PSICOLOGIA DO TRÂNSITO


A ciência do trânsito
Você sabia que os carros velhos batem menos e ruas sem sinalização podem ser mais seguras? Que mais de 70% dos motoristas aceleram para atropelar os pedestres, e as mulheres causam mais congestionamentos que os homens? Conheça as descobertas mais incríveis sobre o trânsito
- A A +Por Bruno Garattoni
 

Nos anos 90, a prefeitura de Londres decidiu reformar a rua Kensington, uma das mais movimentadas da cidade. Os lojistas estavam preocupados, com medo de perder clientes para os shopping centers, e queriam deixar a via mais bonita. Para acabar com a poluição visual, eles resolveram eliminar quase todas as faixas de pedestres, canteiros e grades de proteção que separavam as pessoas dos carros. O trânsito virou uma carnificina, certo? Muito pelo contrário: o número de atropelamentos caiu 64%. Um estudo feito na Europa descobriu que as placas com limites de velocidade fazem os motoristas correr mais – e, por isso, o ideal seria se livrar delas em ruas residenciais.

E, após analisar o trânsito de 11 países, um grupo de especialistas chegou a uma conclusão bizarra: reduzindo o número de ruas, os congestionamentos diminuem. Se essas coisas lhe parecem incríveis (e são mesmo), é porque você não conhece uma das ciências mais surpreendentes que existem: a psicologia do trânsito, cujos mistérios e revelações vão mudar a sua maneira de rodar – ou andar – pelas ruas da cidade.

Você já teve a sensação, como pedestre ou motorista, de que as pessoas se transformam quando estão no trânsito – e passam a ter atitudes agressivas, anti-sociais, que jamais adotariam fora do asfalto? Segundo comprovam várias pesquisas, isso é mais do que uma simples impressão. Por exemplo: quando estão se aproximando de uma pessoa que atravessa a rua, 73% dos motoristas mantêm a velocidade ou aceleram. E, quando existe outro carro esperando, demoram em média 11 segundos a mais para desocupar uma vaga de estacionamento. Mas por que tanta hostilidade? Por que o trânsito muda as pessoas? No fim do século 19 o engenheiro alemão Karl Benz, fundador da Mercedes-Benz, fez uma profecia curiosa: poucos carros seriam vendidos no mundo, porque a maioria das pessoas não tinha capacidade de guiar um automóvel.

Benz errou no palpite (hoje existem mais de 800 milhões de carros), mas sua idéia tinha fundamento. Como estão comprovando os estudos mais recentes sobre o comportamento dos motoristas, o trânsito realmente pode sobrecarregar o cérebro. Quando você está dirigindo a 45 km/h, uma velocidade normal para áreas urbanas, tem de processar cerca de 1 300 informações visuais – obstáculos, carros, placas, faixas de trânsito, pedestres, curvas etc. – por minuto. Se cada uma dessas informações fosse uma simples letrinha, o esforço mental equivaleria a ler este parágrafo inteiro em apenas um minuto – e fazer tudo isso dirigindo o carro.

Outra característica ajuda a explicar a mudança de comportamento das pessoas atrás do volante. Nós evoluímos, ao longo de milhares de anos, com o instinto de formar alianças. Quando o homem das cavernas conhecia alguém, precisava avaliar rapidamente as intenções daquele indivíduo e, se possível, formar uma aliança com ele. Foi isso o que criou a vida em sociedade. No trânsito, esse tipo de julgamento não tem tanta importância – pouco importa se alguém lhe der passagem ou uma fechada, pois você dificilmente voltará a ver aquela pessoa.

Mas o seu corpo pensa diferente. “O cérebro processa essas informações [a gentileza ou a fechada] como se fossem o começo de um relacionamento de longo prazo”, explica o biólogo evolucionista Jack Katz, da Universidade da Califórnia. É como se você estivesse conseguindo um novo membro para a sua tribo, ou fazendo um inimigo mortal, a cada quilômetro. É por isso que as pessoas têm reações exageradas e agressivas. Outro exemplo: quando levam uma buzinada, 75% dos motoristas têm algum tipo de reação verbal – mesmo sabendo que o autor da buzinada não irá ouvi-la. O cérebro não entende que os outros motoristas estão longe e não conseguem ouvir. Ele simplesmente fala.

PARECE, MAS NÃO É

As ruas estão cheias de coisas que podem enganar a mente. Você já reparou que a faixa de trânsito ao lado da sua sempre parece andar mais rápido? Basta você entrar numa faixa para que ela fique congestionada? Tem explicação. Cientistas ingleses descobriram que os motoristas passam 60% do tempo olhando para a frente, 30% olhando para as faixas do lado (pois elas ajudam a manter a direção do carro), e apenas 6% olhando pelo espelho retrovisor. Isso significa que, na prática, o motorista dá pouquíssima atenção aos carros que ultrapassou.

Agora veja só o que acontece no cérebro. Ninguém sabe exatamente por quê, mas vários estudos já demonstraram que a mente humana é mais sensível a perdas (como ser ultrapassado) do que a ganhos (como ultrapassar alguém). Somados, esses dois fatores – o cérebro não gosta de perder, mas presta pouca atenção ao que ganhou – criam a sensação de que a faixa ao lado sempre anda mais. Seja como for, relaxe. Segundo uma experiência feita no Canadá, ficar “costurando” geralmente traz pouco benefício: em média, 5% (num trajeto que normalmente leva uma hora, isso significa economizar míseros 3 minutos).

Também não adianta muito querer dar uma de esperto na hora de parar o carro no estacionamento. “Em média, as pessoas que ficam procurando vaga não levam vantagem em relação àquelas que estacionam no primeiro lugar que encontram”, diz o psicólogo Andrew Velkey, que estudou o comportamento dos motoristas no estacionamento de um shopping center de Mississippi, nos EUA. Ele descobriu diferenças entre os sexos: enquanto os homens deixam o carro em qualquer lugar, sem pensar muito, as mulheres são mais cismadas – e, por causa disso, acabam perdendo mais tempo.

Por falar nisso, uma nova teoria promete apimentar a guerra dos sexos no volante: as mulheres causam mais congestionamentos do que os homens. Essa idéia se baseia numa conclusão surpreendente – de que, nas grandes cidades, o principal uso do automóvel já não é mais ir e voltar do trabalho. A maioria dos carros particulares está na rua por outro motivo. Fazer compras, levar crianças à escola, passar na lavanderia ou no dentista, ir a um restaurante etc. Esses trajetos, que os especialistas chamam de “viagens de serviço”, correspondem a 84% de todos os quilômetros rodados nos EUA. E as mulheres, veja só, fazem duas vezes mais esse tipo de viagem do que os homens. “Para piorar, geralmente rodam em ruas pequenas, que são pouco equipadas para lidar com trânsito pesado”, escreve o jornalista americano Tom Vanderbilt no livro Traffic, que analisa centenas de estudos sobre trânsito.

Antes que as feministas protestem, ele faz uma ressalva: as mulheres não devem ser criticadas, pois também são vítimas dos congestionamentos que provocam. E, para compensar, elas se envolvem em menos acidentes do que os homens. Isso porque, como você já deve ter imaginado, os acidentes têm tudo a ver com psicologia – as mulheres batem menos justamente porque são mais prudentes. O que pouca gente sabe é que, independentemente do sexo do motorista, as iniciativas para melhorar a segurança no trânsito podem ter efeito oposto ao desejado – e deixar tudo mais perigoso.

Um estudo feito em Munique, na Alemanha, mostrou que os carros com sistema ABS (que impede o travamento das rodas em freadas bruscas) batiam mais do que os demais veículos. E, ao contrário do que os engenheiros de tráfego sempre acreditaram, uma pesquisa nos EUA mostrou que faixas mais largas podem aumentar o número de acidentes nas ruas. Não é que essas coisas, em si, sejam ruins. Mas elas deixam os motoristas com excesso de confiança, dispostos a se arriscar mais, o que pode ter um efeito perverso – é estatisticamente comprovado que os carros mais novos, mesmo sendo mais seguros, se envolvem em mais acidentes.

E essa distorção psicológica também afeta quem está a pé. Há estudos mostrando que, quando atravessam a rua fora da faixa destinada a eles, os pedestres ficam mais rápidos e cuidadosos. “Não conhecer as leis de trânsito pode ser bom para o pedestre”, diz Vanderbilt. Ele está brincando, claro, mas o conceito por trás dessa frase é sério e aceito por muitos especialistas: a sensação de perigo pode ser benéfica para o trânsito. Quer ver?

Motoristas levemente bêbados podem causar menos acidentes. É isso mesmo: um estudo feito nos EUA apontou que motoristas com até 0,04% de álcool no sangue (o equivalente a uma lata de cerveja) batiam menos que os sóbrios. Como eles sabiam que estavam meio “altos”, ficavam com medo de fazer besteira no trânsito, e por isso guiavam com mais cuidado. Mas nem pense em beber antes de dirigir – como você sabe, dá multa e pode dar cadeia. Aliás, falando em multas, veja só isso. Na Finlândia, elas são calculadas conforme a renda do motorista. A maior delas foi aplicada num empresário que correu demais – a brincadeira custou nada menos que US$ 70 mil. Já pensou?

Numa experiência bastante interessante, autoridades de trânsito decidiram pintar setinhas no chão de uma estrada em Wisconsin, nos EUA. Conforme a estrada se aproximava de um determinado trecho, as setas ficavam cada vez mais próximas – e, portanto, passavam cada vez mais depressa sob o carro. A intenção era enganar o motorista, dando uma falsa impressão de alta velocidade, e com isso induzi-lo a reduzir a velocidade real do veículo. Deu certo: as velocidades caíram até 24%. E pesquisas feitas com simuladores de direção apontaram que, após um minuto guiando em linha reta, as pessoas começam a perder a concentração. Por isso, boa parte das estradas é projetada com curvas artificiais – cujo único propósito é manter o motorista ligado. Se é impossível evitar que o cérebro se engane, a idéia é enganá-lo de maneira positiva.

Ou então, quem sabe, tirar o cérebro da jogada e passar todas as decisões para as “mãos” dos computadores. Um dos sistemas mais promissores se chama Adaptive Cruise Control (ACC). É uma espécie de piloto automático, que ajusta a velocidade do carro para manter sempre a mesma distância do veículo da frente. A tecnologia é relativamente simples e já está disponível em alguns carros de luxo. Uma simulação feita na Alemanha mostrou que, se 20% dos carros tivessem ACC, os congestionamentos diminuiriam mais de 90%. É que, guiados por computador, os carros podem andar mais juntos e sempre na velocidade ideal. Pode ser o fim dos congestionamentos e do rodízio de veículos, que atormenta os motoristas há pelo menos 20 séculos. Desde que Júlio César criou, em Roma, o primeiro rodízio da história: carroças e carruagens particulares só podiam circular à noite.

Você sabia que, durante a Revolução Cultural chinesa, o governo pensou em inverter os semáforos? A luz vermelha, cor-símbolo do comunismo, passaria a significar “ande”. A idéia não vingou. Mas, no futuro, os cruzamentos vão mudar. A Audi já está testando, numa cidade alemã de 120 mil habitantes, um sistema que conecta os semáforos ao computador de bordo do carro. Eles dizem quanto tempo falta para o sinal fechar e a que velocidade o veículo precisa estar para passar – isso aparece no painel do carro. Resta saber se a novidade não vai estimular os motoristas a correr mais.

Se isso acontecer, a tecnologia promete outra solução. A partir do ano que vem, os modelos topo de linha da BMW virão com o recurso Pedestrian Recognition. Um computador escaneia a rua, vê se tem alguém atravessando, analisa a velocidade e a direção do carro e, se concluir que a situação é perigosa, exibe um alerta (projetado no pára-brisa do veículo) pedindo que o motorista desacelere. Só falta mesmo inventar alguma coisa para acabar com os buracos nas ruas, os pedintes, o barulho e a poluição – ou aquele motorista que, parado ao seu lado, insiste em ouvir música no último volume.

PARA SABER MAIS
Traffic – Why We Drive the Way We Do
Tom Vanderbilt, Knopf Books, 2008. www.howwedrive.com

(Revista Superinteressante - 12/2008)

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