ÁGUA - FALTA AQUI, SOBRA ALI
/2010
"O paradoxo das águas: falta aqui e sobra... também
aqui
Fábio Gandour
Reprodução
FÁBIO GANDOUR, 57, é Cientista-Chefe da IBM Brasil
Tudo no mundo anda mais complicado. E parece que nada e ninguém consegue evitar
um tendência contínua de complexidade crescente. Mas, quando cheguei aqui,
prometi usar a simplicidade como bandeira. E vou manter a promessa! Riscos de
errar? A melhor estratégia para reduzir o risco de cometer grandes erros é
informar-se. Estudar, pesquisar, entender. Principalmente quando se está diante
de coisas de difícil compreensão.
Num certo dia, no meio de dezembro do ano passado, choveu muito em Sampa. Já
aprendi que, quando chove muito, a cidade de São Paulo se complica mais. E foi
essa a motivação que me levou a procurar entender o que acontece nessa hora de
muita chuva. Saí atrás de fontes de informação e agora tento dividir aqui com
vocês as lições aprendidas, de forma simples.
Pra começar, uma constatação paradoxal: se chove muito, por que às vezes falta
água? A partir desse questionamento, fui atrás de conhecimento para compreender
esta situação um tanto complexa.
Água é algo que sempre esteve em nossas vidas. Afinal, nascemos dentro dela.
Temos até a impressão de que conhecemos tudo de água. Talvez isso tenha sido
verdade no passado, quando o planeta era outro e a água também. O essencial da
água ainda vale: quando derramada em algum lugar, ela corre para o ponto mais
baixo e molha o caminho por onde passa. Na superfície do planeta, os rios correm
nesses pontos mais baixos. Rios sempre foram uma fonte segura de água, exercendo
um papel importante na formação das cidades. Mais perto ou um pouco mais longe,
as cidades tinham que contar com um rio como fonte de água.
É para esses rios que corre a água da chuva. Não importa se ela cai no topo da
colina ou no meio do morro, a água sempre vai em direção do ponto mais baixo. E
lá está o rio que, se chove muito, enche de água. Enche tanto que, em alguns
locais, a água ultrapassa as suas margens e inunda os terrenos ao lado do leito
principal, formando aqueles alagados temporários que chamamos de várzeas. A
várzea é parte do rio cheio e, portanto, desaparece quando o volume de água
diminui.
Fizemos as cidades perto dos rios e até aproveitamos o seu traçado para orientar
as ruas e avenidas – muitas delas bem ao seu lado. Acontece que as cidades foram
atraindo pessoas e começaram a crescer. Para crescer, foi preciso arrumar mais
chão. Chão para colocar ruas e avenidas, praças e jardins e construir mais
casas. Nas grandes cidades cortadas por rios, a alternativa foi roubar esse chão
dos rios. Algo como forçar o rio a correr apenas dentro de certos limites, duas
linhas paralelas definidas por muros de concreto, como se o rio aceitasse a
restrição de se comportar educadamente e se limitar a correr no espaço que lhe
foi concedido. Afinal, ao seu redor estão importantes ruas e avenidas, túneis e
viadutos e gente morando. Muita gente em casas e prédios.
Como se não bastasse essa tentativa de impor um código de conduta aos rios, boa
parte do terreno ao seu redor – que antes era terra pura e que, por isto,
absorvia parte da água da chuva que por aí se infiltrava – foi devidamente
impermeabilizada com calçadas, asfalto e moradias. Simples e fácil de entender
que, agora, quando a água cai no alto do morro, ela não mais se infiltra ao
longo do trajeto até o rio, pois esse percurso tornou-se impermeável. Vai tudo
direto para o ponto mais baixo do terreno, onde está o rio devidamente “educado”
para correr somente entre seus muros de concreto.
Tem mais. No caminho para o rio, essa água que cai, e que não consegue se
infiltrar mais na terra, forma enxurradas que “limpam” tudo por onde passam.
Limpam levando o lixo da ruas e calçadas para dentro dos rios. E os rios, que já
tinham sido condenados a seguir adiante entre dois muros, agora também têm seu
leito invadido por detritos, perdendo profundidade. E com isso, sobra menos
espaço para a água passar.
Aí está uma descrição básica de quase tudo que acontece quando chove muito nas
grandes cidades. Os rios transbordam e inundam tudo o que está ao seu redor, mas
não podem ser culpados por isto. Eles não transbordam porque querem e sim porque
não têm alternativa. Afinal, fomos nós que limitamos suas margens,
impermeabilizamos todo o solo ao seu redor e reduzimos a sua profundidade
jogando lixo nas ruas. E, em alguns locais, fizemos ainda pior: quando o rio era
menor, resolvemos que poderíamos fazê-lo correr dentro de um tubo de concreto
para aproveitar o espaço do seu leito com uma avenida. E a placa da obra vai
ostentar o orgulhoso título de “rio canalizado”. Sem dúvida, um cenário
complexo. Mas que pode ser descomplicado, pelo menos em parte.
Começando pelo mais simples, precisamos parar de jogar lixo nas ruas e calçadas.
Sinto falta de cestos de lixo nas ruas de São Paulo. Sem elas, o papelzinho do
chocolate, a guimba do cigarro e a nota fiscal do almoço no “quilo” vão parar no
chão. Nem pensar que basta colocar latas de lixo por aí para que, em uma semana,
todo mundo pare de jogar lixo no chão! Leva tempo, mas o tempo cria o hábito.
Em seguida, algo mais complicado de fazer: será que não chegou a hora de
pensarmos em devolver aos rios o chão que sempre lhes pertenceu? E que tal
darmos a esse mesmo chão alguma chance de absorver um pouco da água que a chuva
despeja? Canteiros de terra viva podem bem ter essa função. Com flores ou apenas
uma graminha, ficariam até melhores de se ver!
Outra alternativa, um pouco mais sofisticada, seria reduzir a carga de trabalho
dos rios diminuindo o volume de água que chega a eles durante as chuvas. O
conceito é simples: basta reter a água da chuva, que cai nos tetos de maior
dimensão, nos reservatórios que hoje armazenam a água tratada pelas
concessionárias.
Armazenar a água das chuvas serve não só para reduzir o volume de água que chega
aos rios, mas principalmente para diminuir o consumo da água tratada, que acaba
faltando quando chega a época da seca. Ou que falta mesmo em época de chuvas,
quando os rios se enchem muito e sujam os mananciais de lama. E esse paradoxo é
causa de outros tantos fatos, pouco explicáveis como o que se observa nesta
imagem: ...
Do lado direito, um teto enorme, ideal para se coletar água da chuva. E do lado
esquerdo, um caminhão com equipamentos de perfuração para construir um poço
artesiano. Vale lembrar que os poços artesianos vão em busca da água que está no
subsolo e que só estará aí se houver infiltração no solo.
Alguém pode estar se perguntando se os problemas ocasionados pela inclemência do
tempo sempre existiram. A melhor resposta que eu encontrei diz que “não”, porque
o tempo não foi sempre como é hoje. A mesma civilização que emparedou os rios e
plastificou o solo está fazendo outras coisas que interferem no comportamento do
tempo. Foi aí que me lembrei da primeira vez que ouvi falar sobre a saúde do
meio ambiente. Corria o ano de 1974 e me caiu nas mãos um livro chamado “Os oito
erros capitais do mundo moderno”, escrito por Konrad Lorenz, um cientista que
havia ganhado o Prêmio Nobel de Medicina no ano anterior. Um desses oito erros
estava descrito no terceiro capítulo do livro, que se chama “A devastação do
ambiente”. Deve ter sido essa a primeira vez em que li algo a respeito de
ecologia. E, ao longo desses mais de 30 anos, pode ser que a consciência do
problema descrito pelo Lorenz tenha aumentado, mas os resultados obtidos para a
sua solução foram apenas modestos.
Enquanto seguia na busca de conhecimento para entender o lado mais complexo de
certas coisas, a COP 15, uma conferência global destinada a resolver os
problemas relacionados com o clima do planeta, chegou ao fim com pouquíssimos
resultados objetivos. De fato, o que se ouviu foi o que sempre se ouve nessas
reuniões internacionais que pretendem melhorar o universo: muitas frases de
efeito, pancadaria em doses homeopática, alguns detidos transitórios, queixas e
reclamações de parte a parte e um resultado final sem muito significado. Talvez
a maior novidade dessa última reunião tenha sido o seu caráter bastante festivo,
como se fosse possível produzir uma ecorave ou um ecopagode. É festa e pronto!
Dezembro caminhou um pouco mais, pronto para levar com ele o fim do último ano
desta primeira década no século XXI, e o clima não deixou por menos! Voltou
raivoso, inclemente, inundando praças centenárias, rompendo pontes, desmoronando
morros e matando gente. Até comecei a me informar sobre declividade de terreno,
porosidade do solo, cartas geológicas, mas o impacto foi tão forte que eu perdi
o fôlego para seguir adiante. Parei aqui.
Vou embora de novo.
Logo volto outra vez. (Época, 14/01/2010 ).
Após ler esse artigo, fiquei pensando: O volume de água no planeta é sempre o mesmo; não aumenta nem diminui. Mas os atos humanos levam ao desequilíbrio, e a água que falta em um lugar excede em outro e provoca desastres.