O aborto e a má fé
A falsa polêmica em torno da lei que protege as vítimas
de violência sexual mostrou que o nível da campanha de 2014
poderá ser ainda mais baixo do que na disputa de 2010
ELIANE BRUM
12/08/2013 10h39 - Atualizado em 15/08/2013 12h50
Em 1º de agosto, a presidente Dilma Rousseff (PT) sancionou
sem vetos a lei que obriga os hospitais a prestarem
atendimento integral e multidisciplinar às vítimas de
violência sexual. Nas semanas anteriores, a presidente foi
pressionada e até ameaçada por religiosos para que não
sancionasse o texto, aprovado na Câmara e no Senado. Dilma
aprovou. Na semana passada, deputados
da bancada religiosa do Congresso apresentaram vários
projetos com o objetivo de anular a lei e católicos ligados
ao grupo Pró-Vida e Pró-Família anunciaram uma vigília de
protesto diante do Palácio do Planalto, segundo a
Folha de S. Paulo. A polêmica se apega ao direito de
acesso das vítimas à pílula do dia seguinte (pílula
anticoncepcional com uma dosagem maior de hormônios), que as
impediria de engravidar do estuprador. Com isso, alguns
representantes evangélicos e católicos dizem que, na
prática, a lei estaria legalizando o aborto no Brasil. É
preciso se espantar – e muito – antes que a má fé se
naturalize, carregando com ela avanços históricos no campo
dos direitos humanos. A entrada do
tema do aborto como instrumento de chantagem na campanha
presidencial de 2010 iniciou um ciclo de retrocessos que
marcou o governo Dilma. E, como ficou claro na polêmica
que envolveu a lei do atendimento às vítimas de violência
sexual, tem potencial para levar o debate político para as
catacumbas em 2014.
A polêmica, para começar, é falsa. Militantes e representantes religiosos sabem muito bem disso. O aborto em caso de violência sexual é permitido no Brasil desde 1940. Qualquer mulher, ao descobrir-se grávida do estuprador, tem o direito legal de abortar. Não é melhor que, em vez de enfrentar o aborto do filho do estuprador, a mulher violentada tome a pílula do dia seguinte e evite uma gestação? Que tipo de gente é capaz de protestar contra isso e por quê?
O mais curioso, nesta lei, o que poderia revoltar pessoas de boa fé, é o fato de, em pleno século 21, ser preciso fazer uma lei para obrigar hospitais a dar assistência emergencial a vítimas de violência sexual. Então os hospitais se recusam, apesar de ser um direito legal e uma questão básica da mais primária compaixão humana? Não seria este o escândalo?
Deveria ser, mas não é. Espertamente estabelece-se uma falsa polêmica para enganar incautos e mal informados, com objetivo de aumentar o apoio popular para pressionar por retrocessos na legislação que protege os direitos da mulher e o acesso à saúde pública. Assim como para aumentar o poder de barganha nas eleições presidenciais de 2014, anunciando o início – ou a continuação – de uma campanha suja, que se vale de ameaças e difamação.
Se o embate em torno do aborto atravessa a história, talvez tenha sido a campanha de 2010 o momento de mais baixo nível desde a redemocratização do país. A campanha de 2010 abriu a porta para todas as leviandades e recuos que se seguiram. E, nisso, José Serra (PSDB), primeiro, e Dilma Rousseff, depois, tem e terão para sempre responsabilidade.
Devemos lembrar
que, no final do primeiro turno de 2010, a internet e as
ruas foram tomadas por uma campanha na qual se afirmava que
Dilma era “abortista” e “assassina de fetos”. Dilma começou
a perder votos entre os evangélicos e alguns bispos e padres
católicos exortaram os fiéis a não votarem nela. Serra
empenhou-se de corpo e alma em tirar proveito da baixaria,
determinando o rumo da campanha dali em diante. E
Dilma correu a buscar o apoio de
religiosos, no qual teve papel central o deputado Gabriel
Chalita (PMDB). Acabou por escrever uma carta declarando-se
“pessoalmente contra o aborto”, na qual se comprometia, em
caso de vencer a eleição, a não propor nenhuma medida para
alterar a legislação sobre o tema.
Logo, tanto Serra quanto Dilma despontaram no espetáculo
eleitoreiro como devotos tomados por um fervor religioso até
então desconhecido de quem acompanhava a sua trajetória.
Serra apregoou que tinha “Deus no peito”, Dilma que
agradecia “a Deus pela dupla graça”, repetindo que fazia
“uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”. No
programa de Serra mulheres grávidas desfilavam pela tela
porque o candidato prometia cuidar dos bebês mesmo antes de
nascerem. (Escrevi sobre isso
aqui.) Na campanha de 2012 à prefeitura de São Paulo, na
tentativa de obter o apoio de setores religiosos
conservadores e melhorar o desempenho nas pesquisas, Serra,
como devemos lembrar, escolheu outro alvo para atacar seu
principal adversário, Fernando Haddad (PT): o “kit gay”
(cartilha anti-homofobia produzida para trabalhar nas
escolas conceitos como tolerância e respeito às diferenças).
Ao longo do seu governo, Dilma tem capitulado diante da
bancada religiosa em quase todas os embates ligados aos
direitos de mulheres e de homossexuais. Como ao suspender a
distribuição do kit anti-homofobia produzido na gestão de
Fernando Haddad como ministro da Educação, abrindo espaço
para os ataques que vieram depois. A lista de recuos é
longa, sendo um dos mais recentes o cancelamento do vídeo de
uma campanha de prevenção de doenças sexualmente
transmissíveis, nos quais uma prostituta dizia ser feliz.
Dilma capitulou tanto, desde que assumiu o cargo, que houve
até uma certa surpresa quando ela aprovou integralmente a
lei que obriga os hospitais a prestar atendimento a vítimas
de violência sexual. Afinal, tornara-se difícil ter certeza
se Dilma ainda seria capaz de não capitular diante de uma
queda de braço.
A presidente capitulou o suficiente para, poucos dias antes
de o prazo para a lei ser sancionada ou vetada se esgotar,
ter sido ameaçada por membros do movimento Pró-Vida, como
está contado nessa matéria de
O Globo, comentada depois por Drauzio Varella, em sua
coluna na
Folha de S. Paulo. Em audiência com o ministro Gilberto
Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência da República,
como conta o repórter Evandro Éboli, um dos representantes
do movimento católico Pró-Vida afirmou que, se não houvesse
veto ao projeto, a campanha anti-Dilma voltaria em 2014. A
ameaça está explícita no documento entregue ao ministro e
protocolado na presidência da República: “As consequências
(da sanção do projeto) chegarão à militância pró-vida,
causando grande atrito e desgaste para Vossa Excelência,
senhora presidente, que prometeu em sua campanha eleitoral
nada fazer para instaurar o aborto em nosso país”. Em 2010,
a Polícia Federal apreendeu mais de 19 milhões de panfletos
associando a liberação do aborto a então candidata Dilma
Rousseff. Em julho, circulou na internet a seguinte
campanha: “Dilma, não sancione. Não quero sangue inocente em
minhas mãos!”. A frase era acompanhada pela imagem de uma
mulher com as mão sujas de sangue.
Nas frentes evangélicas conservadoras, Marco Feliciano (PSC), o pastor que ganhou fama – e provavelmente mais eleitores – ao ser alçado à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara sob intenso protesto, também ameaçou o PT por diversas vezes, acenando com retaliações na campanha de 2014. Depois da sanção da lei que protege as vítimas de violência sexual, exortou os fiéis a não votar em Dilma.
A má fé é evidente. Ao garantir o atendimento emergencial das vítimas de violência sexual, com acesso à pílula do dia seguinte, o número de abortos cai, na medida em que a gravidez não se concretiza. Mesmo tendo direito legal a um aborto em caso de estupro, as mulheres não teriam de passar por mais esse sofrimento. O que acontecia era que muitos hospitais não asseguravam assistência às vítimas, deixando-as desamparadas. É importante sublinhar que a violência sexual no Brasil é um problema de saúde pública: estima-se que a cada 12 segundos uma mulher é estuprada, com todas as consequências físicas e psicológicas resultantes desse crime. Entre 2005 e 2010, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de estupros registrados aumentou em 168%. Entre 2009 e 2012, conforme dados do Ministério da Saúde, os estupros notificados cresceram 157%. Vale a pena lembrar que a violência sexual é um crime marcado pela subnotificação, já que parte das vítimas tem vergonha e medo de registrar a ocorrência, inclusive porque não são raros os casos em que elas são humilhadas nos postos policiais e mesmo nas delegacias de mulheres. A lei aprovada obriga os hospitais a prestar atendimento multidisciplinar: além de anticoncepção de emergência, o direito a diagnóstico e tratamento das lesões no aparelho genital; amparo médico, psicológico e social; prevenção e combate de doenças sexualmente transmissíveis; realização de exame de HIV; acesso a informações sobre direitos legais e serviços disponíveis na rede pública.
Que tipo de gente pode ser contra uma lei que ampara vítimas de violência sexual, lançando uma falsa polêmica e manipulando o tema do aborto para fins eleitorais?
A mais recente
ofensiva do lobby religioso conservador dá uma ideia do que
espera o país no ano que vem. O debate político foi
rebaixado na campanha de 2010, primeiro e principalmente por
Serra, depois por Dilma – e seguiu rebaixado nos últimos
anos, como constata qualquer um que acompanhe minimamente o
noticiário. Se o aborto, a quinta causa de morte materna no
Brasil, fosse de fato discutido com seriedade não só, mas
também no curso do processo eleitoral, seria um grande
avanço. O atual governo já foi inclusive cobrado por peritos
da ONU por não enfrentar a questão e permitir a morte de
brasileiras. O SUS gasta cerca de R$ 30 milhões anuais em
curetagens, a maioria delas resultante de abortos mal feitos
em clínicas clandestinas, sem nenhuma condição sanitária, ou
mesmo no banheiro de casa, por brasileiras pobres e
desesperadas (leia
aqui). Um número, como se vê, que deveria merecer a
atenção do Estado. Mas enfrentar a questão com a seriedade
necessária nenhum dos candidatos costuma querer, o que faz
com que o tema seja reduzido a instrumento de chantagem a
cada eleição.
Quando se abre mão dos princípios e se rasga a biografia
para angariar votos e aliados de ocasião, é preciso saber
que a chantagem nunca mais vai parar. Pelo contrário, depois
que o flanco é aberto e o sangue aflora, a sanha aumenta.
Basta ver o que corre nos sites e blogs dos “militantes
pró-vida” para se ter uma ideia do nível da campanha que
nunca parou. Uma pequena amostra são as miniaturas de fetos
– e até terços de fetos – distribuídas durante a visita do
Papa. Que, pelo menos desta vez, Dilma Rousseff tenha
resistido e aprovado integralmente uma lei que assegura o
cumprimento da Constituição é uma boa notícia. Mas o fato de
que uma mera questão de bom senso e de garantia dos direitos
humanos mais básicos, como assegurar assistência a vítimas
de violência sexual, tenha sido saudada como um avanço – e,
em alguns setores, até como “coragem” – mostra o nível a que
despencou o debate.
A campanha de
2014, que obviamente já começou, vai mostrar até onde a
chantagem chegará – e como cada candidato lidará com ela. E
também como cada eleitor vai olhar para religiosos que
transformam Deus em moeda eleitoral.
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)
http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/eliane-brum/noticia/2013/08/o-babortob-e-ma-fe.html