora, em vez do cassetete, vinha o fuzil automático.
O congresso secreto da UNE, em Ibiúna (SP) foi dissolvido, com 1240 estudantes
presos.
O pior estava por vir. Faltava só o pretexto.
No Congresso Nacional, o jovem deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, fez um
discurso em que recomendava que as mulheres não namorassem os militares
envolvidos com as violências do regime. O que seria do país, se os oficiais não
namorassem? Ficariam com o fuzil na mão? Os generais exigiram sua punição, mas o
Congresso não permitiu.
Foi, então, que saiu o Ato Institucional nº 5, o
AI-5, numa sexta-feira, 13 de dezembro de 1968. Claro que o caso do deputado
era só desculpa. Tratava-se, na verdade, de aumentar a repressão e silenciar os
opositores.
O AI-5
foi o principal instrumento de arbítrio da ditadura militar. Com ele, o
general-presidente poderia, sem dar satisfações a ninguém, fechar o Congresso
Nacional, cassar mandatos. de parlamentares (isto é, excluir o político do cargo
que ocupava, fosse senador, governador, deputado etc.), demitir juízes,
suspender garantias do Poder Judiciário, legislar por decretos, decretar estado
de sítio, enfim, ter poderes tão vastos como os dos tiranos.
Tem gente que chega a falar do “golpe dentro do golpe”. Se a ditadura já era
ruim, agora ela piorava.E muito!
A oposição parte
para a luta armada
O que significa viver sob uma ditadura militar? É exagerado achar que a toda
hora tem tanque na rua, soldados desfilando dentro das faculdades. Aparentemente
não muda muita coisa, porque você vai às compras, ao dentista, à praia e ao
cinema, namora e casa, vê televisão. A não ser o fato de que seu vizinho é
oficial do Exército e você sabe que por isso ele manda aqui no prédio (e isso
pode ser até bom para a vizinhança), o resto parece bem normal. Mas, se você
tiver um pingo de consciência, desconfia que as coisas não vão bem. Existe um
cheirinho de esquisitice: as pessoas falam baixo, há uma nuvem de mistério
cobrindo o país, o estômago fica pesado demais.
Depois de 1964 ainda dava para fazer umas passeatazinhas e desafiar o regime.
Depois do AI-5 (dezembro de 1968) o regime tinha fechado de vez. Passeata era
dissolvida a tiros de fuzil. Em cada redação de jornal havia um imbecil da
polícia federal para fazer a censura, Não poderia sair nenhuma notícia que
desagradasse ao governo. Uma simples reportagem esportiva sobre o time do
Internacional de Porto Alegre, com sua camisa vermelha, poderia ser encarada
como “propaganda da Internacional Comunista”. Além da censura, o jornal não
podia dizer que tinha sofrido a censura (isso, claro, também era censurado). O
jeito foi botar receitas de bolo nos vazios deixados pelas partes retiradas pela
polícia. As pessoas estavam lendo uma página sobre política nacional e, de
repente, vinha aquela absurda receita para fazer uma torta de abacaxi. Os
espertos sacavam logo que era um protesto. Os mais ingênuos (por conivência ou
conveniência, chegavam a mandar cartas para as redações dos jornais, pois as
receitas, por vezes, eram irracionais: “cinco quilos de açúcar, 100 g de farinha
de trigo, dois quilos de sal, vinte tabletes de fermento, uma colher de chá de
suco de laranja...” Não há receita que dê certo assim, hehehe. Claro que existem
ainda hoje ingênuos ainda mais imbecis, que declaram coisas como: “naquele tempo
o governo era muito melhor do que hoje. Bastava abrir os jornais, eles só tinham
elogios para o governo. Aliás, também tinham receitas de bolo muito boas.”
Ninguém podia falar mal do governo. Reclamação na fila do ônibus era uma linha
até à cadeia. Estudantes e professores que conversassem sobre política poderiam
ser expulsos da escola ou da faculdade, devido ao decreto-lei nº 477 (1969),
Imagine o clima dentro da sala de aula. Se o professor contasse aos alunos o que
você está lendo neste livro, corria o sério risco de não poder voltar mais à
sala de aula. Ou mesmo para a sua própria casa...
_ O que você acha da situação atual?
_ Eu não acho nada! Tinha um amigo que achava muito e hoje ninguém acha ele! To
fora!
(a imagem ilustrativa foi excluída, por conter malware)
Qualquer aluno novo que tentasse se enturmar era logo suspeito de pertencer ao
SNI. Veja que coisa, a ditadura tolheu até as novas amizades!
O político que fizesse oposição aguda seria logo cassado pelo AI-5. Foi o caso,
por exemplo, do deputado federal Francisco Pinto (MDB), punido em 1974 porque
fez no Congresso um discurso chamando de “ditador” o ditador chileno Pinochet em
visita ao Brasil,
o deputado Lysâneas Maciel (MDB) solicitou a criação de uma
CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para apurar denúncias de corrupção no
regime. Não teve CPI nenhuma e ele ainda foi cassado. É isso aí: numa ditadura,
a sociedade não pode fiscalizar o governo. Os cidadãos estão enjaulados, mas a
corrupção está livre.
Com tantas dificuldades, como continuar fazendo oposição ao regime? Para muitos
jovens, só havia um caminho a seguir: a luta armada.
Falar em guerrilha nos anos 60 arrepiava muita gente. Ela parecia ser a grande
arma de libertação dos povos do Terceiro Mundo. Exemplos não faltavam. Em Cuba,
Fidel Castro e Che Guevara abriram o caminho: No Vietnã, os guerrilheiros de Ho
Chi (Minh derrotavam a maior máquina de guerra do planeta, a do imperialismo
norte-americano. Na Argélia, os guerrilheiros dobraram as tropas francesas e
conquistaram a independência do país. Na própria China, a revolução socialista
foi vitoriosa depois de anos de guerrilha camponesa comandada por Mao Tsetung.
No Brasil não poderia ser diferente: muitos estudantes, velhos militantes da
esquerda e intelectuais começaram a organizar grupos guerrilheiros. Para eles,
depois do AI-5 não havia mais espaço para a legalidade. Só a luta armada
libertaria o Brasil.
Ao contrário do que você possa pensar, o PCB foi contra a luta armada. Os
comunistas acreditavam que a luta no momento não era nem socialismo nem reformas
básicas, mas pelo fim do regime autoritário. Sua estratégia era a de se unir a
todos os grupos democráticos contra o regime. Atuaria, clandestino, no MDB.
Muita gente da esquerda considerou esse programa covarde, reformista (um
xingamento horroroso, pois isso equivaleria a não ser um revolucionário. Mas
naquele momento os comunistas eram qualquer coisa, menos revolucionários...). A
juventude queria a mudança logo, a todo preço. E foram esses jovens, garotões e
meninas, adolescentes ainda, estudantes e sonhadoras, que embarcaram na aventura
da luta armada.
Um dos grandes gurus era o francês Regis Debray, que tinha sido companheiro de
guerrilha de Che Guevara. Foi ele que lançou a teoria foquista: meia dúzia de
combatentes criariam um foco guerrilheiro numa área rural. Primeira etapa, o
treinamento militar. Depois, contato com a população. Ganham a confiança através
do trabalho, da honestidade, de solidariedade. Imagine o efeito disso: o
camponês jamais viu um médico e, de repente, aquelas pessoas o tratam com
cuidado, curam seus filhos. Nesse processo, os guerrilheiros vão transmitindo
suas idéias, mostrando que o latifúndio deveria ser confiscado, que os
camponeses precisam se unir e se armar. E quando chegam os jagunços do
fazendeiro, os guerrilheiros estão prontos para responder com fogo de armas de
guerra, Pronto, está deflagrada a luta. Agora, junto com os camponeses que
aderem ao movimento, eles se lançam para o mato. O Exército chega logo depois,
quase sempre truculento: tortura moradores, incendeia barracos, molesta as
meninas. O povo vê com clareza quem está do lado dele. Os guerrilheiros, por sua
vez, nunca enfrentam o Exército de frente. As táticas incluem emboscadas, ações
rápidas e fulminantes. Depois, a fuga veloz: sua mobilidade e ataques de
surpresa são armas letais. Conhecem a região, contam com o apoio logístico dos
moradores. Quase invencíveis. Mas este é um foco. A teoria foquista imaginava
que surgiria outro foco ali, e mais outro adiante, e outro, e outro. Até que um
dia esses focos começariam a se unir para compor um grande exército popular. Tal
como ensinou Mao Tsetung, o campo cercaria a cidade. E a revolução seria
vitoriosa.
Simples, não? É, simples demais para dar certo: havia muitos sonhos e pouco pé
no chão. Como fazer guerrilha camponesa num país em que a maioria já vivia na
cidade? Bem que o sinal de alerta já havia sido dado: em 8 de outubro de 1967,
Che Guevara foi assassinado pela CIA, quando organizava um foco guerrilheiro na
Bolívia. Não era um aviso de mau agouro?
Desde 1968 já existiam ações guerrilheiras. Mas o grosso mesmo foi entre 1969 e
1973. Havia um cacho de grupos de luta armada, diferentes nos objetivos e nas
estratégias, embora no final todos visassem ao socialismo (já se disse que as
esquerdas só se encontram na cadeia...). Uns achavam que primeiro era preciso
derrotar a ditadura, outros achavam que já era possível lutar imediatamente pelo
socialismo; uns achavam que primeiro era preciso organizar os trabalhadores e
depois se lançar na guerrilha, outros achavam que através da luta guerrilheira
os trabalhadores iriam se organizando; uns achavam que a guerrilha urbana era a
mais importante, outros, que era a rural.
Não vamos estudar as minúcias das organizações. Basta dar uma idéia geral de
como funcionavam as mais importantes: VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), o
MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro), a ALN (Ação Libertadora
Nacional), o PCBR (PCB Revolucionário), o PC do B, a VAR-Palmares.
Quem eram esses guerrilheiros? Não eram muitos, apenas algumas centenas. Os
simpatizantes, que eventualmente podiam esconder alguém em casa ou contribuir
com dinheiro, não iam além de uns mil e poucos. Apesar de sonharem com a
revolução proletária, havia poucos operários ou camponeses. Os líderes
geralmente eram antigos comunistas, rompidos com o Partidão porque o PCB estava
contra a luta armada. Ainda tinha um grupo importante de militares desertores do
Exército. Muitos guerrilheiros eram como talvez você seja, amigo leitor, com 17
ou 18 anos de idade, estudantes secundaristas ou acabando de entrar na
faculdade.
A maioria dos guerrilheiros foi presa antes de começar a luta armada no campo.
Na verdade, a guerrilha ficou sendo urbana mesmo, sem repercussão maior. Houve
algumas tentativas de panfletar na porta de fábricas, e um grupo chegou a levar
um caminhão cheio de comida para distribuir na favela, anunciando aquela como “a
primeira das muitas expropriações revolucionárias que o povo fará daqui em
diante”. Pura ilusão. A repressão do governo agia com muita eficácia e
rapidamente os grupos foram desmantelados. No final, tinham de assaltar bancos
para levantar fundos para a luta e seqüestrar embaixadores em troca da
libertação de presos políticos.
Desde o início a guerrilha já tinha muitos erros. Para começar, os guerrilheiros
consideravam-se marxistas, mas quase nada tinham lido a respeito. Ninguém tinha
feito uma análise profunda da sociedade brasileira para ter certeza de que
aquela era a melhor estratégia a ser seguida. Por exemplo, sonhavam com uma
guerrilha camponesa num país enorme que já era urbano e industrial. Queriam
buscar seus próprios caminhos políticos, mas no fundo imitavam modelos de outros
países, como Cuba e China. Falavam em nome dos trabalhadores, mas jamais tiveram
um contato maior com a população. O povo, dominado pela propaganda oficial e
pela imprensa censurada, os ignorava ou os tratava como bandidos,
seqüestradores, assaltantes de banco, “terroristas”. Viviam tão fora da
realidade, que só faltaram dizer que as vitórias do governo, pulverizando a
guerrilha, eram “a mostra do desespero da burguesia em sua crise final”.
Coitados, eram rapazes e moças que nunca tinham visto um revólver na vida
enfrentando um Exército profissional bem equipado e com assessoria dos EUA. Nem
dava para começar.
A única tentativa que teve alguma consistência foi a
Guerrilha do Araguaia. Ela se desenvolveu mais ou menos entre 1972 e 1974,
organizada pelo PC do B. Lembremos que, na época, ao contrário do PCB (que era
de linha soviética e contra a luta armada) o PC do B seguia o socialismo chinês
(o maoísmo) e apoiava a guerrilha. Pois bem, no começo dos anos 70, grandes
empresas do Sudeste e multinacionais investiram em pecuária extensiva na região
do Tocantins-Araguaia. Quando chegaram lá, já havia pequenas roças na mão de
camponeses posseiros (não tinham documentos legais da propriedade da
terra, apesar de trabalharem nelas havia muitos anos). Nem quiseram saber,
passaram a fazer grilagem das terras (tomar ilegalmente). Quando o
camponês não queria abandonar a terra, os capangas da empresa iam lá, ateavam
fogo no barraco, destruíam a plantação, espancavam os moradores. Como você pode
perceber, as lutas de classes entre os grileiros e os posseiros eram muito
fortes. O PC do B quis aproveitar esse potencial de revolta e chegou na
região para montar uma base de treinamento. Foram descobertos pelo Exército, que
deslocou para região milhares de soldados. Contra uns 60 guerrilheiros. Numa
região isolada do país, imprensa censurada, as pessoas só sabiam alguma coisa
através de boatos. Mas na região do Araguaia até hoje as pessoas humildes se
recordam do que aconteceu. Muitos militares abusaram do poder e espancaram
brutalmente a população para que revelasse os esconderijos dos guerrilheiros. Os
prisioneiros eram torturados de forma bárbara e muitos encontraram a morte
depois que o corpo virou uma massa de pedaços de carne e sangue. Os
guerrilheiros mortos foram enterrados em cemitérios clandestinos e até hoje as
famílias procuram seus corpos. Em 1974, a guerrilha do Araguaia estava
destruída.
O que dizer sobre essa loucura toda? Foram rapazes e moças, muitos ainda
adolescentes, que tiveram a coragem de abandonar o conforto do lar, a segurança
de uma vida encaminhada, a tranqüilidade da vida de jovem de classe média, para
combater um regime opressor com armas na mão. Pessoas que dão a vida pelo ideal
de libertação de seu povo não podem ser consideradas criminosas. Mesmo que a
gente não concorde com os caminhos trilhados. Eles mataram? Certamente. Mas
nunca torturaram. Nem enterraram suas vítimas em cemitérios clandestinos. E se o
tivessem feito, nada disso justificaria a tortura e o assassinato executados
pelo governo. Além disso, seria mesmo inadmissível pegar em armas contra
um regime antidemocrático que esmagava o povo brasileiro? Que moral uma ditadura
tem para definir como deve ser combatida?
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Repressão e
Tortura
“Ou então cada paisano e cada capataz Com sua burrice fará jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades, caatingas
E nos gerais”
CAETANO VELOSO
Como é que a
ditadura conseguiu dizimar a guerrilha? A repressão foi selvagem.
Imagine que você fosse um guerrilheiro naquela época. Documento falso, revólver
escondido na cintura, olhar assustado para qualquer pessoa da rua. Distante da
família, dos amigos, de qualquer conhecido. Clandestino. Codinome, ou seja, nome
inventado, nem os companheiros sabiam sua identidade. Se fossem presos, não
poderiam te revelar. Vocês se escondem num apartamento discreto no subúrbio. E
mudam de residência quase todo o mês. Esse esconderijo é chamado de “aparelho”.
Um dia, você tem um ponto, ou seja, um encontro marcado com outro guerrilheiro.
Ele não aparece. Provavelmente, caiu (foi preso). Em algumas horas, debaixo de
paulada, pode ser que ele abra. Os meganhas logo vão chegar. É preciso desativar
o aparelho rápido. De repente, chega a polícia. Tiroteio. Mortes. Se você
escapar com vida, vai direto para o porão. Agora sim, você vai sentir na pele a
face mais negra do regime. A tortura.
Não houve guerrilheiro preso que não fosse barbaramente torturado. Ficar
pendurado no pau-de-arara (um cavalete em que o sujeito fica preso pela barra
que passa na dobra do joelho, com pés e mãos amarrados juntos) é um dos piores
suplícios. Além disso, pontapés, queimaduras de cigarros, choques elétricos,
alicates arrancando os mamilos, banhos de ácido, testículos amassados com
alicate, arame em brasa introduzido pela uretra, dente arrancado a pontapés,
olhos vazados com socos. Mulheres estupradas na frente dos filhos, homens
castrados. A lista de atrocidades é infindável.
Os torturadores são animais sádicos. Mas além da maldade pura e simples, havia a
necessidade estratégica: a tortura extraía confissões em pouco tempo, dando
oportunidade de prender outras pessoas, que também seriam torturadas, revelando
mais coisas e assim por diante. Infelizmente, a tortura revelou-se bem eficaz.
Houve muita gente, entretanto, que nada falou. Veja bem, amigo leitor, bastava
contar tudo que a tortura acabaria. Essa era a diabólica proposta. Imagine-se no
lugar do preso, apanhando feito um cão, nu, sangrando, com a cabeça enfiada num
balde cheio de fezes e vômito dos outros. Algumas frases e você seria mandado
para um hospital. No entanto, muitos não falaram. Bravamente, recusaram-se a
colaborar com a repressão.
Morto sob tortura tinha o caixão lacrado para ninguém ver o cadáver arrebentado.
O laudo oficial do IML, emitido por médicos venais comprometidos com a ditadura
dizia friamente que a morte tinha ocorrido “em tiroteio com a polícia”.
Uma geração que pagou um alto preço por seus sonhos: pagou com o próprio sangue.
Por isso, amigo leitor, se hoje eu posso escrever essas linhas, se hoje você
pode dizer o que pensa, saiba que entre os responsáveis por nossa liberdade
estão aqueles que deram sua vida para que um dia o país não estivesse mais sob o
jugo das botas da tirania.
Mas, afinal, quem eram os torturadores? Onde as pessoas eram torturadas? Ao
contrário do que se possa pensar, a tortura não era feita em algum lugar
escondido, uma casa de subúrbio ou uma fazenda afastada de tudo. Não,
infelizmente as pessoas eram torturadas em lugares públicos, na frente de muitas
testemunhas. Como Mário Alves, dirigente do PCBR, torturado até a morte
nas dependências do Primeiro Batalhão de Polícia do Exército, na rua Barão de
Mesquita, Tijuca, Rio de Janeiro. Reparou no local? Um quartel do Exército! Como
também aconteceu em delegacias, em bases da Marinha. Através da Operação
Bandeirantes (OBAN), do DOI-CODI, dos Serviços de Informação das Forças Armadas
(CENIMAR, CISA, CIEX), do DOPS e do SNI, o governo exterminou a guerrilha com
brutalidade.
Claro que a maioria dos militares não teve nenhum envolvimento com a tortura.
Muitos sequer sabiam que ela estava acontecendo. Mas é inegável que os
torturadores ocupavam importantes posições no aparelho repressivo do Estado:
eram policiais civis, PMs, agentes da polícia federal, delegados, oficiais e
sargentos da Marinha, do Exército, da Aeronáutica, médicos que avaliavam a saúde
da vítima e autorizavam a continuação da tortura.
Muito triste é saber que alguns desses monstros permanecem na polícia, nas
Forças Armadas e que foram anistiados pelo general Figueiredo em 1979. Neste
país, jamais um torturador sentou no banco dos réus.
A ditadura não se manteve só com violência física. Ela soube se valer de uma
propaganda ideológica massacrante. Numa época em que todas as críticas ao
governo eram censuradas, os jornais, a tevê, os rádios e revistas transmitiam a
idéia de que o Brasil tinha encontrado um caminho maravilhoso de desenvolvimento
e progresso. Reportagens sobre grandes obras do governo e o crescimento
econômico do país convenciam a população de que vivíamos numa época incrível.
Nas ruas, as pessoas cantavam: “Ninguém segura esse país.”
Os guerrilheiros eram apresentados como “terroristas”, “inimigos da pátria”,
“agentes subversivos”. Qualquer crítica era vista como “coisa de comunista”, de
“baderneiro”. Houve até quem chegasse ao cúmulo de acusar os comunistas de
responsáveis pela difusão das drogas e da pornografia!
O futebol, como não poderia deixar de ser, foi utilizado como arma de propaganda
ideológica. Na época, a esquerda se perguntava: “O futebol aliena os
trabalhadores, é o ópio do povo?” E houve até quem torcesse para que o Brasil
perdesse a Copa: como se o trabalhador brasileiro precisasse de uma derrota no
jogo de futebol para realmente se sentir oprimido! Ou seja, quem estava
supervalorizando o futebol: o povão ou a esquerda? De qualquer modo, meu amigo,
aquela seleção brasileira de 1970 foi simplesmente o maior time de futebol que
já existiu. Pelé, Tostão, Jairzinho, Gérson, Rivelino, Clodoaldo, Carlos Alberto
Torres, seus craques são inesquecíveis. O tricampeonato conquistado na Copa do
México encheu o país de euforia. Nas casas (pela primeira vez a Copa foi
transmitida ao vivo pela televisão) e ruas o povo explodia de alegria e cantava:
“Todos juntos, vamos / Pra frente Brasil..” Os homens do governo, claro,
trataram logo de aparecer em centenas de fotos ao lado dos craques. Queriam que
o país tivesse a impressão de que só tínhamos ganho a Copa graças à ditadura
militar (embora as vitórias de 1958 e 1962 tivessem sido no tempo da democracia,
com JK e Jango). O prefeito de São Paulo, Paulo (que não era São) Maluf,
resolveu dar para cada jogador um automóvel zero quilômetro de presente. O
presidente Médici, vestido com a camisa rubronegra do Flamengo, era aplaudido de
pé por parte da torcida no Maracanã. Triste país, o general chutava a bola, os
torturadores chutavam os presos.
Além do futebol, os brasileiros conheceram uma nova paixão, o automobilismo. Até
hoje, o mundo só teve um único piloto capaz de vencer na sua estréia na Fórmula
1: o nosso Émerson Fittipaldi, campeão mundial em 1972 e 1974.
Nas escolas vivia-se um clima de ufanismo (exaltação da pátria). Todo mundo
tinha de acreditar que o Brasil estava se tornando um país maravilhoso. Nos
vidros dos carros, os adesivos diziam: “Brasil - Ame-o ou Deixe-o!” É como se os
perseguidos políticos foragidos tivessem se exilado por antipatriotismo. Um
pontapé na verdade.
Claro que essa euforia toda no começo dos anos 70 não vinha só das vitórias
esportivas e da máquina de propaganda do governo. Em realidade, o país vivia a
excitação de um crescimento econômico espetacular. Era o tempo do
“milagre econômico”.
Governo General Emílio Garrastazu Médici (1969 – 1974)
"A
plenitude do regime democrático é uma aspiração nacional. . . "
PRESIDENTE MÉDICI
Costa e Silva não teve muito tempo para se alegrar com os efeitos do AI-5. um
derrame o matou, em agosto de 1969. O povo não teve tempo de se alegrar; uma
Junta Militar, comandada pelo general Lyra Tavares, assumiu o governo até se
nomear o novo general-presidente. 0 vice de Costa e Silva, o civil Pedro Aleixo
(ex-UDN), não tinha apoiado totalmente o AI5 e por isso fora jogado para
escanteio. No mesmo ano, ocorreu a Emenda Constitucional nº 1, que alguns
juristas consideram quase como uma nova Constituição. Ela legalizou o arbítrio e
os poderes totalitários da ditadura. Todas aquelas medidas arbitrárias tipo AI-5
e 477 foram incorporadas à Constituição. Além disso, ela estabeleceu que o
presidente podia baixar medidas (decretos-leis) que valeriam imediatamente. 0
Congresso disporia de 60 dias para examinar o decreto. O Congresso tinha 60 dias
para votar a aprovação. Se depois desse prazo não tivesse havido votação (o
Congresso poderia, por exemplo, estar fechado pelo AI-5, ou com número
insuficiente de membros comparecendo às sessões), ele seria automaticamente
aprovado por decurso de prazo.
Dias depois, era indicado o novo chefe supremo do país. O novo presidente era o
general Emílio Garrastazu Médici. Seu governo teve dois pontos de destaque: o
extermínio da guerrilha e o crescimento econômico espetacular (o “milagre”).
Nenhuma época do regime militar foi tão repressora e brutal, Nunca se torturou e
assassinou tanto. Nos porões do regime, as pessoas tinham suas vidas postas na
marca do pênalti. E assim os órgãos de re-pressão marcaram gols, liquidando
guerrilheiros como Marighella (4/11/69), Mário Alves (16/11/70) e Lamarca
(17/09/71).
Na economia, o ministro Delfim Netto comandou o milagre econômico. A produção
crescia e se modernizava num ritmo espetacular. A inflação, dentro dos padrões
brasileiros, até que era moderada, lá na casa dos vinte e tantos por cento.
Construía-se com euforia. Obras, como a ponte Rio-Niterói, a rodovia
Transamazônica, a refinaria de Paulínia e a instalação da tevê em cores (1972),
pareciam mostrar que a prosperidade seria eterna. A classe média comprava ações
na Bolsa de Valores e imaginava se tornar grande capitalista.
Para acelerar o crescimento, ampliaram-se as empresas estatais ou criaram-se
novas, principalmente na produção de aço, petróleo, eletricidade, estradas,
mineração e telecomunicações. Os nomes delas você já ouviu falar: Petrobrás,
Eletrobrás, Telebrás, Correios, Vale do Rio Doce, Companhia Siderúrgica
Nacional, Usiminas e tantos outros.
Crescimento e modernização que não beneficiavam as classes trabalhadoras. Pelo
contrário, quanto mais o país crescia, tanto mais piorava a vida do povo. Em
1969, por exemplo, o salário mínimo só valia 42% do que representava em 1959, Em
1974, isso desceu para 36%.
Os ricos foram ficando cada vez mais ricos e os pobres, cada vez mais pobres, A
ditadura foi uma espécie de Robin Hood às avessas.
Essa distribuição de renda ao contrário era facilitada pelo fato de que não
havia nenhuma greve, nem sindicato independente, nem a oposição no Congresso
tinha margem de manobra. Era uma ditadura que fazia uma coisa incrível: o país
crescia como poucos no mundo e quanto mais riquezas eram produzidas, mais
difícil ficava a vida dos trabalhadores.
E a Rede Globo, principal aliada da Ditadura, sempre lembrando ao povo miserável
que "está tudo bem"...
Até nos países mais pobres da África, a mortalidade infantil diminuía. Nas
grandes cidades brasileiras ela crescia, Quanto mais a renda per capita do
Brasil aumentava, mais as crianças pobres morriam porque comiam pouco, não eram
vacinadas, não tinham médico, De repente, houve uma epidemia de meningite,
Doença que pode matar, É preciso que os pais estejam alerta. O que fez a
ditadura? Proibiu que os jornais divulgassem qualquer notícia a respeito. O povo
tinha de ser enganado pela imagem de que no Brasil a saúde pública estava sob
controle, o que veio em seguida era previsível: os pais, sem saber do surto da
doença, não davam muita importância para aquela febrezinha do filho, Achavam que
era só uma gripe, Não levavam para o posto de saúde, Até que a criança morria, A
meningite mataria milhares de meninos e meninas no Brasil, numa das mais
terríveis epidemias do século, Só esse caso já mostra o quanto a ditadura era
absurda, não é mesmo?
O ministro Delfim Netto dizia que era para o povo ter paciência: “temos de
esperar o bolo crescer para depois distribuir os pedaços”. E até hoje o povão
está esperando sua fatia. Pois é, na cara-de-pau, o general-presidente Médici
dizia: “A economia vai bem, só o povo é que vai mal.” Viu? Uma coisinha à toa é
que ia mal, um trocinho assim, sem importância, uma poeirinha desprezível
chamada povo...
Grande parte da classe média até que gostava daquilo tudo. Afinal, a ditadura,
além de modernizar a indústria de base, estimulou a de bens de consumo duráveis.
Maravilha das maravilhas: a família de classe média se realizava
existencialmente comprando tevê em cores (desde 1972), aparelhagens de som,
automóveis, eletrodomésticos. E até a classe operária foi arrastada nesse
processo de crença na ascensão social baseada na aquisição do radinho de pilha
ou do tênis maneiro,
A megalomania planejava as obras estatais, Assim como os cabelos eram compridos
e as barras das cabas eram “boca-de-sino”, as obras eram gigantescas, o governo
fazia estádios de futebol em tudo quanto era canto, mas as escolas caíam aos
pedaços, A rodovia Transamazônica, importante para iniciar a colonização da
Amazônia, não incluiu nenhum projeto de proteção ao meio-ambiente, aos índios,
aos camponeses e aos garimpeiros. A ponte Rio-Niterói (1974) foi realmente funda
mental para ligar a economia do Nordeste do país ao Sudeste industrial (RJ e
SP), mas ela custou uma fortuna. Certamente teria sido mais barata se as contas
tivessem sido controladas democraticamente. Muita empresa construtora se deu bem
fazendo essa obra encomendada pelo governo, Aliás, em quase todas essas obras
faraônicas (ou seja, enormes, caras e quase inúteis, tal como as antigas
pirâmides dos faraós do Egito) houve esquemas para homens do governo e firmas de
engenharia civil ganharem uma boa grana por fora. Velha história: sem democracia
a roubalheira rola solta porque não há imprensa livre, Congresso independente.
Um tratamento especial foi dado às empresas multinacionais (estrangeiras). Elas
tiveram mais favores do governo do que as empresas nacionais! O que não é de se
espantar, pois grande parte dos homens do poder eram profundamente ligados aos
grupos estrangeiros e não hesitaram em usar sua influência. Analistas como
Ricardo Bueno e Moniz Bandeira chegaram a considerar os ministros Delfim Netto,
Mário Henrique Simonsen (que o presidente Collor queria para seu ministro),
Golbery do Couto e Silva, Roberto Campos e outros como “notórios entreguistas”,
ou seja, responsáveis conscientes pelo favorecimento escancarado do governo aos
monopólios estrangeiros,
É claro que hoje em dia não se pode ter mais aquela visão de ódio total às
multinacionais. Afinal, com a internacionalização da economia, ou seja, a
ligação econômica direta entre quase todos os países e continentes, elas se
tornaram peças fundamentais da economia mundial. Inclusive, porque parecem
realmente ser úteis parceiras em alguns setores, já que nenhum país pode ter
sozinho tecnologia e capital para produzir tudo. Todavia, é sensato esclarecer
alguns pontos: por que elas são as responsáveis por grande parte da dívida
externa brasileira? Será benéfico o governo pedir dinheiro emprestado aos
banqueiros internacionais para fazer obras gigantescas a favor das
multinacionais? Ou simplesmente para financiá-las? Será correto que elas mandem
para fora lucros de bilhões de dólares, em vez de aqui reinvestir? Será
interessante o seu poder de levar à falência as empresas nacionais, através de
uma concorrência desleal? Será que elas realmente nos transferem tecnologia ou
só mandam pacotes prontos feitos nos seus laboratórios? Será que elas não mandam
dinheiro escondido "por debaixo do pano"? Será que não interferem na nossa vida
interna, combatendo governos que não lhes interessam, mesmo se estes forem a
favor do povo? Será saudável que produzam aqui remédios e produtos químicos
proibidos em seus países de origem? Por que será que um operário da Volkswagen
ou da Ford no Brasil faz o mesmo serviço, nos mesmos ritmos e níveis de
tecnologia, que operários dessas empresas na Alemanha ou nos EUA e, no entanto,
ganha tão menos? Tantas perguntas...
Bem, aí estava o “milagre econômico”: modernização, crescimento acelerado,
inflação moderada, facilidades para o investimento estrangeiro, e também ricos
mais ricos e pobres mais pobres e aumento da dívida externa. Você reparou que
era um esquema parecido com o que já havia no tempo de Juscelino Kubitschek? O
desenvolvimento espetacular das telecomunicações e da indústria de bens de
consumo duráveis (automóveis, eletrodomésticos, prédios de luxo e mansões
financiados pelo BNH) eram voltados principalmente para a classe média e
superior. Milhões de brasileiros estavam meia por fora desse mercado. Claro,
portanto, que essa festa não iria durar muito. 0 modelo se esgotava e a crise
chegava mais rápido do que o Émerson Fittipaldi.
Governo do General Ernesto Geisel ( 1974 – 1979 )
O novo general-presidente, Ernesto Geisel, assumiu o governo num momento difícil
da economia do Brasil e do mundo, Para alimentar o crescimento, ele pediu
emprestado aos banqueiros estrangeiros e tratou de emitir papel-moeda. A
inflação começou a aumentar e a engolir salários. Era o fim do “milagre
econômico”. Agora, a insatisfação crescia. Isso ficava claro com o aumento de
votos do MDB. Geisel percebeu que a ditadura estava chegando ao fim de sua vida
útil. O jeito era acabar com o regime mas manter as coisas sob controle. Com
ele, começaria a “distensão lenta e gradual”.
O ano de 1973 assinalou o inicio de um choque na economia capitalista mundial.
Parecida com a de 1929, mas com efeitos bem menores para os países capitalistas
desenvolvidos, que empurraram a crise para cima do Terceiro Mundo. De certa
forma, os apertos econômicos dos países subdesenvolvidos, nos anos 90, foram
continuação do processo de 1973.
Tentaram botar a culpa nos árabes, porque eles aumentaram os preços do petróleo:
Conversa fiada. O aumento foi apenas a recuperação de preços, que vinham caindo
muito, desde os anos 50. Para você ter uma idéia, antes do aumento imposto pela
OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) em 1973, o preço do
barril de petróleo no mercado mundial era inferior ao do barril de água mineral!
Claro que o aumento dos preços pegou todo mundo de surpresa, aumentou os custos,
cortou os lucros, provocando inflação e desemprego. A crise do petróleo reforçou
a crise geral do capitalismo em 1973. Mas com certeza a crise não foi só
energética. Afinal, países exportadores de petróleo também entraram em crise!
O que aconteceu foi uma crise clássica de superprodução de mercadorias, tal como
ocorrera em 1929. Depois da Segunda Guerra, os EUA representavam metade da
produção econômica mundial. Mas nos anos seguintes a Europa Ocidental recuperou
plenamente sua economia. Surgiu também um grande competidor, o Japão. De
repente, o mercado mundial ficou apertado, não havia como continuar investindo
capital nos mesmos ritmos. As mercadorias começaram a ficar encalhadas e logo
vieram as falências, a inflação, a recessão.
Aqui no Brasil, o governo botava a culpa nos outros. Dizia que a crise era
mundial. Certo. Mas por que aqui ela era tão devastadora? Porque a política
econômica da ditadura nos tornava indefesos. O petróleo não representava nem 25%
das nossas importações em 1975. Além disso, não só aumentou nossa produção
interna, como seus preços internacionais cairiam nos anos 80. No entanto, a
crise foi aumentando, ano após ano. Uma coisa tão braba que o nosso jovem leitor
com certeza viveu a maior parte de sua vida sob o signo da crise econômica
brasileira.
O que acontece é que o modelo econômico da ditadura era baseado no pequeno
mercado interno, representado pelos ricos e pela classe média. O país estava se
transformando na Belíndia, uma mistura da Bélgica com a Índia: uma quantidade
razoável de pessoas (classe média e superior) com padrão de consumo de país
desenvolvido, vivendo numa área com grandes centros industriais e financeiros,
ou seja, a parte do Brasil parecida com a Bélgica, e a gigantesca maioria
(classe média baixa e classes inferiores) com padrão de vida muito baixo,
milhões vivendo tão miseravelmente como na Índia. Tinha-se alcançado um estágio
em que não dava para aumentar a produção, por falta de consumidores aqui dentro.
A Bélgica da Belíndia era pequena e a Índia da Belíndia era cada vez maior. Como
produzir mais automóveis se a maioria dos brasileiros não tinha dinheiro para
comprá-los?
Ficava claro que só havia um jeito de ampliar o mercado consumidor: distribuindo
renda. Para isso, seria preciso tocar em privilégios, mexer em interesses
poderosos. Então, o regime militar não faria nada disso.
O governo preferiu outro caminho. Para a economia não entrar em recessão, isto
é, para a economia não regredir, o Estado começou a tomar empréstimos externos
para financiar a produção. Supunham que a economia cresceria, que as exportaÇões
se tornariam espetaculares e que tudo isso daria condições de pagar a dívida
externa. Só que os banqueiros internacionais não são trouxas. Emprestaram
dinheiro porque sabiam que o Brasil teria de devolver muito mais em forma de
juros. Se fizer mos as contas direitinho no papel, vamos concluir que nos anos
70 e 80, o Brasil pagou, só de juros, muito mais do que pediu emprestado! Ou
seja, já pagamos tudo, continuamos pagando e ficamos devendo mais ainda! A
dívida externa funciona como uma bomba de sucção que chupa os recursos da
economia do Brasil. Aliás, o problema da dívida externa é comum em todo o
Terceiro Mundo. Segundo os dados insuspeitos do Banco Mundial, na década de 80
foram drenados bilhões de dólares do Terceiro Mundo para o Primeiro. Ou seja, a
parte pobre, esfarrapada e faminta do planeta é que mandou dinheiro para a parte
milionária! Nos anos 90, é óbvio, esse esquema continua.
O mais triste é quando a gente constata que grande parte da dívida externa
brasileira foi contraída financiando a vinda de multinacionais, construindo
obras gigantescas só para favorecer empresas estrangeiras (estradas,
hidrelétricas), sem falar construções que o governo nunca terminou, deixando as
máquinas e o material serem destruídos pelo tempo.
Pois é, apertado, o governo precisava de mais dinheiro ainda. Para ele, é fácil.
É só fabricar, emitir papel-moeda. Aí, vem a inflação. Para evitar a inundação
de dinheiro, o governo criou mercados abertos (opens markets), vendendo títulos,
ou seja, papéis expedidos com a garantia do governo, que mais tarde poderiam ser
resgatados (o proprietário devolveria para o governo em troca de dinheiro) por
um valor superior. A idéia era "enxugar" o mercado, mas a medida deu a maior
força para tudo quanto é tipo de especulação financeira, quer dizer, os
empresários manobravam para negociar esses títulos com altos lucros. Eis aí um
dos grandes problemas da economia brasileira a partir dali: a especulação
financeira. Ela é um ganho artificial, já que não envolve nenhum investimento
produtivo. No fundo, está transferindo riqueza da sociedade para o bolso de
alguns espertinhos.
A crise se manifestava com a queda da proporção dos lucros. Os empresários não
tinham conversa: buscaram lucrar na marra, botando os preços lá em cima. Ora, é
impossível que os empresários, como um todo, possam lucrar na base do simples
aumento de preços. Quando alguém aumenta os preços, o outro aumenta também para
compensar. Os trabalhadores querem salário maior só para compensar a perda com
os aumentos gerais de preços. Os empresários aumentam os salários e, em seguida,
sobem mais ainda os preços para reparar as perdas com a alfa de preços e
salários. Vira um círculo vicioso. Resultado: o dinheiro vai perdendo o valor.
Espiral inflacionária. E o pior é que geralmente os preços crescem mais rápido
do que os salários. Portanto, quem mais perde com a inflação são os
trabalhadores. Pois a inflação veio a jato, mas os salários andam a passo de
cágado.
O general Ernesto Geisel era irmão do arquipoderoso general Orlando Geisel.
Família unida é ditadura unida. Sua presidência ocorreu dentro desse panorama de
crise econômica. Mesmo assim; Geisel se deu ao luxo de ter um ministro do
Trabalho, Arnaldo Prieto, cuja mansão em Brasília, segundo o Jornal do Brasil,
consumia, mensalmente, 954 kg de carne e 432 kg de manteiga, Que coisa: uma
tonelada de bifes por mês, como devia ser gordo o ministro do Trabalho! Bem, com
certeza os salários dos trabalhadores não eram tão gordos.
No meio da crise de energia, o Brasil teve a sorte de descobrir petróleo na
bacia de Campos (RJ), em frente à cidade de Macaé. A Petrobrás pôde aumentar sua
produção espetacularmente. Mas Geisel tinha também outros planos para resolver o
problema energético: como não havia dinheiro no Brasil, a solução foi gastar
mais dinheiro ainda. O acordo nuclear Brasil-Alemanha custou uma fortuna de
bilhões de dólares. Para fazer usinas perigosíssimas num país onde 80% do
potencial hidrelétrico ainda não foi aproveitado. Incrível, não? A usina de
Angra dos Reis (RJ) fica exatamente entre os dois maiores centros industriais do
país: São Paulo e Rio de Janeiro. Imagine se houvesse um acidente nuclear!
Na verdade, a velha Doutrina de Segurança Nacional continuava ativa. Geisel
montou um acordo nuclear com a Alemanha porque acreditava que o Brasil precisava
aprender a dominar a tecnologia capaz de produzir, num futuro próximo, a bomba
atômica. Na mesma época, a Argentina, que vivia uma ditadura militar desde 1976,
também sonhava com cogumelos nucleares. Guerra: coisa de gente que andou tomando
uns cogumelos não exatamente nucleares, não é verdade?
No mesmo ano (1975), teve início o Projeto Pró-álcool. A idéia era substituir a
gasolina pelo álcool combustível. Os usineiros se alegraram. As plantações de
cana-de-açúcar foram ocupando tudo quanto é lugar, expulsando os camponeses
moradores, acabando com as plantações de alimentos (tornando a comida mais cara)
e despejando o poluente vinhoto nos rios. Nos anos 80, com a queda do preço
mundial de petróleo, o Brasil ficou com uma enorme frota de carros movidos a um
combustível caríssimo. Já em 1990, querendo melhores preços, os usineiros
'`sumiriam" com o álcool. Na verdade, o álcool se revelou um combustível muito
mais caro do que a gasolina (no posto, o álcool é mais barato porque é
subsidiado, ou seja, o governo paga uma parte da conta. Mas onde arruma dinheiro
para fazer essa caridade? Cobrando mais alto pela gasolina. Trocando em miúdos:
quem tem carro a gasolina está ajudando a encher o tanque de quem tem carro a
álcool). O que se viu nesses anos todos foi o governo emprestando milhões de
dólares aos usineiros do Nordeste, do Rio de Janeiro e de São Paulo e depois
perdoando as dívidas porque não suporta mais a choradeira dos produtores de
álcool e açúcar. Enquanto isso, os cortadores de cana continuam passando fome.
Ora, por que não estimularam o transporte ferroviário e o fluvial, bem mais
baratos, podendo, em alguns casos, usar energia elétrica? Não foi incompetência.
Na verdade, desde Juscelino que uma das espinhas dorsais de nossa indústria é
fabricação de automóveis e caminhões. As pressões das multinacionais desse setor
forçaram o governo a abandonar outras opões de transporte. As estradas de ferro,
tão importantes nos países desenvolvidos, foram relegadas a segundo plano pelo
governo e as estatais deste setor tiveram seus recursos cortados.
O II PND (Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento) - o I PND foi no governo
Médici, sob a batuta do ministro Delfim Netto -, comandado pelo ministro da
Fazenda, Mário Henrique Simonsen, e pelo do Planejamento, Reis Velloso, tinha
como objetivo começar a substituir as importações de bens de capital (indústria
de base). Para isso, o BNDE concedeu créditos generosos a empresas privadas do
setor, mas principalmente as empresas estatais tiveram grande crescimento,
especialmente a Eletrobrás (que comprou a multinacional Light and Power e levou
adiante a construção da maior usina hidrelétrica do mundo, Itaipu, na fronteira
com o Paraguai), a Embratel (telefones, satélites de comunicações, televisão
etc.), a Petrobrás e as estatais de aço. Tudo isso alimentado por uma dívida
externa que aumentava sem parar. Em breve, os banqueiros viriam cobrar a dívida
e os juros. Aí, a economia sentiria a fona de sucção dos interesses
internacionais.
“Distensão ‘lenta, gradual e segura’ rumo à democracia”
Os resultados dos problemas econômicos foi que nas eleições para deputado
federal e estadual e para o Senado, em 1974 e 1978, o MDB teve ótima votação. Um
aviso claro para o pessoal da ditadura se mancar. O povo estava dizendo não ao
regime.
No Alto Comando Militar, as divisões políticas se acentuaram. Uns achavam que a
ditadura deveria ir afrouxando, acabando de modo lento e controlado. Talvez,
para os ditadores saírem discretamente pelos fundos, sem ninguém correr atrás
deles. Esses generais moderados e favoráveis ao gradual retorno à normalidade
democrática eram chamados de castelistas, porque se sentiam continuadores de
Castello Branco. Era o caso do próprio Geisel e do presidente seguinte,
Figueiredo. Outros militares defendiam a “linha dura” - alguns desses eram civis
-, e queriam apertar mais ainda. Costa e Silva e Médici, por exemplo, tinham
sido de linha dura. Começou então um combate nos bastidores, entre os militares
castelistas e os linha dura. E os linha dura bem que pegaram pesado.
Em outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de telejornalismo da
TV Cultura de São Paulo, foi chamado para um interrogatório num quartel do
Exército, sede do DOI-CODI. Lá ficou, preso e incomunicável. Dias depois, a
família recebeu a notícia de que ele havia “se suicidado”. Com um detalhe: teria
de ser enterrado em um caixão lacrado, para que ninguém pudesse ver o estado do
cadáver. Suicídio mesmo ou o corpo estava arrebentado pela tortura? No ano
seguinte, o operário Manoel Fiel Filho sofreu o mesmo destino. A farsa era
evidente: é óbvio que ambos tinham sido mortos por espancamento. Em homenagem a
Herzog, o cardeal de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, junto ao pastor James
Wright e ao rabino Henri Sobel, dirigiu um culto religioso ecumênico (reunindo
as religiões) em frente à catedral da Sé. Havia milhares de pessoas nesta que
foi a primeira manifestação de massa desde 1968. Mostra clara de que a sociedade
civil estava voltando para as ruas para protestar contra o arbítrio.
Indiretamente, Geisel reconheceu o crime. Não prendeu ninguém, mas exonerou o
comandante do II Exército, responsável pelos acontecimentos. Deixava claro que
não admitiria os atos violentos da linha dura. Em 1978, o Poder Judiciário daria
ganho de causa à família de Herzog, botando a culpa na União. Sinal dos tempos.
Claro que a esquerda não podia dar bobeira. A ditadura ainda existia. Um trágico
exemplo disso foi o massacre da Lapa, quando agentes do Exército invadiram uma
casa nesse bairro da capital paulista, em 1976, onde se realizava uma reunião
secreta de dirigentes do PC do B. As pessoas nem puderam esboçar reação: foram
exterminadas ali mesmo, covardemente.
Apesar disso, Geisel apostava na distensão lenta e gradual. Para isso, teve de
usar a habilidade para derrubar seus opositores de linha dura. A balança pendeu
para o seu lado quando ele, num gesto fulminante, exonerou o general Sílvio
Frota (1977), ministro do Exército, tido como de extrema direita e ligado à
tortura.
A partir daí, a dureza do regime começou a diminuir bem devagar. Alguns
militares eram favoráveis à distensão política porque realmente estavam imbuídos
de convicções democráticas. Outros, não tão liberais, avaliavam que as Forças
Armadas estavam começando a se desgastar ao se manter num governo que enfrentava
uma crise econômica violenta. Geisel, portanto, tinha um plano claro: distensão
lenta e gradual. Ou seja, abrir o regime bem devagarzinho e sem perder o comando
sobre ele.
Dentro deste espírito de distensão controlada, Geisel buscou evitar as vitórias
eleitorais do MDB. Para isso, mudou as regras das eleições. Seu ministro da
Justiça, Armando Falcão, famoso pela inteligente proibição da transmissão, pela
tevê, do balé Bolshoi de Moscou (bailarinos são presa fácil do comunismo?),
inventou a tal Lei Falcão (1976), que dizia que a propaganda política na tevê só
podia exibir uma foto 3X4 do candidato e seu currículo, lido por um locutor.
Nada de um candidato do MDB aparecer na telinha ou no rádio para criticar o
governo e fazer propostas novas.
O natal de 1977 foi antecipado: Geisel fechou o Congresso e deu um presentinho
para os brasileiros, o Pacotão de Abril. Lindas surpresas. Para começar, a cada
eleição a Arena perdia mais deputados para o MDB. Em breve, o partido do governo
não teria os 2/3 do Congresso necessários para mudar alguma coisa da
Constituição. Então, o Pacotão determinava que a Constituição agora poderia ser
modificada com apenas 50% dos votos dos congressistas mais um. Assim, a Arena
(ainda maioria) garantia seu poder constitucional. No senado, o MDB também
ameaçava. Resultado: o Pacotão determinou que um terço dos senadores passariam a
ser biônicos, ou seja, escolhidos indiretamente pelas Assembléias Legislativas
de cada Estado. Em outras palavras, a Arena já tinha garantido quase 1/3 do
senado, os outros 2/3 seriam disputados com o MDB nas eleições normais, o
Pacotão também alterou o quociente eleitoral, de modo que os estados do
Nordeste, onde a população rural ainda era dominada pelos currais eleitorais, e
portanto votava com a Arena, tivessem assegurado o direito de eleger um número
maior de deputados para o Congresso. No sertão nordestino, chuva mesmo, só de
deputados da Arena. O Pacotão fazia das eleições um jogo de futebol em que o
dono da bola joga de um lado e, ao mesmo tempo, é juiz.
Em 1978 foi decretado o fim do AI-5, o que mostrava alguma boa vontade de Geisel
com a distensão política, Mas antes de ele acabar com o ato arbitrário, usou o
AI-5 para cassar diversos opositores. Mais ou menos como o pistoleiro que mata
todo mundo e que, depois de acabarem as balas, resolve se arrepender do que fez.
A garantia disso. tudo era a Lei de Segurança Nacional (LSN) que continuava
sendo mantida.
Em política exterior, o Brasil baseou-se no chamado pragmatismo responsável:
restabeleceu relações com países comunistas como a China, porque isso trazia
vantagem comercial e diplomática. Em 1975, na África, Angola, Moçambique,
Guiné-Bissau e Cabo Verde deixaram de ser colônias de Portugal. No poder,
partidos de orientação marxista, apoiados por Cuba e URSS. Acontecia que o
governo militar ainda seguia a visão da Doutrina de Segurança Nacional que
sonhava em transformar o Brasil na grande potência que dominaria a América do
Sul e o Sul da África. Por isso, o Brasil não teve conversa e apoiou os governos
de esquerda em Angola e Moçambique, inclusive contrariando a vontade do governo
racista da África do Sul e dos EUA. Na verdade, os EUA, do presidente Carter,
andaram pressionando o governo militar brasileiro por causa da violação de
direitos humanos (incluindo tortura e execução de presos políticos). Coisa de
americanos: apoiaram o golpe de 64, depois mudaram de governo e passaram a
criticar. Diante disso, e de olho no acordo nuclear Brasil – Alemanha, Geisel
acabou rompendo um acordo militar Brasil-EUA. Isso mostra uma coisa muito
importante: apesar de o regime militar brasileiro ter sido apoiado pelos EUA,
isso não quer dizer que o Brasil sempre tivesse seguido os americanos. Não foram
eles que impuseram o regime aqui. A explicação básica do que acontece no Brasil
tem de ser buscada aqui mesmo, nas nossas estruturas, nas nossas contradições
internas, Culpar o imperialismo por tudo é cômodo e superficial.
No final do seu governo, Geisel passou o bastão para o general Figueiredo. A
crise continuava e as pressões populares pelas mudanças, também.
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Bibliografia:
História do Brasil – Luiz Koshiba – Ed. Atual
História Crítica do Brasil – Mário Schmidt – Ed. Novos Tempos
História do Brasil – Boris Fausto – Ed. Difel
(Fonte: http://www.culturabrasil.org/ditadura.htm)
Diz o dito popular "sair do espeto e cair na brasa". Onde Revolução
socialista teve sucesso, parece que as coisas não ficaram boas também.
Então, parece que aqui, após esse tenebroso período, como não se estabeleceu uma ditadura oposta, apesar de
toda a corrupção que vemos atualmente, imagino que estamos menos mal. Os
corruptos de hoje podem ser denunciados; alguns são processados e punidos; há
reclamações de que ainda não se fez boa justiça; mas está bem melhor do que um
ambiente onde qualquer tentativa de apurar as irregularidades traz grande risco.
Ver
O LEGADO DA DITADURA
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