O que está por trás do boicote
religioso à “ideologia de gênero”
Por Flávia Biroli*, no Blog da
Boitempo
30 de junho de 2015
Embora se digam contra uma “ideologia”, grupos religiosos atuam para frear e
interromper a consolidação de valores básicos da democracia, como o tratamento
igual aos indivíduos independentemente do que os singulariza e a promoção, no
ambiente escolar, do respeito à pluralidade e diversidade que caracterizam as
sociedades contemporânea.
A democracia e os direitos individuais estão sendo ameaçados por ofensivas
contra o que vem sendo chamado de “ideologia de gênero”. Trata-se da ação
retrógrada, orquestrada, de alguns grupos religiosos na política. Embora se
digam contra uma “ideologia”, atuam para frear e interromper a consolidação de
valores básicos da democracia, como o tratamento igual aos indivíduos
independentemente do que os singulariza e a promoção, no ambiente escolar, do
respeito à pluralidade e diversidade que caracterizam as sociedades
contemporâneas.
Em Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores, esses grupos vêm atuando
para eliminar das diretrizes educacionais orientações para a valorização e
respeito à diversidade sexual e para a superação das desigualdades de gênero. A
própria palavra “gênero” vem sendo sistematicamente eliminada nos casos em que
essa empreitada teve sucesso. O requerimento de informação apresentado pelo
deputado Izalci Lucas (PSDB-DF) em maio de 2015, dirigido ao MEC, é um exemplo
bastante claro do que se passa: solicita esclarecimentos sobre o que caracteriza
como a “manutenção da ideologia de gênero como diretriz obrigatória para o PNE”,
contrariamente ao que teria sido determinado pela apreciação do Congresso
Nacional. O deputado, que é membro da Comissão Especial formada na Câmara dos
Deputados para análise do Plano Nacional de Educação (PNE), apresenta como
inaceitáveis – e característicos do que define como “ideologia de gênero” – os
seguintes trechos do PNE:
– Inciso III do artigo 2º, que define como diretriz a
“superação das
desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial,
regional, de gênero e de orientação sexual”,
– Estratégia 3.12 da Meta 3, que coloca como objetivo “implementar políticas de
prevenção à evasão motivada por preconceito e discriminação racial, por
orientação sexual ou identidade de gênero, criando rede de proteção contra
formas associadas de exclusão”.
Nas democracias ocidentais, sobretudo a partir de meados do século XX, a noção
de direito individual foi tensionada e ampliada pela ação de movimentos sociais
que denunciaram os limites da cidadania nessas sociedades. Movimentos
feministas, movimentos de gays e lésbicas e movimentos antirracistas foram
responsáveis pela inclusão, na agenda política, do entendimento de que a
garantia formal de direitos iguais universais para os indivíduos não foi
suficiente para reduzir a exclusão, marginalização e estigmatização de parte da
população. As democracias conviviam, ainda, com preconceitos e arranjos sociais
discriminatórios, mesmo quando a lei determinava que os indivíduos eram cidadãos
iguais independentemente do sexo, da cor, do estilo de vida. A noção de gênero
se define no contexto dessas lutas, na interface entre a atuação dos movimentos
sociais feministas e de gays e lésbicas, como um dispositivo para a compreensão
e a superação de formas de violência e opressão baseadas na recusa à diversidade
das vivências e experiências dos indivíduos. Os estudos de gênero, presentes em
diferentes universidades e países do mundo, expõem não apenas essa diversidade,
mas o caráter autoritário e coercivo de códigos morais baseados no que seria a
realidade incontornável da natureza humana – nesse caso, do sexo biológico.
Esses códigos permitem colocar os indivíduos em hierarquias, fazendo com que
alguns mereçam respeito, outros não. As experiências de tantas pessoas, seus
afetos e os valores que fazem delas quem são concretamente são diminuídos e
estigmatizados por não coincidirem com o que teria sido determinado como correto
pela “natureza” e/ou por textos de caráter religioso.
Trata-se de questões bem concretas, e não de um embate entre ideias. Os
movimentos sociais que têm o gênero como parte da sua agenda denunciaram e
continuam a denunciar o fato de que alguns indivíduos, pelas suas
características, têm menos chances do que outros de ser respeitados e são alvos
de violências e humilhações cotidianas. A violência contra as mulheres está, em
grande medida, associada à busca do controle dos homens sobre elas – quando não
se comportam de modo que confirma essa ideia, terminando um relacionamento,
mantendo uma vida mais autônoma ou vestindo-se de maneiras vistas como
não-decorosas, estão mais expostas a agressões. A violência contra a população
homossexual se ancora no entendimento de que existem formas corretas de amar e
se relacionar com outras pessoas, enquanto outras seriam desvios que marcam os
indivíduos negativamente, fazendo com que integrem o grupo dos que poderiam ser
violentados e torturados sem que isso gere sobressaltos ou fira a democracia. Os
movimentos antirracistas expuseram dinâmicas muito semelhantes. É também uma
ideia de superioridade, desta vez impregnada na pele, que justificou
historicamente o racismo: o fato de não se ser branco – assim como, nos exemplos
anteriores, o de não se ser homem ou heterossexual – justificaria desrespeitos e
violências contra quem é circunscrito como “outro”, como portador de uma
diferença que ameaça em vez de uma humanidade comum.
No ambiente escolar, essas formas de discriminação e desvalorização produzem
sofrimentos e reduzem o aproveitamento de muitas crianças. É também no processo
de socialização, em que a escola tem um papel fundamental, que podem ser
ativadas concepções democráticas da vida ou reforçados preconceitos. As crianças
são objeto de práticas menos ou mais tolerantes e igualitárias, mas são também
sujeitos na sua reprodução. A importância da educação para a igualdade e a
diversidade é, portanto, dupla. Ela pode orientar a atuação de professoras/es e
alunas/os, de forma que diminua o sofrimento dos indivíduos que veem o valor das
suas vidas reduzido – meninas que estão sujeitas a estupro e abuso, meninas e
meninos agredidos em razão de sua identidade sexual ou dos arranjos familiares
de que fazem parte – e ela nos dá a esperança de que poderemos ter, nas
crianças, agentes na construção de relações mais respeitosas, de uma sociedade
mais igualitária.
A diversidade de corpos, de valores e de estilos de vida é um fato, e não uma
ideia. Ainda que isso seja óbvio para quem se permita olhar ao redor sem anular
de antemão as vidas e as experiências de tantas pessoas, é importante assinalar
que esse fato está na base de ideais que visam orientar a construção de
sociedades mais justas, e não o contrário. O que quero dizer é que o ideal da
tolerância nasce, desde bem cedo, no pensamento liberal moderno, do fato da
diversidade e da pluralidade nas sociedades. A diversidade permanece mesmo
quando não há tolerância: o resultado de ações retrógradas como as que estão
sendo aqui discutidas é que os “outros” estarão mais expostos ao sofrimento, à
opressão e à violência.
A laicidade do Estado – a separação entre Estado e religião – foi uma solução
histórica para essa diversidade, que se apresenta também como pluralidade de
crenças e de credos. A laicidade é um princípio fundamental da democracia porque
permite que essa diversidade se apresente sem que o Estado assuma e promova a
superioridade de um grupo relativamente a outro. Quando a religião orienta
políticas de Estado, rompe-se com a ideia de que os indivíduos merecem igual
respeito e têm igual valor na sociedade – os valores, crenças e estilos de vida
de alguns fariam deles o povo eleito, e a democracia não resiste a essa visão
exclusivista e excludente. Ela produz intolerância. E a intolerância, volto a
dizer, é bem mais que uma ideia, é a justificação e a aceitação do tratamento
desigual, da humilhação e da violência contra aqueles que “não vivem como acho
que deveriam viver”.
Acredito que seja importante também uma palavra, breve, sobre o uso do termo
ideologia nessa investida contra os direitos individuais e a democracia no
Brasil de hoje.
Em algumas abordagens no pensamento político, a noção de ideologia se aproxima
da ideia de mistificação, ilusão, inversão da realidade. Em outras, prevalece o
entendimento de que a ideologia corresponde a um conjunto de sentidos, de ideias,
que constituem nossa relação com o mundo e fazem de nós quem somos. O primeiro
caso pressupõe uma antítese bem definida entre a realidade objetiva e os
significados a ela atribuídos. É nesse sentido que, no senso comum, pode-se
atribuir a alguém a pecha de ideológico quando distorce os fatos em vez de
ater-se à “realidade” das coisas. O segundo já pressupõe o entendimento de que a
relação com o mundo social é sempre atravessada por sentidos que nos precedem, e
que estão em disputa. Não há momento ou circunstância em que a realidade se dê a
ver sem estar impregnada de significados e de valores. É numa realidade que não
é nem falsa nem verdadeira, mas socialmente significada, que nos constituimos
como indivíduos.
Essa breve menção ao debate sobre ideologia nas Ciências Sociais – que se apoia
na análise de Terry Eagleton (Ideologia: uma introdução, publicado no Brasil
pela Boitempo e pela Unesp) – deve incluir também uma outra dimensão, que
entendo atravessar tanto os entendimentos da ideologia como mistificação quanto
aqueles que ressaltam seu caráter constitutivo: a ideologia tem função
legitimadora, confirmando e mesmo naturalizando perspectivas. Vejo as ofensivas
contra a “ideologia de gênero” como a busca de naturalização de posições – as
visões bem situadas e particulares de alguns, no caso de grupos religiosos,
apresentadas como se fossem universais. Nesse caso, o recurso à ideia de que
existe uma natureza/verdade e uma ideologia/falsidade é o dispositivo central
para a universalização de uma posição bem situada.
Talvez se possa considerar que documentos e esforços internacionais pela
promoção da igualdade de gênero e do respeito à diversidade sexual, como
aConvenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a
mulher, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1979 e ratificada pelo Brasil em
1984, e a Campanha pela igualdade e direitos da população LGBT, lançada pela ONU
em 2014, assim como o acúmulo sistemático de estudos produzidos nas mais
diferentes universidades sobre a construção social das identidades de gênero,
sejam parte de uma disputa ideológica e sejam, também eles, bem situados. Sim,
em todos esses casos não se trata de registrar desígnios da natureza ou de
assumir uma posição de neutralidade: assume-se neles uma posição a favor da
igualdade, do respeito à diversidade e da superação da opressão. Essa posição
fere os privilégios daqueles que talvez se sintam superiores, e que certamente
obtêm vantagens, ao desvalorizar os “outros” e exercer controle sobre aqueles, e
em especial aquelas, que lhes seriam inferiores.
O que está em questão é se teremos diretrizes educacionais orientadas para a
igualdade, a tolerância e a diversidade ou fundadas em noções de superioridade,
em visões exclusivistas e excludentes. De maneira mais ampla, o que está em
questão nesse momento é a nossa democracia e a capacidade que teremos, como
sociedade, de garantir o respeito aos direitos individuais.
(*)
Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade
de Brasília (UnB), onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e
coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que
mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. É autora, entre outros, de
Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica
democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu
Abramo, 2014) e, em co-autoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma
introdução (Boitempo, 2014)