ARDI - MAIS UM ELO ENCONTRADO
17/10/2009
"Prazer, sou Ardi, sua
tataravó Ela tem 4,4 milhões de
anos. Tem mãos iguais às nossas. É o achado mais importante em 40 anos PETER MOON
ELO PERDIDO?
Ardi viveu na Etiópia. Tinha 1,20 metro e 50 quilos. Era bípede, e
talvez pegasse objetos com as mãos similares às nossas
É o mais perto que nós já chegamos
do elo perdido, o espécime comum entre a espécie humana e os demais
primatas. Seu nome é Ardi, a fêmea de uma espécie que carrega traços tanto
humanos quanto simiescos. Ardi viveu na Etiópia, há 4,4 milhões de anos.
Seu esqueleto, apresentado ao mundo na semana passada, é o mais completo de
todos os hominídeos, as espécies nossas ancestrais. Sua espécie, a Ardipithecus
ramidus, se encaixa perfeitamente no quebra- -cabeça evolutivo. Ela estabelece
uma ponte entre fósseis muito primitivos de 7 milhões de anos, que mais pareciam
gorilas, e a pequena Lucy, a célebre “avó da humanidade”, que viveu na Tanzânia
há 3,5 milhões de anos.
"É provável que a mão humana seja mais primitiva que a dos chimpanzés" Foi o que fizeram gerações e gerações
de antropólogos. Ao seguir essa lógica, os cientistas construíram a imagem de um
ancestral comum que remete a um chimpanzé primitivo. As várias espécies de
hominídeos descobertas no século XX só reforçaram esse modelo. O exemplar
mais completo era Lucy, da espécie Australopithecus afarensis, achada, em
1974, na Tanzânia. Há 3,5 milhões de anos, Lucy havia descido das árvores
para ser bípede. Ela era incontestavelmente humana. O elo perdido com traços
simiescos, portanto, tinha de ser mais antigo. Em 2003, o avanço da genética
permitiu comparar o DNA de homens e chimpanzés. Descobriu- -se que partilhamos
98,5% dos mesmos genes. Considerando a velocidade média das mutações, o elo
perdido viveu há 6 milhões.
O esqueleto de Ardi foi achado no vale do Rio Awash, no Deserto de Afar,
Etiópia. Os primeiros fósseis foram escavados em 1994. De lá para cá, uma equipe
de 47 cientistas de todo o mundo encontrou milhares de fragmentos de mais de 110
indivíduos da espécie Ardipithecus ramidus – que quer dizer, no idioma da tribo
afar, raiz do macaco terrestre. Do fóssil de Ardi sobreviveram partes do crânio,
o maxilar com vários dentes e fragmentos de braços, mãos, bacia, pernas e pés.
Os ossos estavam muito fragmentados e deformados. Corriam o risco de pulverizar
com um simples toque. Por isso, a equipe gastou 15 anos coletando, limpando e
estudando tudo com o máximo de cuidado. Os fragmentos do crânio foram
tomografados pelo antropólogo japonês Gen Suwa, da Universidade de Tóquio. Suwa
precisou de nove anos e 1.000 horas de computação gráfica para reconstruir um
crânio virtual de Ardi. O resultado final é um alentado dossiê com 11 estudos,
publicado na última edição da revista americana Science.
Ver também EVOLUÇÃO HUMANA DESDE
SETE MILHÕES DE ANOS.
Um milhão de anos antes de Lucy, Ardi já caminhava sobre as duas pernas – mas
também pulava de galho em galho. E era grande. Com 1,20 metro de altura e
pesando 50 quilos, Ardi tinha o tamanho de um chimpanzé adulto, nosso mais
próximo parente vivo. Seu cérebro também tinha volume semelhante ao de um
chimpanzé. Mas as semelhanças param por aí. O traço mais impressionante de Ardi
são suas mãos. Não são as mãos de um macaco. Elas são assustadoramente humanas.
As mãos são a melhor ferramenta do Homo sapiens. Graças à versatilidade delas
(com seu polegar opositor) aprendemos a lascar pedras e fazer fogo. Foi com elas
que Shakespeare escreveu Hamlete Michelangelo pintou a Capela Sistina. Daí a
surpresa dos especialistas ao perceber que nossas mãos não são exclusividade
humana – nem modernas. Elas são muito antigas.
Ardi é um enigma. Até sua descoberta, acreditava-se que o ancestral comum entre
homens e chimpanzés fosse um chimpanzé mais inteligente. O simples fato de Ardi
ter existido descarta essa hipótese. Agora, dizem seus descobridores, sabemos
que o elo perdido era muito mais humano. O Homo sapiens é o elo mais recente – e
nada revolucionário – de uma linhagem muito longa. Quem mudou, quem evoluiu
rapidamente e se diferenciou foram os chimpanzés e os gorilas. Ninguém sabe
ainda por quê. “Ardi é a coisa mais próxima que se conhece do ancestral
comum. Ela tem traços que ninguém viu antes”, disse o antropólogo americano
Tim White, da Universidade da Califórnia em Berkeley, na apresentação do novo
fóssil, no dia 1o de outubro, na sede da Associação Americana para o Progresso
da Ciência, em Washington.
Em 1871, Charles Darwin escandalizou o mundo ao afirmar, em A descendência do
homem, que o ser humano e o chimpanzé descendiam de um ancestral comum, “o
elo perdido”. Pai da teoria da evolução, Darwin disse que seria impossível
arriscar quais eram as características daquele ancestral, o que só poderia ser
feito ao encontrar seu fóssil. Na falta dele, a alternativa seria olhar os
gorilas e chimpanzés. Ao estudar suas semelhanças e diferenças com o homem,
previu Darwin, poderíamos imaginar como teria sido o elo perdido.
C. OWEN LOVEJOY, antropólogo da Universidade Estadual Kent
A história evolutiva da humanidade remete ao mito do herói. Nesse caso, nosso
herói era um macaco indefeso. Ele não era dotado da força nem das presas e
garras das feras selvagens. Sua única faculdade era a inteligência. Fazendo uso
de seu dom, ele enfrentou os caprichos da natureza e lutou pela sobrevivência
para, finalmente, tornar-se humano. Quanto aos chimpanzés, teriam permanecido
nas florestas da África, vivendo num estado de inocência primitiva, como sempre
o fizeram, catando e comendo piolhos uns dos outros.
Trata-se de uma visão bela e romântica. Graças a Ardi, agora sabemos que não
condiz com a realidade. “Lucy era um ícone entre os fósseis. Desde sua
descoberta, sempre que imaginávamos como seriam nossos ancestrais, Lucy vinha à
mente – ou um chimpanzé”, diz o antropólogo C. Owen Lovejoy, da Universidade
Estadual Kent, de Ohio. “Essas suposições estavam erradas. Ardi é nossa grande
irmã mais velha.”
Por que não publicar as inúmeras descobertas aos poucos, em vez de esperar 15
anos até ter o estudo completo?, perguntei a Tim White, o líder da pesquisa.
“Quinze anos versus 4,4 milhões de anos. Não vejo problema. Essa descoberta foi
como achar uma cápsula do tempo de um período e um lugar do qual nada sabíamos”,
diz White. “Além do esqueleto de Ardi na capa da Science, coletamos 150 mil
amostras de animais, madeira e do solo. Há roedores, há morcegos, são dezenas de
espécies antes desconhecidas. Para estudar essa avalanche de dados, reunimos os
melhores especialistas do mundo para dissecar essas relíquias únicas e
apresentar os resultados da forma mais ampla possível. Sim, levou 15 anos. Mas
valeu a pena.”
Há 4,4 milhões de anos, a região de Awash era muito diferente da paisagem
inóspita atual. Havia rios, lagos e bosques, que abrigavam uma fauna muito
variada, com diversas espécies de cervos, elefantes, peixes, porcos-espinhos e
macacos. Os dentes de Ardi mostram que, como nós, ela comia de tudo: frutas,
raízes e carne.
“Ardi era muito primitiva. Os humanos retiveram alguns daqueles traços primevos”,
diz Lovejoy. O melhor exemplo são nossas mãos. “É provável que a mão humana seja
mais primitiva que a dos chimpanzés.” Olhe sua mão e entenda. Estique os dedos.
Todos se projetam para a frente, apesar de o polegar poder se mover para o lado.
Agora, coloque a palma da mão sobre uma superfície lisa. Você pode apoiar o peso
do braço nela. Ardi fazia o mesmo. Suas mãos eram parecidas com as nossas,
embora seu polegar fosse mais curto e os outros dedos mais longos. Desde Ardi,
essa anatomia flexível está presente em todos os hominídeos. Mas não nos
chimpanzés. Eles são incapazes de esticar a palma da mão, pois seu polegar é
virado para o lado. Essa característica permite aos chimpanzés segurar melhor
nos galhos das árvores, garantindo-lhes uma destreza arbórea que nos escapa. Há
4,4 milhões de anos, Ardi devia trepar em árvores de forma lenta e cuidadosa.
Não tinha a mesma agilidade dos chimpanzés. Um milhão de anos depois, a tribo de
Lucy perdeu essa habilidade. Sua espécie, a afarensis, era tão desajeitada em
árvores como a nossa.
Se as mãos humanas são uma herança que Ardi nos legou, o mesmo não se pode dizer
dos pés. Apesar de Ardi ser bípede, os dedões dos pés eram virados para o lado,
como nos chimpanzés. Isso significa que Ardi não podia caminhar por longas
distâncias, muito menos correr. Essa habilidade evoluiu com Lucy. Já os
chimpanzés e gorilas ficam em pé eventualmente, mas não caminham. Para se
locomover, eles fecham as patas dianteiras e se apoiam sobre os nódulos do
dedos, coisa que Ardi nunca fez. Para os cientistas, andar apoiando-se nos dedos
das mãos é uma adaptação recente dos chimpanzés, cuja anatomia evoluiu rápido
nos últimos milhões de anos.
Já a mão humana é o fac-símile de um modelo anterior, que se encontra
praticamente estagnado desde os tempos de Ardi. O mesmo argumento vale para o
fato de sermos bípedes. Daí os cientistas inferirem que ambos os atributos são
muito antigos. Eles datam do elo perdido. “O estudo de Ardi nos fez concluir que
o último ancestral comum é bem mais velho que os estudos de DNA indicam”, diz
White. “O ancestral viveu de 6 milhões a 9 milhões de anos atrás e tinha mãos
como as nossas.”
Não havia grande diferença de tamanho entre os machos e fêmeas dos ramidus – um
traço marcante nos gorilas machos, muito maiores que as fêmeas. Ardi dividia seu
tempo entre as árvores e o solo, quando andava ereta. Ao fazê-lo, liberava as
mãos para fazer o que quisesse. Se suas mãos eram parecidas com as nossas, será
que conseguia manusear objetos, como galhos ou instrumentos de pedra?, perguntei
a White. “A possibilidade existe. Mas vasculhamos cada centímetro quadrado de
terreno e não achamos nenhuma pedra ou instrumento lascado.”
A descoberta de Ardi embaralha as peças do tabuleiro científico. Em vez de
consolidar um pensamento antropológico cristalizado por décadas, Ardi veio tirar
o pó dos armários mofados da academia. Sua existência questiona todas as nossas
certezas com relação à origem do homem. E isso é ótimo! Agora, uma nova geração
de cientistas terá a oportunidade de reunir os cacos das velhas teorias para
estabelecer uma nova. Ela deve explicar por que a linhagem humana é tão antiga e
por que os chimpanzés e gorilas se diferenciaram. Como profetizou Darwin há 140
anos, enquanto não se achar o elo perdido, o máximo que os cientistas podem
fazer é usar a imaginação e dar palpites – sempre correndo o risco de estar
redondamente enganados. " (Época, 5 de outubro de 2009, págs. 112-115).