SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL RECONHECE
UNIÃO HOMOAFETIVA
A quarta família
Supremo Tribunal Federal reconhece união estável homoafetiva
5 de maio de 2011, 19h57
Por Rodrigo Haidar
O Supremo Tribunal Federal decidiu, nesta quinta-feira (5/5), equiparar as
relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres.
Na prática, a união homoafetiva foi reconhecida como um núcleo familiar como
qualquer outro. O reconhecimento de direitos de casais gays foi unânime.
Os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso divergiram em
alguns aspectos da fundamentação da maioria dos colegas, mas também os
acompanharam no ponto central. A condenação da discriminação e de atos violentos
contra homossexuais também foi unânime.
Os ministros Marco Aurélio e Celso de Mello ressaltaram que o caráter laico do
Estado impede que a moral religiosa sirva de parâmetro para limitar a liberdade
das pessoas. Em seu voto, Marco Aurélio destacou o papel contramajoritário do
Supremo — citou a decisão tomada em relação à Lei da Ficha Limpa — ao lembrar
que as normas constitucionais de nada valeriam se fossem lidas em conformidade
com a opinião pública dominante.
Já Celso de Mello afirmou que o Estado deve dispensar às uniões homoafetivas o
mesmo tratamento atribuído às uniões estáveis heterossexuais. Não há razões de
peso que justifiquem que esse direito não seja reconhecido, frisou o ministro.
"Toda pessoa tem o direito de constituir família, independentemente de
orientação sexual ou identidade de gênero", disse.
A interpretação do Supremo sobre a união homoafetiva reconheceu a quarta família
brasileira. A Constituição prevê três enquadramentos de família. A decorrente do
casamento, a família formada com a união estável e a entidade familiar
monoparental (quando acontece de apenas um dos cônjuges ficar com os filhos). E,
agora, a decorrente da união homoafetiva.
Ao julgar procedentes as duas ações que pediam o reconhecimento da relação entre
pessoas do mesmo sexo, os ministros decidiram que a união homoafetiva deve ser
considerada como uma autêntica família, com todos os seus efeitos jurídicos. Os
ministros destacaram que é importante que o Congresso Nacional deixe de ser
omisso em relação ao tema e regule as relações que surgirão a partir da decisão
do Supremo.
O julgamento foi retomado nesta quinta-feira depois de ser suspenso na quarta,
após o voto do relator das duas ações, ministro Ayres Britto. O ministro votou
no sentido de dar interpretação conforme a Constituição para o artigo 1.723 do
Código Civil. A norma define a união estável como aquela "entre o homem e a
mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida
com o objetivo de constituição de família".
Pelo voto do ministro, que foi acompanhado integralmente por seis de seus
colegas, deve ser excluída da interpretação da regra qualquer significado que
impeça o reconhecimento de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Em voto
de cerca de duas horas, o ministro frisou que a união homoafetiva não pode ser
classificada como mera sociedade de fato, como se fosse um negócio mercantil.
Além de uma longa análise biológica sobre o sexo, Britto registrou que o
silêncio da Constituição sobre o tema é intencional. "Tudo que não está
juridicamente proibido, está juridicamente permitido. A ausência de lei não é
ausência de direito, até porque o direito é maior do que a lei", afirmou.
Um só afeto
O ministro Luiz Fux ressaltou que, se a homossexualidade é um traço da
personalidade, caracteriza a humanidade de determinadas pessoas.
"Homossexualidade não é crime. Então porque o homossexual não pode constituir
uma família?", questionou Fux.
O próprio ministro respondeu a pergunta: "Por força de duas questões abominadas
pela Constituição Federal, que são a intolerância e o preconceito". Segundo Fux,
todos os homens são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Assim, "nada justifica que não se possa equiparar a união homoafetiva à união
estável entre homem e mulher". O ministro ainda ressaltou que "se o legislador
não o fez, compete ao tribunal suprir essa lacuna".
A ministra Cármen Lúcia destacou que a Constituição Federal não tolera qualquer
discriminação. "Contra todas as formas de preconceitos há a Constituição
Federal", disse.
O ministro Joaquim Barbosa ressaltou que cabe ao Supremo "impedir o sufocamento,
o desprezo e discriminação dura e pura de grupos minoritários pela maioria
estabelecida". De acordo com ele, o princípio da dignidade humana pressupõe a
"noção de que todos, sem exceção, têm direito a igual consideração".
Na sessão de quarta-feira, Britto assentou que se não há lei que proíba, a
conduta é lícita. De acordo com o ministro, a Constituição entrega o "empírico
emprego das funções sexuais ao arbítrio das pessoas". E o Estado brasileiro veda
o preconceito por orientação sexual. "As normas constitucionais não distinguem o
gênero masculino e feminino", frisou Britto. Ou seja, não fazem distinção em
relação a sexo. Logo, não fazem também sobre orientação sexual.
Britto disse também que união homoafetiva só seria vedada se a Constituição
fosse expressa nesse sentido. "O que seria obscurantista e inútil", emendou.
Segundo o ministro, a família, em sua concepção, é o núcleo doméstico, tanto faz
se integrada por um casal heterossexual ou homossexual.
O ministro ainda ressaltou que não se pode alegar que os heterossexuais perdem
se os casais homoafetivos ganham o direito ao reconhecimento jurídico de suas
relações. Só se restringe um direito para garantir outro. Quem perde com o
reconhecimento da união homoafetiva? Ninguém.
Divergências pontuais
Mesmo os ministros que divergiram do voto de Britto, o fizeram por questões
pontuais. O ministro Ricardo Lewandowski, primeiro a não acompanhar
integralmente o relator, reconheceu os direitos dos casais homossexuais, mas de
forma um pouco mais restrita.
De acordo com o voto de Lewandowski, os homossexuais têm os mesmos direitos dos
casais convencionais que vivem em união estável, exceto aqueles típicos das
relações entre um homem e uma mulher.
O ministro não explicitou os direitos típicos de heterossexuais. Mas, pelo seu
voto, pode-se supor que o casamento civil estaria proibido na união homoafetiva.
Ele, contudo, ficou vencido.
Lewandowski também registrou que a decisão deveria valer até que o Congresso
Nacional regulasse o tema. O ministro resgatou as discussões da Assembleia
Nacional Constituinte em torno do parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição.
A norma diz textualmente que a união estável se dá entre homem e mulher. O
ministro mostrou, a partir das discussões, que isso foi uma opção clara do
legislador. De acordo com Lewandowski, a decisão do STF ocupa o espaço do
Congresso Nacional. Então, o preenchimento da lacuna teria de ser provisório.
Para o ministro Gilmar Mendes, o tema em julgamento diz respeito à dignidade dos
indivíduos. "A pretensão que se formula tem base nos direitos fundamentais a
partir dos princípios da igualdade e da liberdade", disse. De acordo com o
ministro, é necessário reconhecer os direitos de casais formados por pessoas do
mesmo sexo por uma questão de dignidade humana.
Mas o ministro fez observações sobre os fundamentos da decisão do STF. Para ele,
pretender regular a união homoafetiva como faria o legislador é exacerbar o
papel do Supremo. "Fazermos simplesmente a equiparação pode fazer com que
estejamos a equiparar situações que vão revelar diversidades", disse o ministro.
Por isso, Gilmar Mendes acompanhou Britto no mérito, mas se limitou a reconhecer
a existência da união homoafetiva sem se pronunciar sobre outros desdobramentos
possíveis.
Peluso afirmou que "na solução da questão posta, só podem ser aplicadas as
normas correspondentes que no Direito de Família se aplicam à união estável
entre homem e mulher". Mas nem todas, disse o presidente do Supremo, porque não
se tratam de relações idênticas, mas de equiparação.
"A partir deste julgamento, o Legislativo tem de se expor e regulamentar
situações que irão surgir a partir do pronunciamento da corte. É necessário
regulamentar a equiparação. Aqui se faz uma convocação para que o Congresso
Nacional atue", concluiu Peluso.
Família de fato e de direito
Nas sustentações orais de quarta-feira, o procurador-geral da República, Roberto
Gurgel, afirmou que a ação visa reconhecer que todas as pessoas têm os mesmos
direitos de formular e perseguir seus planos de vida desde que não firam
direitos de terceiros. E, para ele, o reconhecimento da união homoafetiva
fortalece a família.
De acordo com Gurgel, a discriminação em relação aos casais formados por pessoas
do mesmo sexo compromete a capacidade dos homossexuais de viver a plenitude de
sua opção sexual. "Embaraça o exercício da liberdade e o desenvolvimento da
identidade de um número expressivo de pessoas", disse.
O PGR citou dados do IBGE, de acordo com os quais há 60 mil casais homossexuais
no país. "E o número é certamente maior do que o dos dados oficiais. A união
entre pessoas do mesmo sexo enquadra-se no plano dos fatos", afirmou.
O advogado Luís Roberto Barroso, que representado o governo do Rio de Janeiro,
subiu à tribuna para falar que a história da civilização é a história da
superação do preconceito. E lembrou de casos em que homossexuais foram punidos
apenas por declarar sua opção sexual. De acordo com Barroso, o Supremo deve
impor o mesmo regime jurídico das uniões estáveis convencionais às relações
homoafetivas. Entender diferente, sustentou, significa depreciar e dizer que o
afeto delas vale menos.
"Duas pessoas que unem seu afeto não estão numa sociedade de fato, como uma
barraca na feira. A analogia que se faz hoje está equivocada. Só o preconceito
mais inconfessável deixará de reconhecer que a analogia é com a união estável",
afirmou Barroso. O advogado também frisou que o direito das minorias não deve
ser tratado necessariamente pelo processo político majoritário. Ou seja, pelo
Congresso Nacional. "Mas sim por tribunais, por juízes corajosos", disse.
O advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, também defendeu o reconhecimento
das uniões homoafetivas. "O reconhecimento dessas relações é um fenômeno que
extrapola a realidade brasileira e o primeiro movimento de combate à
discriminação que sofrem esses casais vem do Estado, com o reconhecimento de
benefícios previdenciários", afirmou.
Outros seis amici curiae defenderam as uniões homoafetivas. Contra o
reconhecimento, falaram dois amici. A principal foi a Confederação Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB). O advogado Hugo José Cysneiros, que representou os
bispos, começou com argumentos pesados. "Poligâmicos, incestuosos, alegrai-vos.
Afinal, vocês também procuram afeto", disse em contraponto às sustentações que
pregaram que o afeto não pode ter distinção entre homossexuais e heterossexuais.
"A pluralidade tem limites", afirmou Cysneiros.
Quando passou aos argumentos jurídicos, Cysneiros sustentou que "uma lacuna
constitucional não pode ser confundida com não encontrar na Constituição aquilo
que eu quero ler". De acordo com ele, a CNBB não entrou nos processos para
"trazer seu catecismo, nem citar textos bíblicos", mas para pedir "o raciocínio,
a análise, tendo como referência o texto constitucional".
Cysneiros disse que com o texto legal claro no sentido de que a "união estável
se dá entre o homem e a mulher", não cabia espaço para interpretações. E
concluiu dizendo que a depender do resultado do julgamento, portar uma Bíblia
poderia ser considerado crime. Outros sete amici curiae foram admitidos na ação,
mas não fizeram sustentações orais.
Pedido duplo
O julgamento do Supremo foi feito com base em duas ações. Uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade e uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
A ADPF foi transformada em ADI depois que se verificou que um de seus pedidos, o
reconhecimento de benefícios previdenciários para servidores do estado do Rio de
Janeiro, já havia sido reconhecido em lei.
A ADI foi ajuizada pela Procuradoria-Geral da República com dois objetivos:
declarar de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade
familiar e estender os mesmos direitos dos companheiros de uniões estáveis aos
companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.
O argumento principal da ADPF transformada em ADI, proposta pelo estado do Rio
de Janeiro, foi o de que o não reconhecimento da união homoafetiva contraria
preceitos fundamentais constitucionais como igualdade e liberdade e o princípio
da dignidade da pessoa humana. Os dois pedidos foram acolhidos,
No final do julgamento, o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil, Ophir Cavalcante Junior, comemorou o resultado. "A decisão do STF
deve ser aplaudida na medida em que confere uma interpretação à Constituição
compatível com os princípios da igualdade e da dignidade do ser humano. Trata-se
de um fato presente na vida da sociedade brasileira e que merecia reconhecimento
pelo Judiciário no sentido de garantir os direitos decorrentes de uma situação
semelhante a da união estável constitucionalmente previsto", afirmou.
<https://www.conjur.com.br/2011-mai-05/supremo-tribunal-federal-reconhece-uniao-estavel-homoafetiva>
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