"Ateus, graças a Deus
Conflitos de cunho religioso e pressão cultural de fundamentalistas incentivam
cidadãos a enfrentar o preconceito contra quem não tem fé
Maíra Magro
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Ativistas
Inspirados no movimento
britânico,
Alfredo Spinola (à esq.),
Mauricio Palazzuoli (centro) e Daniel Sottomaior
criaram com outros companheiros uma associação de ateus e agnósticos
brasileiros para garantir visibilidade e pedir
respeito a quem não acredita em divindades
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Quando a roteirista
inglesa Ariane Sherine, 28 anos, leu em um site evangélico que "quem
rejeita o nome de Jesus passará toda a eternidade em tormento no inferno",
ela ficou incomodada. Ateia, a jovem resolveu conclamar os sem-fé a se engajar
em uma contrapropaganda e criou o slogan: "Deus provavelmente não existe.
Agora, pare de se preocupar e aproveite a vida." A iniciativa fez sucesso. A
British Humanist Association (BHA) - organização britânica que defende uma
filosofia humanista baseada na razão se ofereceu para arrecadar dinheiro e
divulgar a frase em lugares públicos de Londres. A meta inicial, juntar 5,5 mil
libras (R$ 17,9 mil), foi alcançada nas primeiras duas horas após a divulgação
da campanha. "Atingimos um ponto nevrálgico", disse à ISTOÉ Hanne Stinson,
diretora-executiva da BHA, que já arrecadou mais de 140 mil libras (R$ 455,1
mil), o bastante para financiar anúncios no metrô de Londres e em 800 ônibus no
Reino Unido. Tudo indica que os milhões de ateus espalhados pelo mundo
cansaram de ouvir sentenças condenatórias
e, de fato, estão ganhando espaço. No Brasil, o fenômeno se repete. Acaba
de ser criada a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), para
dar visibilidade e pedir respeito a quem não tem fé.
A Atea começou a arrecadar dinheiro para uma campanha em São Paulo, semelhante à
dos ingleses. Segundo o presidente da associação, o engenheiro civil paulistano
Daniel Sottomaior, 37 anos, a intenção é garantir consideração social aos
descrentes e aumentar sua autoestima. "Muitos têm vergonha de se declarar
ateus por causa da rejeição", afirma. Com pouco mais de um mês, a
organização conta com 160 membros - mas alguns são agnósticos, ou seja, têm
dúvidas sobre a existência de Deus. No censo de 2000, 7% da população brasileira
declarou não ter religião. Dentro desse grupo, o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) não especifica quais são ateus. Um dos objetivos
da Atea é justamente solicitar ao IBGE que conte o número dos que não acreditam
em divindades.
A organização também quer combater o preconceito que os ateus alegam enfrentar.
Pesquisas comprovam que
a sociedade não tem, de fato, muita simpatia por eles. No ano
passado, a Fundação Perseu Abramo perguntou a pessoas de diversas classes
sociais a opinião sobre alguns grupos minoritários. Empatados com os usuários de
drogas, os ateus vieram em primeiro lugar nos quesitos
"repulsa/ódio", despertados em 17% dos entrevistados, e "antipatia", sentida por
25%. "O pior é quando as pessoas acham que, sem
os valores da religião, os descrentes se tornariam monstros capazes de tudo,
como matar, roubar e violentar", diz a psicóloga paulistana Iara
Hunnicutt, 56 anos, agnóstica. De fato, só existem ateus porque antes há uma
pressão social para que as pessoas acreditem em Deus.
A estudante de direito carioca Isabela Onofre Mota, 18 anos, assumiu, ainda no
ensino fundamental, que não acreditava em Deus. "A
diretora chamou minha mãe para uma conversa. E as pessoas me olharam como se eu
fosse um ET", lembra ela, oriunda de família católica que já fez
peregrinação até em Israel.
Há quem tenha perdido o emprego. Em Vitória da
Conquista, na Bahia, o professor de biologia Silvestre Teixeira Viana Silva, 26
anos, declarou ser descrente em um debate sobre evolução e criação na escola
onde trabalhava. "A diretora me demitiu e falou: onde
os alunos vão chegar com um professor ateu?"
Em tese, os descrentes não teriam motivo para tentar convencer os outros de que
Deus não existe. Mas, de uns anos para cá, integrantes de um movimento
internacional denominado "novo ateísmo" começaram a praticar uma espécie de
pregação da descrença. Ou seja, estão quase criando uma religião - diferente,
mas com o mesmo objetivo de tentar persuadir as pessoas de uma verdade que
julgam ser ideal. Alegam que a fé deve ser combatida por ter consequências
perversas para a sociedade e para os indivíduos. Um dos principais expoentes
do grupo é o zoólogo evolucionista britânico Richard Dawkins. Depois de publicar
em 2006 o best seller Deus: um delírio, ele lançou um movimento
mundial incentivando os ateus a sair do armário. Em vários países, há campanhas
nesse sentido, endossadas por entidades como a União de Ateus e Livres
Pensadores, na Espanha, e a Associação Humanista Americana, dos
Estados Unidos. Em alguns lugares, a ideia encontrou
resistência.
Na católica Itália, a União de Ateus e Agnósticos
Racionalistas (UAAR) se organizou para massificar nos ônibus de Gênova o slogan
"A má notícia é que Deus não existe. A boa, é que não há necessidade" -
mas a concessionária de publicidade nos meios de
transporte públicos proibiu a iniciativa. Considerou que
a frase não se enquadraria no código de ética da propaganda italiana.
Descrentes organizados
Acima,
slogan em ônibus londrino. ao lado, a ateia Isabela Mota, que se sentiu
discriminada no colégio
O ativismo ateísta
ganhou espaço, claro, também na internet. No site de relacionamentos
Orkut, milhares de ateus e agnósticos mostram a cara. Há até uma comunidade
virtual só para eles, o Atheist Nexus, com quase seis mil membros. "Os
meios de comunicação e, particularmente, a internet abriram espaço para a
organização de grupos variados, entre os quais os ateus", diz o sociólogo
especialista em religiões Maurício Vieira Martins, professor da Universidade
Federal fluminense. Também a literatura multiplica títulos dedicados ao tema. Em
Deus não é grande - como a religião envenena tudo, o
jornalista britânico Christopher Hit chens atribui à religião
algumas das grandes mazelas do planeta. "É
violenta, irracional, intolerante, aliada do racismo, do tribalismo e do
fanatismo, baseada na ignorância e hostil à livre reflexão, depreciativa das
mulheres e coerciva para com as crianças", diz.
Talvez Hitchens exagere, mas o mundo todo assiste, alarmado, a uma guerra no
Oriente Médio que tenta ser justificada por discrepâncias religiosas. Não é
a primeira vez que isso acontece e, lamentavelmente, não deverá ser a última.
Mas são esses extremos que levam muitas pessoas a explicar o ressurgimento do
ativismo ateu como reação ao fortalecimento das religiões e do radicalismo da fé.
"Ele poderia ser um contraponto ao extremismo que cria sectarismos e guerras",
diz a antropóloga Regina Novaes. Para ela, o movimento também ganhou força
devido à multiplicação de alternativas religiosas e à maior possibilidade de
escolha de uma fé. Mas há também quem entenda que os ateus representem a
última das minorias silenciosas numa sociedade em que as liberdades individuais
são cada vez mais respeitadas. "Como aconteceu com grupos marginalizados,
levamos um tempo para sair da inércia e nos organizar", afirma Sottomaior, da
Atea.