BEN OU BÁRBARA. O HOMEM QUE VIVEU COMO MULHER
Ben ou Barbara?
A história de Ben Barres, neurocientista que descobriu a
função de uma das mais importantes células do cérebro.
E, no meio do caminho, mudou de sexo
por Suzana Herculano-Houzel*
“Imagine como um homem se sentiria se fosse obrigado a
viver com seios, pernas raspadas, maquiagem e cabelo
comprido”
A primeira vez que vi Barres foi em 1994, numa palestra
na universidade onde eu estudava na época, em Cleveland.
Ben ainda era Barbara. Hoje, a foto do site oficial do
laboratório de Barres na Universidade Stanford, na
Califórnia, uma das mais prestigiadas do mundo, mostra o
rosto sorridente e barbado do neurocientista no centro
de um pôster do filme Harry Potter, cercado de
personagens de Hogwarts. Pouco convencional – mas
convencional é uma palavra que não combina nem com sua
pesquisa nem com a sua história de vida. Enquanto a
maioria dos cientistas são homens ou mulheres, Barres
tem experiência como ambos: 40 anos como mulher, e 14 –
até agora – como homem.
NO CORPO ERRADO
Ben nasceu 54 anos atrás como Barbara Barres – mas,
provavelmente em consequência de um tratamento com
hormônios andrógenos feito pela mãe durante sua gestação,
que afetam a diferenciação sexual do cérebro, Barbara
sempre brincou como um menino, se vestiu como um menino
e se sentiu um menino. A adolescência foi um tormento;
confusa com sua identidade, Barbara não teve namorados
(ou namoradas), e se refugiava nos estudos. “Imagine
como um homem se sentiria se fosse obrigado a viver com
seios, pernas raspadas, maquiagem e cabelo comprido. Era
assim que eu me sentia.”
Envergonhada, não entendia sua condição diferente nem
comentava o assunto com os pais. Em vez disso,
dedicou-se à vida acadêmica: fez a graduação no
Massachusetts Institute of Technology (MIT), doutorado
em Harvard, pós-doutorado em Londres. Foi somente aos 40
anos, já professora na Universidade Stanford em São
Francisco, na Califórnia, que Barbara começou a entender
a incongruência entre seu corpo e sua identidade sexual.
A revelação despontou com uma doença: um câncer de mama.
O tumor atingia um seio apenas, mas Barbara exigiu uma
mastectomia dupla. À sugestão do médico de fazer
cirurgia reconstrutiva, respondeu imediatamente: “De
jeito nenhum!”. Perder os seios teve efeito terapêutico.
Pela primeira vez sua anatomia se aproximava mais da sua
identidade de gênero.
Foi nessa época que conheci Barres, na palestra que
citei lá atrás. Sem imaginar o que acontecia na vida de
Barbara, lembro de sair de sua palestra com duas
impressões muito fortes: que ela era uma cientista
incrível, original e determinada; e que seu corpo não
combinava com ela. A pessoa que falava tinha nome de
mulher, mas visivelmente não era mulher – e não era
apenas pela ausência de seios.
MUDANDO DE LADO
Vivendo em meio à liberalidade de São Francisco, cidade
da Califórnia conhecida por ser um dos berços da
contracultura americana e pela tolerância e diversidade,
Barbara finalmente ouviu falar em mudança de sexo.
Novamente por recomendação médica, retirou os ovários
para evitar o risco genético elevado de desenvolver
outro câncer – e, dois anos depois da mastectomia,
decidiu mudar de sexo. Cortou o cabelo; passou a tomar
testosterona; mudou as roupas; mudou de nome. Era Ben,
agora. Com a testosterona, tinha as mãos sempre quentes
e não sentia mais frio; ganhou a barba que cultiva até
hoje; e começou a perder cabelo. Todos os seus amigos,
colegas de trabalho e parentes lhe deram apoio. “Foi um
alívio. Sou uma pessoa feliz desde então, e nunca me
arrependi de ter mudado de sexo.”
Com sua história pouco comum, Barres tem a possibilidade
raríssima de comparar, pelos dois lados, o tratamento
dispensado a cientistas mulheres e homens. Barbara foi
alvo de deboche de um professor de matemática na
faculdade, que duvidou que ela tivesse resolvido sozinha
um problema difícil que nenhum de seus colegas – quase
todos homens – acertara: “deve ter sido seu namorado
quem resolveu o problema”, disse o professor à época. Em
Harvard, perdeu uma cobiçada bolsa de estudos para um
colega, embora o reitor admitisse que o currículo dela
fosse melhor. Mas, como Ben, sua pesquisa subitamente se
tornou “melhor”. Como observou um professor do MIT ao
ouvir uma palestra sua, logo após a mudança de sexo:
“Ben Barres deu uma excelente palestra hoje, mas,
pudera, o trabalho dele é muito melhor que o da irmã”. A
“irmã”, naturalmente, era ele mesmo, em sua versão
prévia, feminina.
INAPTIDÃO OU DISCRIMINAÇÃO?
Ben pode ter mudado de sexo, mas não de
cérebro. Embora saiba que suas habilidades cognitivas não mudaram, Ben sente que
hoje é tratado com mais respeito por seus colegas homens, alguns dos quais até
lhe confidenciam, orgulhosos, que “nunca encontraram uma cirurgiã tão competente
quanto um homem”. Por isso ficou enfurecido quando o então reitor da
Universidade Harvard, Larry Summers, declarou em um discurso público em 2005 que
a razão para a escassez de mulheres nas ciências seria uma “inaptidão inata”.
Ben, que já advogava em nome da diversidade, apoiando as mulheres em seu
laboratório e encorajando alunos homossexuais a saírem do armário (mesmo na
liberal São Francisco), resolveu atacar publicamente a posição defendida por
Summers e também por Steven Pinker, psicólogo influente mas que não tem respaldo
empírico.
Em um comentário inflamado na prestigiosa revista Nature, publicado em 2006,
Barres expôs as evidências. Na escola, meninos e meninas alcançam as mesmas
notas em provas de matemática nos EUA. Mais tarde, o desempenho feminino em
testes de habilidades matemáticas depende das expectativas: se são positivas,
ótimo. Mas se são negativas, o desempenho delas pode cair até pela metade. Ao
mesmo tempo, as expectativas mais baixas em relação ao desempenho acadêmico
feminino faz com que elas tenham de produzir 2,5 vezes mais do que seus colegas
homens para receber a mesma avaliação por seus pares. Com expectativas
reduzidas, a autoconfiança das mulheres cai, e seu empenho logicamente não é o
mesmo dos homens.
Ao contrário da “hipótese Larry Summers”, Ben Barres defende a “hipótese Stephen
Jay Gould”, em honra ao falecido paleontólogo americano que dizia que “poucas
tragédias podem ser mais devastadoras que o tolhimento da vida, poucas
injustiças são mais profundas que a negação de uma oportunidade para crescer, ou
mesmo para ter esperanças, causada por um limite imposto externamente, mas
falsamente identificado como sendo interior”. Para Barres, mulheres são tão
capazes de ser cientistas quanto homens – vide sua própria história, bem como a
lista crescente de ex-alunas suas que hoje são mães, cientistas bem-sucedidas e
professoras nas melhores universidades americanas. Se há escassez de mulheres
nas ciências, a razão não é inata, mas externa: a discriminação, praticada (às
vezes inconscientemente) tanto por homens quanto pelas próprias mulheres, que,
oprimidas pelas baixas expectativas, acabam perdendo a confiança e se julgando
inferiores aos colegas do sexo oposto. “De longe, a maior diferença que notei é
que as pessoas que não sabem que mudei de sexo me tratam com muito mais
respeito: consigo até completar uma frase inteira sem ser interrompido por um
homem”, afirmou em seu artigo na Nature.
A atual pesquisa conduzida no laboratório de Barres, “Os mistérios e mágicas da
glia”, mostra como essa diferença é artificial. Enquanto a maioria dos
neurocientistas concentra seus esforços em compreender o funcionamento dos
neurônios, Barres estuda as células gliais, que alimentam e protegem os
neurônios. Ele se tornou respeitado ao mostrar que, sem receber instruções das
células da glia, os neurônios não sabem se comunicar entre si – e, portanto,
simplesmente não funcionam. Antes de sua pesquisa, acreditava-se que as células
gliais apenas alimentavam os neurônios.
Reencontrei Barres, agora Ben, no ano passado,
15 anos depois daquele seminário em Cleveland, desta vez como um dos
prestigiosos palestrantes da reunião anual da Society for Neuroscience, em
Chicago. Ben Barres agora está claramente à vontade em sua pele: um homem de
estatura mediana, nem magro nem gordo, de olhos claros, voz ligeiramente fina,
mas barbado e já semicareca, bem-humorado e irreverente. E ousado, como em sua
ciência: interrompeu o andamento da palestra no salão principal, para 7 mil
pessoas, para louvar sua ex-aluna Çagla Eroglu, principal responsável pelo
trabalho impressionante que ele apresentava (identificando como as células
gliais ensinam os neurônios a fazer sinapses).
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Barres, 54 anos, em suas duas formas: até os 40, Barbara;
depois, Ben. A mudança produziu momentos engraçados, mas que mostram a
força do preconceito. Certa vez, um professor elogiou Ben, dizendo que
"seu trabalho é muito melhor que o da irmã"; no caso, Barbara, ou seja,
ela mesma. |
Ben anunciou que Çagla agora é professora na Universidade Duke e mãe de um
bebezinho de 1 ano, e usou o exemplo dela para defender a diversidade e a
igualdade de condições a mulheres e outras minorias na ciência. Foi
aplaudidíssimo. Ao final, Ben ficou simpaticamente sentado no chão do pódio,
respondendo às perguntas dos vários estudantes e cientistas que se aproximaram,
inclusive à minha. Para todos nós – homens ou mulheres, jovens ou senhores –,
Ben Barres tinha algum comentário positivo a fazer: “que interessante”,
“obrigado por me contar isso”, “continue assim”.
Um ano antes, em 2008, Ben Barres subira ao pódio da mesma reunião para aceitar
o prêmio da Society for Neuroscience para cientistas não só brilhantes na
carreira mas que também promovem o progresso de mulheres na neurociência – como
ele mesmo já foi. Um prêmio merecido e especialmente relevante, pois Ben sabe,
por experiência própria, que a definição do gênero é importante para cada um,
mas não deveria importar para os outros.
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