CARNAVAL NO INTERIOR NO INÍCIO DO SÉCULO PASSADO
De: Ruth Tupinambá Data: Sex
24/12/2010 18:46:44
Cidade: Montes Claros/MG
Carnaval na década de vinte
Nossa cidade foi, durante muitos anos, governada e divida por dois partidos: o
dos moradores as ruas de Baixo e o dos moradores das ruas de Cima. Eram os
Estrepes e os Pelados.
Existia uma grande rivalidade e hostilidade entre os mesmos, começando pela
política, refletindo nas celebrações religiosas e acontecimentos sociais da
nossa cidade.
Cada macaco em seu galho, diziam eles e a animosidade aumentava dia-a-dia. A
divisão chegava até os sentimentos das pessoas que eram controladas e governadas
pelos partidos. Os rapazes só poderiam namorar as moças do mesmo partido: era
Pelado com Pelado e Estrepe com Estrepe. E o pau quebrava se ousassem
desobedecer. Mas como o coração é terra que ninguém governa, de vez em quando os
boatos corriam na cidade: moça pulando janela e fugindo com o namorado, pai
surrando filha, outras bebendo veneno, rapazes apaixonados e se entregando à
bebida, tudo por causa das proibições.
Em época de eleições, a cidadezinha fervia e os coronéis se aproveitavam para
massacrar os adversários que se esperneavam, mas o lado do governo levava sempre
vantagem.
Cidade com pouca distração, as fofocas e os fuxicos eram o maior passatempo das
pessoas e o veneno derramado provocava intrigantes brigas, discussões e até
mortes.
Quando se aproximava o carnaval começavam também as animosidades entre os
partidos. Cada qual queria mais exibir seu prestígio surgindo as indiretas e as
provocações. O carnaval, embora excomungado pela igreja (considerado festa do
demônio) era a grande diversão do povo.
Formavam-se blocos carnavalescos: os de Cima e dos de Baixo e os foliões
começavam a agir. As famílias muito preconceituosas e carolas, era difícil
conseguir o consentimento para as donzelas tomarem parte nos blocos e pular os
três dias. Mas os responsáveis pelos blocos iam, com todo respeito, fazer o
pedido aos pais, antes que o padre arrebanhasse as moças para o retiro
espiritual.
Os ensaios eram animadíssimos e cada partido fazia sua própria música. Os
chorinhos eram organizados com antecedência (cavaquinho, bandolim, violão,
flautas, pandeiros e caixas, etc.) e o povo era mais feliz na simplicidade de
uma cidade sem grandes opções, sem ganâncias, sem o terrível domínio das cifras.
Os foliões de Baixo, sob o comando das famílias Prates, Costa, Novais, Oliveira,
Fróes e Teixeira de Carvalho, tendo a frente o jovem Ary de Oliveira (irmão do
saudoso Jair de Oliveira) com a grande experiência das grandes capitais, fazia
valer seus conhecimentos, arquitetando planos, organizando blocos, carros
alegóricos, desenhando fantasias, bolando as canções e promovendo ensaios.
Do lado de Cima também tinham seus animadores, destacando-se as famílias Câmara,
Laborne Vale Alves Maurício, Viana, Miranda, Peres, Fernandes, a do Messias
Pimenta, do Polidoro Figueiredo, doutor João Alves e outras.
O Rei Momo recebia a chave da cidade e tomava conta nos três dias de carnaval.
Todos brincavam: jovens, velhos e crianças.
As Colombianas e os Pierrôs multiplicavam-se. Durante o dia o corso carnavalesco
com os carros alegóricos, num belo desfile em todas as ruas da cidade. Havia
concurso de blocos, de fantasias, dos carros alegóricos, das músicas, e a
disputa se travava, pois o juiz era imparcial.
Os blocos e carros alegóricos bem organizados, fantasias interessantes, o
colorido do confete e serpentina deslumbravam os espectadores e o cheiro do
lança-perfume embriagava os foliões.
Havia também a parte cômica do carnaval: os engraçadinhos com fantasias
extravagantes; palhaços bem estilizados, exibindo piruetas e malabarismos; e
mascarados irreconhecíveis, por trás das máscaras, dando largas aos recalques,
com gestos e trejeitos pornográficos. Naquele tempo não se viam gays e
travestis. Se existam eram muito discretos e escondidos.
Mas imitando o carnaval das grandes capitais, alguns mais audaciosos se vestiam
de mulher, mostrando as pernas cabeludas e a peitaria postiça aparecendo num
soutien improvisado, balançando-se ao som da música e rebolando um bum-bum
desajeitado.
Era uma admiração e um escândalo! As beatas se escandalizavam, fechavam as
janelas e faziam o sinal da cruz. Mas não adiantava. Os foliões queriam se
distrair e o carnaval continuava quente. À noite, aconteciam os bailes à
fantasia, prolongando-se até o amanhecer. Escolhiam entre aplausos a rainha da
carnaval, que muito emocionada recebia a faixa e a coroa das mãos de sua
antecessora.
Na quarta-feira de cinzas, tudo acabado. Mas ao raiar do dia, se ouvia ainda,
pelos cantos das ruas, num resto de pileque vozes dos Pierrôs frustrados pela
traição das Colombinas, nos delírios carnavalescos:
Um Pierrô apaixonado,
Que vivia só cantando
Por causa de uma Colombina,
Acabou chorando, acabou chorando.
É isto aí, minha gente! Montes Claros já teve o seu carnaval e, bom demais!...
(N. da Redação: Ruth Tupinambá Graça, de 94 anos, é atualmente a mais importante
memorialista de M. Claros. Nasceu aqui, viveu aqui, e conta as histórias da
cidade com uma leveza que a distingue de todos, ao mesmo tempo em que é
reconhecida pelo rigor e pela qualidade da sua memória. Mantém-se
extraordinariamente ativa, viajando por toda parte, cuidando de filhos, netos e
bisnetos, sem descuidar dos escritos que invariavelmente contemplam a sua cidade
de criança, um burgo de não mais que 3 mil habitantes, no início do século
passado. É merecidamente reverenciada por muitos como a Cora Coralina de Montes
Claros, pelo alto, limpo e espontâneo lirismo de suas narrativas). (Jornal de
Montes Claros).
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