BRASIL VOLTA AO MAPA DA
FOME
10/07/2017
Três anos depois de o
Brasil sair do mapa mundial da fome da ONU — o que significa ter menos de 5% da
população sem se alimentar o suficiente —, o velho fantasma volta a assombrar
famílias como a de Maria de Fátima. O alerta, endossado por especialistas
ouvidos pelo GLOBO, é de relatório produzido por um grupo de mais de 40
entidades da sociedade civil, que monitora o cumprimento de um plano de ação com
objetivos de desenvolvimento sustentável acordado entre os Estados-membros da
ONU, a chamada Agenda 2030.
"Relatório de entidades da sociedade civil que será levado à ONU alerta que
Brasil pode voltar ao mapa da fome
por Daiane Costa
09/07/2017 4:30 / Atualizado 10/07/2017 11:28
RIO - No armário suspenso sobre a geladeira quase vazia, sacos de farinha de
milho empilhados de uma lateral a outra são a única abundância no casebre onde
moram três adultos e uma criança, no alto de um morro do bairro de Santa Cruz,
na Zona Oeste do Rio.
— Estamos comendo angu a semana toda. Ganhamos de uma vizinha. Mas é melhor angu
do que nada. Carne, não vemos há meses — lamenta Maria de Fátima Ferreira, de 61
anos, enquanto abre as portas do móvel, como se precisasse confirmar seu drama.
Três anos depois de o Brasil sair do mapa mundial da fome da ONU — o que
significa ter menos de 5% da população sem se alimentar o suficiente —, o velho
fantasma volta a assombrar famílias como a de Maria de Fátima. O alerta,
endossado por especialistas ouvidos pelo GLOBO, é de relatório produzido por um
grupo de mais de 40 entidades da sociedade civil, que monitora o cumprimento de
um plano de ação com objetivos de desenvolvimento sustentável acordado entre os
Estados-membros da ONU, a chamada Agenda 2030. O documento será entregue às
Nações Unidas na semana que vem, durante a reunião do Conselho Econômico e
Social, em Nova York.
MARCAS DA FOME: O QUE AS FAMÍLIAS DIZEM
Na casa de Maria de Fátima, a comida se tornou escassa depois que ela foi
demitida do emprego de cozinheira na prefeitura de Belford Roxo, há oito meses.
Os dois filhos mais velhos vivem de bicos, cada vez mais raros. Os três integram
a estatística recorde de 14 milhões de desempregados, resultado da recessão
iniciada no fim de 2014. Pesam ainda a crise fiscal, que tem levado União,
estados e municípios a fazerem cortes em programas e políticas de proteção
social, e a turbulência política.
— Quando o país atingiu um índice de pleno emprego,
na primeira metade desta
década, mesmo os que estavam em situação de pobreza passaram a dispor de
empregos formais ou informais, o que melhorou a capacidade de acesso aos
alimentos. A exclusão de famílias do Bolsa Família, iniciada ano passado, e a
redução do valor investido no Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura
Familiar (PAA), que compra do pequeno agricultor e distribui a hospitais,
escolas públicas e presídios, são uma vergonha para um país que trilhava avanços
que o colocava como referência em todo o mundo — afirma Francisco Menezes,
coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e
consultor da ActionAid, que participaram da elaboração do relatório.
Situação de insegurança alimentar
A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia) é uma versão adaptada da
produzida pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos durante a década
de 90. Ela vem sida aplicada pelo IBGE desde 2004 - a pesquisa mais recente diz
respeito a 2013 - e, em 2019, serão divulgados os dados referentes a 2017 e
2018. Ao aplicar a Ebia, é possível classificar os lares de acordo com o grau de
segurança alimentar, ou seja, se existe uma situação de conforto ou de medo e
risco de ficar sem comer.
Grau 1, Segurança Alimentar
Preocupação ou incerteza quanto ao acesso a alimentos no futuro; qualidade
inadequada dos alimentos devido a trocas de produtos para não comprometer a
quantidade de alimentos que será ingerida
Grau 2, Insegurança alimentar leve
Acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente,
sem comprometer o acesso a outras necessidades especiais. Não há preocupação
quanto ao acesso de alimentos no futuro
Grau 3, Insegurança alimentar moderada
Redução da quantidade de alimentos entre os adultos ou ruptura nos padrões de
alimentação devido a falta de alimentos, mas a alimentação de crianças é
preservada
Grau 4, Insegurança alimentar grave
É a redução da quantidade de alimentos entre as crianças ou quando alguém fica o
dia inteiro sem comer por falta de dinheiro para comprar alimentos. A fome
propriamente dita
Fonte: MDS
'Já deixei de comer para dar ao meu filho'
O custo de uma cesta básica no Rio, para uma pessoa consumir em um mês, chega a
R$ 420,35 - Domingos Peixoto / Agência O Globo
Foi a perda do emprego com carteira que levou a insegurança alimentar para o
cotidiano da auxiliar de serviços gerais Andressa Gonçalves de Oliveira, de 24
anos, mãe de um menino de 8. Separada do marido, ela mora em uma casa inacabada
em uma comunidade de Madureira. A empresa terceirizada na qual trabalhava
começou a perder contratos, e ela foi demitida, há cerca de um ano. Passou a
vender cafezinho em filas de seleção de emprego para aumentar a renda, restrita
aos R$ 170 da pensão do filho. Consegue tirar mais R$ 150 por mês.
— Quando meu ex-marido atrasa a pensão ou quando não consigo atingir a meta do
café, bate o desespero. Já tive de deixar de comer para meu filho não ficar sem
comida — conta Andressa, que recebia R$ 390 de auxílio-alimentação no antigo
emprego, além do salário de quase R$ 1 mil.
Lares chefiados por mulheres que, devido à perda do emprego ou de benefícios
como o Bolsa Família, têm renda zero ou inferior a R$ 350 são recorrentes entre
as famílias que passaram a ter dificuldades para comprar comida. O custo de uma
cesta básica no Rio, com 13 tipos de alimentos em quantidades necessárias para
uma pessoa, por um mês, chega a R$ 420,35, segundo o Dieese.
Explode procura por benefícios sociais
No país, 1,5 milhão de famílias tem direito a benefícios maiores do que recebem
- Domingos Peixoto / Agência O Globo
No ano passado, o presidente Michel Temer determinou um pente-fino para
descobrir beneficiários que declaravam renda menor do que a real para continuar
recebendo o Bolsa Família. O resultado, porém, foi a confirmação de um fenômeno
de empobrecimento. Ao cruzar bases de dados, a fiscalização encontrou mais de
1,5 milhão de famílias que tinham renda menor que a declarada — haviam perdido o
emprego, mas não atualizaram o cadastro — e, por isso, teriam direito a
benefícios maiores do que recebiam. Isso corresponde a 46% dos 2,2 milhões de
famílias que caíram na malha fina por inconsistência nos dados. E o prometido
reajuste no benefício, que seria de 4,6%, foi suspenso no fim do mês passado
pelo governo, por falta de recursos.
No Rio, a procura por inscrição no Cadastro Único do município, única forma de
acessar o Bolsa Família, explodiu em 2016, ano em que a crise se aprofundou. No
primeiro quadrimestre do ano passado, o número de novas famílias que entraram no
sistema mais do que dobrou em relação ao mesmo intervalo de tempo de 2013,
período anterior à recessão. Passou de 12,2 mil para 25 mil famílias. Nos
primeiros quatro meses deste ano, foram 19,4 mil famílias. Para a secretária
municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, Teresa Bergher, isso se
explica pelo aumento do desemprego e pela crise do governo estadual, que tem
atrasado o salário dos servidores, provocando um efeito dominó na economia
local.
— Quanto maior a dependência do programa de transferência, maior a insegurança
alimentar. Mas, com essa renda, as famílias conseguem ter a segurança de poder
comprar algo todos os meses. É claro que essa quantidade de alimento não deve
sustentar o mês todo, mas podem se programar — argumenta a nutricionista Rosana
Salles da Costa, professora do Instituto de Nutrição Josué de Castro, da UFRJ, e
pesquisadora na área de segurança alimentar.
Ela acredita que a instabilidade financeira que atingiu essas famílias vai
elevar, pela primeira vez, o número de lares brasileiros que passam fome — ou
seja, que vivem em insegurança alimentar grave, segundo a Escala Brasileira de
Insegurança Alimentar. De acordo com o IBGE, a proporção de lares que vivia
nessa condição caiu à metade entre 2004, ano da primeira pesquisa, e 2013, dado
mais recente, de 6,5% para 3,2%. Os próximos dados, referentes a 2017 e 2018,
vão ser divulgados daqui a dois anos pelo instituto, após a conclusão da
Pesquisa de Orçamentos Familiares para esses anos.
Alan Bojanic, representante das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação no
Brasil, reconhece que há uma relação direta entre crises econômicas e o aumento
da insegurança alimentar e pobreza. No entanto, diz ser otimista quanto ao
Brasil se manter fora do mapa mundial da fome e avançar, melhorando a qualidade
da alimentação de suas famílias.
'É pão de manhã,
<https://oglobo.globo.com/economia/fome-volta-assombrar-familias-brasileiras-21569940>
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