Hélio Schwartsman - Sobre a alma
SÃO PAULO - Depois do festival de
hipocrisia que foi a última campanha presidencial, com os principais candidatos
se esforçando para posar de coroinhas, é quase um bálsamo ver uma autoridade
pública assumindo claramente posição pró-aborto, como o fez a nova ministra das
Mulheres, Eleonora Menicucci. E, como ela própria defende que a questão seja
debatida, dou hoje minha modesta contribuição.
O argumento central dos antiabortistas é o de que a vida tem início na concepção
e deve desde então ser protegida. Para essa posição tornar-se coerente, é
necessário introduzir um dogma de fé: o homem é composto de corpo e alma. E a
Igreja Católica inclina-se a afirmar que esta é instilada no novo ser no momento
da concepção. Sem isso, a vida humana não seria diferente da de um animal e o
instante da fusão dos gametas não teria nada de especial.
O problema é que ninguém jamais demonstrou que a alma existe e muito menos que
se instala no embrião quando da fecundação do óvulo.
Na verdade, é difícil conciliar a noção de alma com o que sabemos de biologia.
Um bom exemplo é o fenômeno da gemelaridade. Gêmeos monozigóticos (idênticos) se
formam entre um e 14 dias depois da fertilização, quando o embrião sofre um
desenvolvimento anormal dando lugar a dois ou mais indivíduos com o mesmo
material genético.
A alma, é claro, já estava lá. Cabem, assim, algumas perguntas. Ela também se
divide, ou outras almas surgem para animar os demais irmãos? De onde elas vêm?
Quem fica com a "original"? E, se gêmeos partilham a mesma alma, como fica o
livre-arbítrio? Se um irmão peca, leva o outro ao inferno? Ou a alma boa
prevalece sobre a má, carregando para o paraíso uma ovelha negra?
Se é a noção de alma que sustenta teologicamente a oposição ao aborto, no plano
biológico ela só cria confusão. Façam suas escolhas. Eu fico com a biologia.
[email protected]