A CRISE DO CAPITALISMO
01/08/2020
“O capitalismo Gucci chegou ao fim”
A economista britânica diz que, agora, haverá mais cooperação e colaboração no mundo
José Fucs
Até o agravamento da crise que atingiu Wall Street, em setembro de 2008, com a quebra do banco de investimento Lehman Brothers, a economista britânica Noreena Hertz era uma celebridade improvável no mundo das finanças. Suas ideias, contrárias ao capitalismo de livre mercado, pareciam condenadas a ficar restritas às discussões acadêmicas. Com a ampliação da crise, elas ganharam ares de profecia. Noreena passou a ser vista como uma visionária, que previu o impacto devastador que o excesso de endividamento dos cidadãos nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos teria na economia global. De economista marginalizada pelo establishment, cujo perfil era publicado por veículos como a revista Socialismo Hoje, ligada ao Partido Socialista Inglês, Noreena se tornou uma profissional reconhecida e respeitada por autoridades, banqueiros e executivos. Transformou-se em uma espécie de porta-voz da nova era que, em sua visão, substituirá o sistema destruído pela crise. De acordo com Noreena, sobre os escombros do antigo regime surgirá um novo tipo de capitalismo – mais solidário, mais cooperativo e mais colaborativo.
Hoje, ela presta consultoria a grandes empresas como o banco ING, da Holanda, e é convidada a falar para líderes empresariais em redutos da velha escola do capitalismo, como a Associação Europeia para uma Política Econômica Evolucionista e o CFA Institute, organização internacional dedicada à formação de consultores de investimento. “Quando falo com as empresas – e sou consultora de algumas das maiores empresas do mundo –, eu reconheço que elas estão trabalhando num paradigma em que a maximização do lucro é, em muitos casos, obrigatória”, afirmou Noreena a ÉPOCA, na semana passada. “Mas as empresas têm de mudar quando a sociedade muda, quando os governos mudam, quando as demandas em relação às empresas mudam.”
Recentemente, a Newstatesman, uma respeitada revista britânica de política, publicou um polêmico artigo – na verdade, um manifesto – de Noreena. Nele, ela declara a morte do “capitalismo Gucci” – uma expressão que criou para designar o capitalismo de livre mercado implantado nos anos 1980 pelo presidente americano Ronald Reagan e pela ex-primeira-ministra da Inglaterra Margaret Thatcher e posteriormente encampado por instituições multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
“Estamos testemunhando a morte de um paradigma”, afirma Noreena no artigo, com uma ênfase que costuma marcar os textos dos grandes pensadores da história. “A teoria econômica dominante nos últimos 20 anos – uma teoria que colocava a liberdade antes da igualdade, dava aos mercados mais poder que aos Estados e via o risco como um bem público que não deveria ser limitado – virou defunto.” Meses depois, Noreena voltou à carga em outro artigo, publicado pelo jornal Times, de Londres, no qual ela demonstra a fina ironia britânica: “Chamei a era que passou de capitalismo Gucci. Ele nasceu em meados dos anos 80 – o filho amado de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, com Milton Friedman como seu padrinho e Bernard Madoff como seu garoto-propaganda”.
Neta do ex-rabino-chefe da Inglaterra Joseph Hertz, Noreena, de 42 anos, nasceu e cresceu em Londres. Seus pais eram empreendedores do setor têxtil. Ela passou parte da infância circulando pela fábrica da família. Sua mãe, uma designer de moda e militante feminista, morreu de câncer quando Noreena tinha 20 anos, pouco antes de ela terminar o curso de economia no University College London (UCL). Depois, Noreena concluiu o MBA em Wharton, na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, e obteve ph.D. em economia pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra.
Meio economista, meio ativista, Noreena batalha por suas ideias como uma missionária. Em meados dos anos 1990, quando prestou consultoria ao governo da Rússia, a serviço do Banco Mundial, ela questionou publicamente a estratégia da instituição de impor ao país o sistema de livre mercado. O incidente provocou desentendimentos com seu chefe, em Washington. Ela acabou deixando o posto em seguida. Em 2006, quando estava para lançar um livro sobre as consequências negativas do endividamento global, procurou o cantor Bono, do U2, que defendia o cancelamento de uma dívida de US$ 400 milhões dos países em desenvolvimento com os Estados Unidos, para unir forças em defesa da causa comum.
Noreena diz que não conhece o Brasil, mas afirma ter as melhores referências sobre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Ouvi algumas opiniões independentes sobre como as coisas têm mudado no Brasil sob sua liderança e sobre sua determinação de garantir que ninguém no Brasil vai passar fome, coisas que ele dizia quando foi eleito pela primeira vez”, afirma. “Se ele estiver conseguindo fazer apenas parte do que desejava, já é algo interessante.”
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QUEM É |
ÉPOCA – Recentemente, a
senhora escreveu um artigo no qual dizia que a atual
crise financeira marcou o fim da era do “capitalismo
Gucci”. O que quis dizer com isso?
Noreena Hertz – Eu me referia ao tipo de
capitalismo que ganhou força a partir dos anos 1980,
capitaneado por Ronald Reagan (então presidente dos
EUA) e Margaret Thatcher (ex-primeira-ministra da
Inglaterra) e promovido pelo Fundo Monetário
Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial em todo o
mundo. Estava me referindo a essa forma de
capitalismo que confiava cegamente nos mercados, que
valorizava apenas o crescimento do PIB e
acreditava
que a competição e a destruição criadora eram as
únicas formas de promover a inovação. Esse tipo de
capitalismo chegou ao fim.
ÉPOCA – Por que a senhora
decidiu batizar esse sistema de “capitalismo
Gucci”?
Noreena – Para simbolizar uma era em
que se tornou mais importante ter uma bolsa da
Gucci ou um tênis da Nike do que evitar o
endividamento pessoal exagerado. O status era
medido pelos produtos de luxo que cada um podia
comprar. Isso era tido como um sinal de sucesso.
ÉPOCA – O que leva a
senhora a acreditar que a era do
“capitalismo Gucci” chegou ao fim?
Noreena – Acredito que a crise
financeira colocou um ponto final nesta
fase, porque, pela primeira vez, algumas
vozes conservadoras e influentes, envolvidas
na disseminação do velho estilo de
capitalismo, reconheceram que talvez
estivessem erradas. O ex-presidente do Fed
(banco central dos EUA) Alan Greenspan
admitiu que errou, durante um depoimento no
Congresso americano. Alguns comentaristas
econômicos que promoviam a velha ideologia
passaram a questionar publicamente sua
eficácia. De repente, todo mundo percebeu
que, em muitos países ocidentais, as pessoas
viviam muito além de suas possibilidades e
nada havia sido feito para conter isso. Nos
EUA, cada um tinha, em média, nove cartões
de crédito.
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A economista britânica diz que, agora, haverá mais cooperação e colaboração no mundo |
ROCK SOCIAL
ÉPOCA – Em sua opinião, como deverá ser o
capitalismo daqui para a frente?
ÉPOCA – Em seus textos, a senhora fala do
surgimento de um capitalismo mais cooperativo, colaborativo. Isso
seria uma tendência desse novo capitalismo?
ÉPOCA – Qual deve ser o papel da
livre-iniciativa nesse novo tipo de capitalismo a que a senhora
se refere?
ÉPOCA – Qual será o impacto dessa
nova era no mundo dos negócios?
ÉPOCA – Entre os países, quem
está mais avançado nesse processo?
ÉPOCA – Qual é sua visão do
Brasil hoje?
ÉPOCA – Que economistas a
senhora mais admira?
ÉPOCA – Que livros
está lendo agora?
(Época, 01/02/2010, págs. 54-57).
Noreena em encontro com o cantor Bono, do U2, no sul da França, em
2006. Eles uniram forças contra o endividamento de países e de
pessoas
Noreena – Não dá para saber se haverá um sistema predominante –
ou se existirão diferenças regionais ou combinações de sistemas em
diferentes lugares. Antes dos anos 1980, havia mais variações do que se
considerava ser capitalismo. As relações entre governos, negócios,
mercado, sociedade e países eram muito diferentes. Os tipos de
capitalismo do Reino Unido, dos EUA, do Japão, da Alemanha eram
diferentes. Depois, houve uma convergência para uma forma particular de
capitalismo. Será surpreendente se, de agora em diante, uma única forma
de capitalismo for predominante. O mais provável é o sistema refletir as
diferenças entre países, histórias, culturas, sociedades. Mas é possível
surgirem algumas tendências gerais, que serão replicadas em diferentes
países e regiões.
Noreena – Definitivamente, uma das principais
características desse novo capitalismo será uma cooperação e uma
colaboração bem maiores do que vimos nos últimos 25 anos. Há
diversas histórias de sucesso que mostram como isso pode funcionar
muito bem. Há exemplos bem-sucedidos no Vale do Silício (EUA), em
algumas regiões da Itália, no Reino Unido, na Holanda. São áreas em
que as empresas atuam com base no modelo cooperativo.
Em muitos
casos, os trabalhadores têm ações das empresas, os lucros são
redistribuídos dentro das próprias empresas e até os empregados
aposentados recebem uma fatia do lucro. Há também novos movimentos,
como o do software livre, o do design livre, em que designers de
todo o mundo trabalham juntos pela internet para melhorar o design
de um produto. Acredito que a internet e a tecnologia que gira em
torno dela estão criando oportunidades de trabalhar de formas
diferentes. É algo que surgiu na internet, mas está se espalhando
para toda a economia.
Noreena – Considerando que comecei meu trabalho como
consultora do Banco Mundial na Rússia, em meados dos anos 90,
não penso que uma economia dirigida, planejada, funcione, seja
para entregar à sociedade o tipo de produtos que ela deseja,
seja para promover o bem-estar social. Mas não sei o que
exatamente significa o termo livre-iniciativa hoje. Significa
que a livre-iniciativa em si é boa para a sociedade? Ou que as
pessoas são livres para sair, trabalhar duro, tentar alcançar
seus objetivos? Se está relacionada à realização de objetivos,
temos de lembrar que os empreendedores não estão isolados. Eles
fazem parte de um ecossistema em que tudo – a oferta de
seguro-saúde, a educação, a expectativa de vida – vai determinar
se ele, como indivíduo, estará em condições de realizar o sonho
da livre-iniciativa ou não.
Noreena – Se queremos atingir as metas ambientais
discutidas nos fóruns internacionais, é claro que as
empresas terão de se comportar de forma muito diferente.
Estamos entrando numa nova era, com novas demandas na área
ambiental. Mesmo quem adota as melhores práticas hoje terá
de repensar sua atuação. Se você analisar o caso das
empresas de fast-food, há evidências de que o crescimento do
nível de obesidade nos países ocidentais está relacionado à
comida que elas vendem. Isso encarece muito o custo do
sistema de saúde. Ou essas empresas mudam o mix de produtos,
ou reduzem os tamanhos dos produtos, ou buscam novos
ingredientes. Muitas vezes, não sabemos nem o que está nos
produtos, porque não há uma regulamentação clara sobre as
informações que devem constar nos rótulos. Por isso,
precisamos encorajar as empresas de alimentos a mudar, por
meio de incentivos fiscais, impostos e maior regulamentação.
Noreena – Há países que não entraram no
capitalismo Gucci com tanta intensidade, como a Suécia e
outros países escandinavos. Provavelmente, os países
escandinavos foram os que melhor conseguiram aliar um
bom sistema de saúde e um alto nível educacional a um
sistema em que as pessoas conseguem atender
razoavelmente bem a suas necessidades econômicas. Eles
conseguiram conciliar bem o Estado e o mercado. Isso não
significa que todo mundo deve imitar a Escandinávia.
Você não pode impor um sistema de um país a outro. A
história, a cultura e a natureza de cada povo não podem
ser ignoradas.
Noreena – Como nunca estive no Brasil, não
pude sentir a realidade do país, ter uma percepção
melhor das aspirações e políticas do país. Com base
nos discursos de Lula, nas coisas que escreveu, ele
parece alguém com uma visão diferente do
capitalismo. Ouvi algumas opiniões independentes
sobre como as coisas têm mudado no Brasil sob sua
liderança e sobre sua determinação em garantir que
ninguém no Brasil vai passar fome – coisas que ele
dizia quando foi eleito pela primeira vez. Se ele
estiver conseguindo fazer parte do que desejava, já
é algo interessante. No momento, em comparação com
outros países, acredito que o Brasil está indo bem.
Noreena – Provavelmente, Adam Smith,
porque ele combina filosofia, moral e economia.
É difícil falar de economia sem levar em conta a
questão moral. Karl Marx, não porque eu concorde
com as coisas que ele disse ou previu, mas
porque ele mostrou a importância da história, da
sociedade e queria desafiar o statu quo. Alguém
como John Kenneth Galbraith, que adotou também
uma visão mais ampla da economia e foi capaz de
influenciar e moldar sua compreensão. Ou Elena
Bodnar, que acabou de ganhar o Prêmio Nobel.
Independentemente de acreditar ou não no que
disseram ou em todas as suas teorias, eu os
considero muito bons pensadores. Todos
reconheceram que a economia era apenas parte de
um ecossistema maior, que interage com muitos
outros fatores. Nas últimas duas décadas, a
economia como disciplina se tornou mais e mais
desvinculada da realidade e mais e mais baseada
em modelos econômicos e matemáticos.
Noreena – Estou lendo uma estranha
combinação de livros no momento. Estou
relendo o livro de Betty Friedan, A
mística feminina. Aquela geração de
mulheres, escritoras feministas, foi
provavelmente o que mais me inspirou, porque
elas faziam um trabalho corajoso, arrojado.
Gosto de reler alguns textos clássicos de
vez em quando. Também estou lendo um livro
chamado The unconquerable world (O mundo
inconquistável), de Jonathan Schell,
que mostra como a história tem sido moldada
não por ações militares, mas por batalhas
por corações e mentes.