AGRONEGÓCIO FINANCIA O MITO DE QUE
AQUECIMENTO GLOBAL É FRAUDE
Agronegócio banca palestras que espalham mito de que aquecimento global pelo
homem é fraude
Juliana Gragnani - @julianagragnani
Da BBC News Brasil em Londres
18 novembro 2021
As Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) de Meio Ambiente (CMA)
realizam audiência pública conjunta para tratar sobre questões relacionadas às
mudanças climáticas e ao aquecimento global. Foto tirada em 28 de maio de 2019
Crédito, Geraldo Magela/Agência Senado
Legenda da foto,
Luiz Carlos Molion, professor aposentado da Universidade Federal de
Alagoas, disse em uma de suas palestras que aquecimento
global "é uma farsa"
Uma sala repleta de estudantes de agronomia assiste a uma palestra sobre
mudanças climáticas no Brasil. Estão em uma faculdade no Estado do Mato Grosso,
maior produtor de soja do país, ouvindo falar um professor da Universidade de
São Paulo. Mas o que escutam é o contrário do que acredita
a esmagadora maioria da comunidade científica do mundo. Ali, a mensagem
transmitida é de que não existe aquecimento global causado
pelo homem.
"Os objetivos [de quem fala em mudanças climáticas] são congelar os países em
desenvolvimento. O Brasil é o principal foco dessas operações que envolvem meio
ambiente e clima. A ideia da mudança climática e dessas questões ambientais são
para segurar o nosso desenvolvimento", afirmou o palestrante, o meteorologista
Ricardo Felicio, sem respaldo científico, em uma entrevista concedida após o
evento que aconteceu em 2019.
Na realidade, segundo o último relatório do Painel Intergovernamental sobre
Mudanças Climáticas (IPCC), de agosto deste ano, o papel da influência humana no
aquecimento do planeta é "inequívoco". É para limitar as mudanças climáticas por
meio da redução na emissão de gases de efeito estufa que líderes se reuniram nas
últimas duas semanas na COP26 em Glasgow, no Reino Unido.
No Brasil, a maior causa de emissões de dióxido de carbono é o desmatamento
feito para expansão da agricultura e da pecuária.
Mas, na contramão do que diz a
ciência, associações do agronegócio — de fazendeiros de soja, passando por
cafeicultores, sindicatos rurais, faculdades ligadas a agronomia e até uma
empresa de fertilizantes — estão bancando palestras dos chamados "negacionistas
climáticos", pessoas que não acreditam que existam mudanças climáticas causadas
pelo homem e que apresentam esse fato como uma fraude. As apresentações são
direcionadas a outros fazendeiros, produtores rurais ou estudantes de agronomia.
Agricultores transformam deserto em
floresta no Semiárido
A reportagem contou ao menos 20 palestras do tipo nesses ambientes nos últimos
três anos feitas por Felicio e por outro professor. A citada no início desta
reportagem aconteceu em 2019, e fez parte de um circuito universitário de um
total de 11 palestras com o nome "Aquecimento global, mito ou realidade?" em
nove faculdades e dois sindicatos no Mato Grosso. Todas elas foram bancadas pela
Aprosoja Mato Grosso, a associação de
produtores de soja e milho do Estado, maior produtor de soja do Brasil.
Ao mesmo tempo em que negam o aquecimento global antropogênico, as palestras
pagas e vistas por ruralistas os absolvem de reconhecer seu papel nas mudanças
climáticas. Elas seriam, de acordo com o conteúdo contrário ao consenso
científico apresentado pelos professores, somente fruto de variações naturais,
sem interferência alguma do homem.
Ao contrário desse setor "negacionista" do agronegócio, o presidente do conselho
diretor da Associação Brasileira do Agronegócio, Marcello Brito, diz que a
associação se pauta "pela melhor ciência" e que "jogar fora a ciência porque ela
não nos traz só vantagens, mas também deveres, é no mínimo contraproducente,
jogando contra a melhoria contínua".
Palestras
Felicio, o professor do departamento de Geografia da USP contratado pela
Aprosoja Mato Grosso em 2019, é conhecido por suas posições controversas —
ultimamente, em relação à pandemia de covid-19. Em um vídeo publicado em agosto
deste ano em seu canal do YouTube, chamou a pandemia de "fraudemia" e
disse, sem base científica, que vacinas causam danos
maiores que a covid-19. Em outro, afirmou que
máscaras não são efetivas contra a covid-19. É também um notório
negacionista das mudanças climáticas causadas pelo homem. Ficou conhecido em
2012, quando foi convidado ao Programa do Jô, da Globo, e, sem provas, negou o
efeito estufa.
Professor da USP Ricardo Felicio, então presidente da Comissão de Relações
Exteriores, senador Nelsinho Trad (PSD-MS), diretor do Departamento de Meio
Ambiente do Itamaraty, ministro Leonardo Cleaver de Athayde e professor
aposentado da Ufal Luiz Carlos Molion
Crédito, Geraldo Magela/Agência Senado
Legenda da foto,
Ricardo Felicio (no canto esquerdo) e Luiz Carlos Molion (no canto direito) dão
palestras pelo Brasil; na foto, eles participam de audiência pública no Senado
Durante três semanas, a reportagem tentou falar com Felicio por telefonemas,
mensagens de texto e e-mails, mas não obteve resposta. O vice-presidente da
Aprosoja Mato Grosso, Lucas Beber, justificou o convite em entrevista à BBC News
Brasil.
"A gente trouxe o Ricardo Felicio para fazer um contraponto com aquilo que é
replicado na mídia hoje, que parece uma verdade absoluta. A gente não queria
impor aquilo como uma verdade, mas sim trazer a um debate", afirma. Para ele, as
mudanças climáticas causadas pelo homem ainda são uma "incerteza" — embora já
haja consenso científico em torno delas. Beber também disse não se lembrar
quanto custou o ciclo de 11 palestras feitas por Felicio naquele ano.
Silos de soja e plantação
Crédito, Getty Images
Legenda da foto,
Vice-presidente da Aprosoja Mato Grosso diz que convite a professor considerado
negacionista se deu para promover 'contraponto com o que é replicado na mídia'
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No ano passado, o meteorologista também foi convidado para falar no Tecno Safra
Nortão 2020, uma feira para produtores rurais, lideranças, técnicos,
pesquisadores e estudantes organizada pelo sindicato rural de Matupá, município
no norte de Mato Grosso.
Segundo o vice-presidente do sindicato, Fernando Bertolin, ao menos cem pessoas,
entre pequenos e grandes agricultores, pecuaristas e outras pessoas da cidade
assistiram à palestra. Ele defende o convite, dizendo que, à época, Felicio
estava "bem forte na mídia" e que sua palestra "foi um pedido dos produtores".
"A gente ouve todo mundo. Ele tem o embasamento teórico dele e a gente queria
saber por que ele dizia aquilo."
Bertolin diz não se recordar do valor da palestra de Felicio de cabeça, mas
afirma que nenhuma das contratadas pela feira custou mais de R$ 15 mil.
Em 2018, Felicio concorreu, sem sucesso, ao cargo de deputado federal pelo PSL,
antigo partido do presidente Jair Bolsonaro.
Um ano antes, o presidente tuitou um vídeo de uma entrevista em que Felicio nega
a existência de mudanças climáticas causadas pelo homem. Bolsonaro escreveu:
"Vale a pena conferir". Consultada pela BBC News Brasil sobre esta recomendação
feita por Bolsonaro, a assessoria da Presidência não respondeu.
O professor não foi aclamado apenas pelo presidente. Em 2019, Felicio foi
convidado para dar uma palestra no Senado ao lado de outro acadêmico que não
acredita no aquecimento global causado pelo homem, o professor aposentado da
Universidade Federal de Alagoas (Ufal), meteorologista Luiz Carlos Molion.
O convite para que os professores falassem em uma audiência pública conjunta das
comissões de Relações Exteriores e de Meio Ambiente do Senado sobre as mudanças
climáticas partiu do senador do Acre Marcio Bittar (hoje PSL, mas, na época, do
MDB), um ex-pecuarista que faz parte da bancada ruralista.
Ao lado de Felicio, Molion é considerado um dos principais representantes do
negacionismo climático no Brasil e autor das outras palestras contabilizadas
pela reportagem.
Nos últimos três anos, Molion fez diversas palestras promovidas por entidades
como a Cooperativa Agrícola de Unaí, em Minas Gerais, a Associação Avícola de
Pernambuco, a Associação de Engenheiros e Arquitetos de Itanhaém, com o
patrocínio oficial do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de São Paulo,
a Central Campo, uma empresa especializada na venda de insumos agrícolas, a
Feira Agrotecnológica do Tocantins, do governo do Tocantins, a feira de
Agronegócios da Cooabriel, uma cooperativa de café com atuação no Espírito Santo
e na Bahia, e o sindicato rural de Canarana, no Mato Grosso.
Molion também foi convidado para falar em universidades: o Instituto de Ciências
Agrárias da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Federal
da Paraíba (UFPB). A BBC News Brasil procurou todas essas instituições para
comentar sobre os convites que fizeram a Molion — leia as respostas abaixo e no
fim desta reportagem.
A maior parte dessas palestras tem como tema as perspectivas climáticas para o
ano seguinte e as "tendências para os próximos 10 anos". Nas palestras — a
maioria disponível no YouTube e vistas pela BBC News Brasil —, Molion de fato
faz previsões para o ano seguinte, útil para que os produtores rurais se
planejem para as próximas safras, mas reserva a última parte da palestra para
falar sobre como o "aquecimento global é uma fraude" — novamente, uma afirmação
sem embasamento científico.
Ele mostra um slide na parte final em sua apresentação de Powerpoint, com suas
palavras finais. O texto da apresentação diz que o clima "varia por causas
naturais", e que "eventos extremos sempre ocorreram". Afirma, também:
"Aquecimento global é mito. CO2 não controla o clima, não é vilão (…) Redução de
emissões: inútil!"
A patch of deforested land in the Amazon rainforest
Crédito, AFP
Legenda da foto,
Segundo o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas (IPCC), de agosto deste ano, o papel da influência humana no
aquecimento do planeta é "inequívoco"; no Brasil, a maior causa de emissões de
gases do efeito estufa é o desmatamento
Na palestra promovida pela Secretaria de Agricultura, Pecuária e Aquicultura do
governo do Tocantins em maio de 2020, por exemplo, Molion afirmou, contrariando
a ciência, que o "aquecimento global é uma farsa, é um mito". "Reduzir emissões
como quer esse Acordo de Paris de 2015 é inútil, o Brasil tinha que pular fora
porque reduzir emissões não vai causar nenhum benefício para o planeta, para o
clima, porque o CO2 não controla o clima", disse, indo contra a esmagadora
maioria da produção científica dos últimos anos e aos esforço global de selar
acordos para diminuir as emissões dos gases de efeito estufa.
A secretaria disse que o convidou, ao lado de outros palestrantes, para "alinhar
o setor agropecuário quanto às diversas correntes existentes e auxiliá-los no
seu planejamento e tomadas de decisão mais assertivas para seu empreendimento
rural".
Depois, em outubro de 2020, em um seminário virtual promovido pela Central
Campo, uma empresa mineira especializada na venda de insumos agrícolas, Molion
fez as mesmas afirmações sobre o CO2 e o Acordo de Paris.
O diretor da empresa, Artur Barros, disse por e-mail à BBC News Brasil que a
empresa "sempre soube do posicionamento do professor Molion, que é muito
pragmático quanto às questões climáticas" e "o profissional que tem maior
assertividade nas previsões". "A Central Campo, assim como grande parte dos
produtores atendidos pela empresa, está muito alinhada ao posicionamento do
professor Molion".
À BBC News Brasil, Molion afirmou: "Procuro usar minhas palestras para o
agronegócio, que não são poucas, para no terceiro bloco falar sobre as mudanças
climáticas e a farsa do CO2 como controlador do clima global. Faço um
diagnóstico local, previsão para safra e depois falo sobre a tendência do clima
dos próximos dez, 15 anos, que é de resfriamento."
Segundo Molion, ele dá 50 palestras por ano, "a grande maioria, 80%, 85% para o
agronegócio", cobrando R$ 4 mil por cada uma. Barros, da Central Campo, afirmou
que foi este o valor que pagou pela palestra do professor.
O meteorologista diz que não se incomoda de ser chamado de "negacionista",
embora, ressalte, nunca tenha negado que houve aquecimento no planeta em um
período específico no passado. "Eu levo o que acho que está correto, pode ser
que daqui a alguns anos me provem que estou errado e vou reconhecer isto. Não
sou paraquedista. Eu tenho visão muito crítica do clima local e global graças ao
meu treinamento."
Um dos seminários mais recentes de que participou teve também a presença de
membros do governo Bolsonaro: o vice-presidente Hamilton Mourão e o ministro de
Infraestrutura, Tarcisio Freitas. Foi um seminário virtual sobre a Amazônia em
agosto deste ano organizado pelo Instituto General Villas Bôas, ONG do
ex-comandante do Exército.
Contrariando o consenso da comunidade científica sobre as mudanças climáticas,
Molion defendeu que o clima global varia naturalmente, sem influência da ação
humana, e apresentou um slide em que dizia que o efeito-estufa, "como descrito
pelo IPCC, é questionável". Antes de passar a palavra para o ministro Freitas,
afirmou: "CO2 não é vilão, quanto mais CO2 tiver na atmosfera, melhor".
Mourão fala, com bandeira do Brasil ao fundo
Crédito, Adnilton Farias/Palácio do Planalto
Legenda da foto,
Vice-presidente Hamilton Mourão participou de seminário sobre a Amazônia que
teve a participação do professor Luiz Carlos Molion; sua assessoria disse que
ele se baseia em 'dados científicos para emissão de suas ideias e opiniões'
A BBC News Brasil procurou a vice-presidência questionando por que Mourão
aceitou participar de um seminário ao lado de um professor que nega que a ação
do homem esteja contribuindo para o aquecimento global. Sua assessoria disse
apenas que Mourão participou do evento a convite do Instituto General Villas
Bôas e que "baseia-se em dados científicos para emissão de suas ideias e
opiniões".
A assessoria do ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, afirmou que ele
participou do seminário após convite feito pelo próprio general Villas Boas. A
ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina, foi
inicialmente anunciada como um dos nomes de ministros que participariam do
seminário, mas sua assessoria informou que ela não participaria do evento, sem
responder por que desistiu.
Negacionismo climático no Brasil
A genealogia do negacionismo climático no Brasil começa nos anos 2000, quando a
imprensa "dava pesos iguais para argumentos com pesos totalmente diferentes",
avalia o sociólogo Jean Miguel, pesquisador associado da Unifesp que estuda o
tema. O debate sobre o assunto no Brasil se deu principalmente a partir do
documentário americano Uma Verdade Inconveniente (2006), sobre a campanha do
ex-vice-presidente americano Al Gore a respeito do aquecimento global.
Enquanto isso, um grupo pequeno de negacionistas na academia brasileira,
incluindo Felicio e Molion, se pronunciavam publicamente sobre o tema. Para
Miguel, eles são "verdadeiros mercadores da dúvida, trabalhando para destacar
lacunas que toda ciência possui e amplificar incertezas".
"[E quem os ouviu no Brasil] foi parte do agronegócio interessado na
desregulamentação florestal", responde Miguel.
Hoje, "as palestras fazem massagem no ego do produtor rural e criam a
mentalidade de que esses grupos de agronegócio estão sendo injustiçados enquanto
estão contribuindo para o PIB nacional", diz o pesquisador.
Não significa que todos os produtores rurais sejam negacionistas. "A briga hoje
é entre dois lados: o setor de agroexportação, que está mais em contato com
compradores internacionais, portanto mais pressionado pela questão reputacional,
e que faz investimentos a longo prazo, pensando na questão produtiva na próxima
década, não na próxima safra", diz Raoni Rajão, professor de gestão ambiental na
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
"Outro lado do setor são os produtores, mais politizados e fortes apoiadores de
Bolsonaro e toda sua agenda. Eles de certa forma compram esse discurso que toda
a narrativa de mudança climática é algo para poder impedir o desenvolvimento do
Brasil."
Apesar de não começar no governo Bolsonaro, o negacionismo "encontra terreno
fértil para proliferar" em sua gestão, avalia Miguel, citando algumas ações do
governo atual, como o fechamento da secretaria responsável por elaborar
políticas públicas sobre as mudanças climáticas, no início da gestão Bolsonaro
(ela foi reaberta em meio a críticas no ano seguinte) e a desistência em sediara
COP-25 que ocorreria no Brasil em novembro de 2019. Em sua campanha, em 2018,
Bolsonaro também prometeu acabar com o que chamava de "indústria das multas"
ambientais.
O ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, que ficou no cargo do
começo do governo Bolsonaro até março de 2021, chegou a colocar em dúvida que as
mudanças climáticas seriam causadas pela ação humana, na contramão do consenso
científico.
Jair Bolsonaro
Crédito, EPA/Joedson Alves
Legenda da foto,
Para sociólogo, negacionismo climático no Brasil não começou no governo
Bolsonaro, mas encontrou 'terreno fértil para proliferar' em sua gestão
"Eles estão altamente informados pelo negacionismo climático. Mesmo que não
digam que é uma fraude, de uma maneira interna vão criando as possibilidade de
sabotar a ciência e as políticas climáticas nacionais, com formas práticas de
negacionismo climático", afirma Miguel.
Reportagem recente da BBC News Brasil mostrou que o governo Bolsonaro cortou em
93% os gastos para estudos e projetos de mitigação e adaptação às mudanças
climáticas nos três primeiros anos da sua gestão quando comparado com os três
anos anteriores.
Desmatamento
Mas ações práticas terão de ser adotadas para que o Brasil cumpra as metas
anunciadas pelo governo durante a COP-26: zerar o desmatamento ilegal no país
até 2028, reduzir as emissões de gases do efeito estufa em 50% até 2030 e
atingir a neutralidade de carbono até 2050.
O desmatamento, causado pela expansão da agricultura e da pecuária, é
responsável pela maior emissão de CO2 no Brasil.
Só entre agosto de 2019 e julho de 2020, uma área de 10.851 km2 — mais ou menos
metade da área do Estado de Sergipe — foi desmatada na Amazônia Legal, segundo
dados do sistema Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). O
valor representou um aumento de 7,13% em relação ao ano anterior.
Esse crescimento teve um claro reflexo nas emissões de gases poluentes pelo
Brasil em 2020. Houve um aumento de 9,5%, segundo dados do Sistema de
Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do
Clima, principalmente por mudanças no uso da terra e floresta, que inclui o
desmatamento, e a agropecuária. O aumento aconteceu na contramão do mundo que,
parado por conta da pandemia de covid-19, diminuiu as emissões em 7%.
Madeiras
Crédito, Adriano Machado/Reuters
Legenda da foto,
Só entre agosto de 2019 e julho de 2020, uma área de 10.851 km2 - mais ou menos
metade da área do Estado de Sergipe - foi desmatada na Amazônia Legal
Para Tasso Azevedo, coordenador do SEEG, a boa notícia é que, se o Brasil
conseguir controlar o desmatamento, "as emissões cairão muito rapidamente". "Se
controlarmos o desmatamento, não há país no mundo que vai ter emissões menores
proporcionalmente do que temos no Brasil, então acho que é uma oportunidade.
Teremos um resultado incrível para o Brasil e para o planeta."
Apesar de pertencer ao setor responsável pela maior parte de emissões de gases
do efeito estufa no Brasil, parte dos ruralistas diz acreditar ser injustamente
acusada por ambientalistas.
As palestras do meteorologista Felicio no Mato Grosso, em 2019, "foram bem numa
época em que era moda dizer que o agricultor era quem estava acabando com o
mundo", diz o produtor rural Artemio Antonini, presidente do sindicato rural de
Nova Xavantina, no Mato Grosso. Também cético em relação às mudanças climáticas,
Antonini ajudou a organizar a palestra de Felicio na região.
Na opinião de Rajão, da UFMG, "o agro como um todo toma as dores e se sente
ofendido quando se fala de desmatamento". "A reação é negar o desmatamento e a
existência das mudanças climáticas."
"Tomar as dores" porque, de fato, quem desmata primariamente não é produtor
rural. Uma área desmatada começa com uma onda de especuladores - quem demarca a
terra e serra dali a vegetação depois quem tenta regularizar a área -, em
seguida vem o pecuarista e depois vem o agricultor, explica Rajão. "Por isso que
quando dizem que não estão envolvidos com o desmatamento, é verdade, boa parte
deles não está. Mas se beneficiam de um fornecimento de terra barata, que vem de
todo o processo de desmatamento ilegal que às vezes aconteceu 10 anos antes."
A ilegalidade é bastante concentrada. O estudo "As maçãs podres do agronegócio
brasileiro", de Rajão e outros pesquisadores, mostrou que mais de 90% dos
produtores na Amazônia e no Cerrado não praticaram desmatamento ilegal após
2008. Além disso, apenas 2% das propriedades nessas regiões eram responsáveis
por 62% de todo desmatamento potencialmente ilegal. O trabalho foi publicado na
revista Science no ano passado.
'Agrosuicídio'
O agricultor de soja Ilson Redivo também esteve na plateia em uma das palestras
que o professor Ricardo Felicio deu em 2019, no município de Sinop, norte do
Mato Grosso.
Redivo migrou do Paraná para Sinop em 1988, inicialmente trabalhando, como a
maioria dos migrantes, no setor madeireiro. "Era um grande polo madeireiro, e
era o que dava retorno na época", diz. Hoje, ele possui uma fazenda de 4200
hectares de milho e soja na região, e é presidente do Sindicato Rural da cidade.
Ele diz ter gostado da palestra de Felicio. Como ele, o produtor rural também
rejeita a ciência estabelecida sobre o aquecimento global. Ele diz que é uma
"narrativa econômica", não ambiental, criada para conter o desenvolvimento do
Brasil.
"Eu estou há trinta anos aqui, foi desmatado um monte e o clima continua da
mesma forma, tá certo? Não houve alteração climática", diz Redivo à BBC News
Brasil.
Ecoando argumentos já usados por Bolsonaro, o agricultor diz que o Brasil é "um
exemplo para o mundo em preservação ambiental". "O produtor brasileiro é o cara
que mais preserva."
O argumento é repetido por outros produtores rurais. "Ninguém fala que o
agricultor está deixando 80% e só usando 20% da área para produzir", reclama o
produtor rural Antonini.
Gado em area desmatada
Crédito, Reuters
Legenda da foto,
Durante a COP-26, em Glasgow, Brasil prometeu zerar o desmatamento ilegal no
país até 2028
Eles se referem à Reserva Legal, um dispositivo criado no Código Florestal
Brasileiro que obriga os proprietários de terras na Amazônia a preservar 80% da
floresta nativa (no Cerrado, o valor é de 35%; em outros biomas, 20%), algo que
beneficia o próprio agronegócio, por meio dos serviços ambientais prestados pela
floresta. Muitos agricultores acham isso injusto. Mas, na prática, nem todos
respeitam essa exigência.
A pesquisadora do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon)
Ritaumaria Pereira conduziu entrevistas com 131 criadores de gado no Pará em
2013 e 2014 e descobriu que mais de 95% deles declararam preservar menos do que
a quantidade exigida. Segundo ela, argumentam que, quando chegaram, a terra já
estava nua, ou que no passado tinham o estímulo para desmatar, ou que não tinham
recursos para regenerar 80%.
Para Pereira, da Imazon, para que o Brasil consiga cumprir as metas anunciadas
durante a COP-26, será preciso investir em fiscalização na Amazônia,
fortalecendo órgãos como o Ibama e o ICMBio.
Também será preciso combater o discurso do negacionismo climático. A mensagem
transmitida a produtores rurais, diz ela, legitima o desmatamento, e "traz mais
pessoas para esse pensamento, para que, num futuro próximo, validem assim tudo o
que já desmataram".
Para Rajão, da UFMG, é uma narrativa "que no curto prazo é confortante, mas no
longo prazo contribui para o chamado 'agrosuicídio'".
Línea
Posicionamentos de empresas que convidaram professores para palestras
Cooperativa Agrícola de Unaí (Coagril)
A Cooperativa Agrícola de Unaí Ltda (Coagril) diz "ter contratado o professor
Molion no intuito de obter informações acerca do regime de chuvas para a região
de sua atuação, visando ao planejamento estratégico dos seus negócios e de seus
cooperado".
Associação Avícola de Pernambuco
"A AVIPE reforça seu caráter plural onde preza pela diversidade de ideias onde o
debate de todos os pontos de vista precisa ser exaurido constantemente com o
intuito da busca eterna de uma conclusão contingente sobre quaisquer assuntos.
(…) Como associação, não nos cabe acreditar ou não se os fatos humanos causam
mudanças climáticas, pois nosso papel não é de credo, mas sim de apoiar o debate
científico por aqueles que se dedicam toda uma vida em pesquisa. Não condiz com
nossos princípios, condutas e valores, selecionar uma parcela de opiniões do
mundo científico para apoiar determinada conclusão com fins casuísticos ou
individuais. Aspectos financeiros são reservados apenas aos nossos associados."
Associação de Engenheiros e Arquitetos de Itanhaém, com o patrocínio oficial do
Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de São Paulo
A Associação de Engenheiros e Arquitetos de Itanhaém recebeu o pedido da BBC
News Brasil por e-mail e WhatsApp, mas não respondeu.
O Crea-SP respondeu que "tem como missão legal o aperfeiçoamento técnico e
cultural dos profissionais da área tecnológica, conforme a Lei 5.194".
"Os eventos com essa finalidade, realizados pelas associações, são de
responsabilidade de seus idealizadores e não necessariamente representam a
posição do Crea-SP.
O Conselho reforça ainda que acredita em mudanças climáticas causadas pelas
ações humanas e, como forma de apoiar medidas para combatê-las, é signatário dos
17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU."
Cooperativa de café Cooabriel
Recebeu o pedido da BBC News Brasil por e-mail, mas não respondeu.
Sindicato rural de Canarana
O presidente do sindicato, Alex Wisch, respondeu, por mensagem via WhatsApp:
"Propomos que vocês indiquem um cientista de mesmo nível acadêmico do Prof.
Molion para que todos possam ter conhecimento da verdade científica sobre esse
tema. Podemos colaborar financeiramente com esse evento e inclusive sediar o
evento."
Instituto de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Por telefone, o vice-diretor do Instituto de Ciências Agrárias da UFMG, Helder
Augusto, afirmou: "Na universidade, há diversidade de ideias e contrapontos. Não
é um posicionamento da UFMG. É um ponto de vista dele, é uma fala relativa. A
pessoa veio, fez palestra e pode falar o que bem entender porque é um ambiente
público. A universidade não paga palestra para ninguém."
Universidade Federal da Paraíba
"O evento foi realizado no auditório do Centro de Tecnologia da UFPB, organizado
no âmbito do Departamento de Engenharia Mecânica, que aproveitou que o
palestrante já estava em João Pessoa (PB) e o convidou para ministrar palestra
na UFPB, portanto, neste caso em particular, sem ônus para a UFPB.
A iniciativa de convidar o pesquisador para ministrar palestra sobre seus
estudos não se confunde com a visão, missão e valores da UFPB, entre os quais
destaca-se o caráter público e autônomo da Universidade.
A UFPB defende o papel da academia e apoia a ciência e a pesquisa, o
conhecimento gerado a partir de métodos científicos, no intuito de encontrar
soluções para desafios em todas as áreas e geração de benefícios para a
sociedade. Por meio da ciência, as teorias são constantemente testadas, visando
sua comprovação ou substituição por outra teoria que resista à checagem. Não
compete à Universidade aplicar censura prévia à ciência."
<https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59310009>
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