BATER EM MULHER
26/11/2009
Nem com uma flor
Affonso Romano de Sant'Anna
"Até hoje só bati numa
mulher,
mas com singular delicadeza"
Vinicius de Moraes
Um amigo ia passando pela Avenida Atlântica quando viu um homem batendo numa
mulher dentro de um carro estacionado. Resolveu parar e chamar a polícia. Mas
iam passando pelo calçadão dois garotões atléticos que vendo o tumulto pararam
também para saber. Meu amigo então lhes explica que o sujeito estava batendo na
mulher.
— Mas a mulher não é dele? - indagou o garotão.
— E só porque é dele pode bater? - diz o amigo.
— É, nessa você me pegou, cara.
Nesta semana a OAB descobriu que em Imperatriz, no Maranhão, nos últimos cinco
anos, maridos mataram 30 mulheres. Mas o fizeram por uma razão muito clara: não
queriam pagar pensão nem partilhar os bens na separação. Diante desta
estatística da terra de Sarney, os machos da terra de Tancredo ficam humilhados,
porque eles só matam mulher por "traição", e, mesmo assim, em menor escala.
Mas vou lhes contar outra estória: uma amiga estava em São Paulo numa conversa
sobre espancamento de mulheres. De repente, falou-se de um conhecido professor
que havia espancado a mulher (coisa, aliás, que acontece em várias faculdades do
país). Reparem bem, estamos falando de gente fina. Não se trata de cachaceiros
na subida do morro, do sujeito massacrado pela vida que chega em casa
escorraçando as crianças, cães e mulheres. Estamos falando de gente inteligente,
formada, com anel no dedo, que toma coquetéis com a gente e cita Marx, Hegel et
caterva. Vai daí, alguém, comentando a razão por que o professor teria batido na
mulher, sendo ele uma pessoa célebre, indaga: - Mas, afinal, ele é ele, e ela
quem é?
Na primeira estorinha vocês viram que um acha que a mulher é propriedade privada
do marido, e por isto pode apanhar. Quer dizer: é igual quando a gente tem um
cavalo ou cão. Já na segunda narrativa, a titulação acadêmica ou a importância
hierárquica justifica a violência sobre o mais fraco. E a mulher, do ponto de
vista muscular, é geralmente mais fraca que o homem. Por isto faz muito sentido
quando na favela ao lado ouço as mulheres que apanham gritar: "Covarde! Vai
bater num homem". E um garotão esclarecido, que estuda lutas marciais, ao ouvir
a estória do professor espancador, observou: "Eu queria ver esse professor
crescer para cima de mim".
As estorinhas como essas são intermináveis. Lá vai outra. Uma amiga estava dando
uma entrevista à televisão e o assunto era exatamente o espancamento de mulheres
e a necessidade de se criar uma delegacia especial no Rio, como Franco Montoro
criou em São Paulo, só para atender mulheres. E lá ia explicando o bê-á-bá da
violência dos homens sobre as mulheres, lembrando que, quando uma mulher é
violentada ou espancada, nas delegacias comuns têm que passar por vexames e
cantadas, que os homens vêem a vítima como culpada, porque nossa sociedade nos
convenceu de que a mulher é sempre uma Eva pecadora. Lembrava que em alguns
países, além das delegacias para mulheres, há associações estruturadas para
esconderem as vítimas, porque sabem que se muitas delas voltarem para casa serão
até assassinadas. E foi explicando que em alguns lugares dos Estados Unidos
existe um tratamento para maridos violentos, em sessões comuns, uma espécie de
Associação de Alcoólatras Anônimos (os Espancadores Anônimos), que se curam e se
tratam em grupo, porque isto é uma doença pessoal e social.
Mas enquanto minha amiga dava a entrevista, os câmeras estavam indóceis. Parecia
que o assunto era com eles. E aí, não agüentaram, interromperam a entrevista e
um disse: — a gente trabalha na rua o dia inteiro, chega em casa cansado e a
comida não está pronta, o que é que há? Ela está querendo apanhar! E a amiga
tentou explicar: — então é só você que trabalhou? Ela não batalhou por aí em
dupla jornada? Imagine se toda mulher fosse bater em marido que traz pouco ou
nenhum dinheiro para casa?
Os câmeras continuaram resmungando durante a entrevista. Não sei o que aconteceu
quando eles chegaram em casa. Mas se houvesse na cidade uma delegacia para
defender o direito das mulheres certamente pensariam duas vezes. Talvez não
chegassem em casa sobraçando flores. Mas seguramente chegariam menos arrogantes.
(Fonte: Leitura Para Todos).