Rodrigo Bertolotto De Ecoa, em São Paulo 14/05/2020 14h22
Em meio ao combate ao novo coronavírus, o Brasil tem no horizonte uma possível
crise de abastecimento no mesmo momento em que o país volta ao Mapa da Fome
da ONU e em que vemos cenas de alimentos sendo
destruídos no campo, porque transportar e comercializar é mais custoso.
"Como estamos produzindo os alimentos em um sistema superindustrial e
capitalista, que impõe um preço e gera esse cenário de descartar o alimento, é
mais barato para o agricultor destruir do que levar para um centro de
abastecimento", afirmou a chef de cozinha, apresentadora de TV e ativista Bela
Gil, durante UOL Debate sobre segurança alimentar em época de pandemia.
Gil defendeu a autonomia dos agricultores de plantar o que querem, e não
obedecer cegamente o vai-e-vem do mercado. "A soberania alimentar é o direito ao
acesso a boa alimentação. Precisamos garantir renda do agricultor e comida na
mesa para quem precisa", disse a apresentadora.
Outro participante do debate, o diretor da ONG (organização não governamental)
Ação Cidadania Rodrigo "Kiko" Afonso apontou que o
Brasil está de volta ao Mapa da Fome, ou seja, o país ultrapassou os
5% de sua população dentro da extrema pobreza. O país
tinha saído em 2014 do mapa, relatório da FAO, agência para
alimentação e agricultura das Nações Unidas. O cálculo é que 13,8 milhões de
brasileiros estão nessa condição atualmente (6,9% dos habitantes), e o impacto
da pandemia pode triplicar esse número, somando boa parte dos trabalhadores
informais que devem ficar sem renda. "A tragédia da Covid-19 trouxe luz para a
questão da insegurança alimentar. Para resolver essa questão, é necessária
política pública porque só o governo tem recursos e pessoal para atuar",
apontou Afonso.
A falta de coordenação governamental foi apontada como
principal problema nesse momento pelo economista Marcelo Paixão,
professor da Universidade do Texas-Austin (EUA).
"A falta de lucidez política talvez seja problema maior
que vírus. É uma calamidade pública porque não há coordenação nenhuma.
Estamos acelerando a curva de mortos e contaminados. Não se trata de discussão
ideológica, se trata de precisarmos de medidas coerentes e de ter seriedade no
trato do que está acontecendo", afirmou o professor.
Outra participante do debate foi Kelli Mafort, doutora em Ciências Sociais pela
Unesp e integrante da Coordenação Nacional do MST (Movimento Sem Terra). "A
agricultura atual visa o lucro, e transformou o alimento em commodity para ser
exportada. A agricultura tem de pensar na vida e na natureza. E
estamos percebendo isso agora, percebendo que temos de valorizar um novo projeto
de campo, com agricultura familiar, agroecologia e reforma agrária", afirmou.
Bela Gil concordou. "Precisamos de políticas públicas de acesso a uma
alimentação saudável, e sem reforma agrária fica impossível garantir segurança
alimentar para a população", disse durante o debate.
Paixão foi pela mesma linha de raciocínio. "Nossas
políticas agrícolas foram dissociadas de uma reforma agrária e se dedicaram a
uma agricultura empresarial. Esse modelo de desenvolvimento se instaura
com Pedro Álvares Cabral, até o Brasil se transformar no maior consumidor
mundial de agrotóxico. Existe por aqui um tipo de ação afirmativa inversa",
argumentou o professor.
Kelli Mafort disse que é possível ter um horizonte propositivo se encararmos os
problemas de frente. "Estamos diante de uma possibilidade histórica. A Covid não
foi produzida em laboratório, mas da relação do ser humano com a natureza. Então
precisamos mudar essa relação", disse.
Para o economista e professor Marcelo Paixão, o modelo a ser adotado deveria
conciliar três diretrizes. "Política econômica com justiça social e preservação
ambiental deveriam ser o tripé", resumiu.