|
|
|
|
COCHABAMBA E A GUERRA DA ÁGUA
Cochabanba, na Bolívia, nos fornece o bom exemplo de privatização para quem
ainda tem dúvida sobre as consequência desse procedimento que tanto querem
executar aqui.
"Cochabamba. Guerra da Água completa 10 anos
Notícia
by Redação - 4
A Guerra da Água – massiva mobilização popular que
expulsou a transnacional que geria o sistema de água
potável e esgoto de Cochabamba, região central da
Bolívia, em 2000 – completa uma década este ano, que
marcam também o início da derrota do modelo neoliberal e
o começo do atual “processo de mudança”.
A reportagem é de Vinicius Mansur e publicada pelo
Brasil de Fato, 24-02-2010.
Para a Federação Departamental Cochabambina de
Regantes (Fedcor), que organiza os moradores de
comunidades rurais e urbanas dotadas de sistemas
comunitários de água, a guerra, porém, começou ainda em
1999. Atentos ao problema dos recursos hídricos, a
Fedcor foi vanguarda na luta contra a privatização do
sistema de água potável e esgoto de Cochabamba,
realizando bloqueios já nos dias 4 e 5 de novembro
daquele ano.
“Criaram a lei 2029 para permitir a privatização, mas
não só venderam a empresa pública [Semapa] como
permitiram a Águas do Tunari [consórcio de empresas
beneficiado] ser dona de todas as fontes de água”,
explica Carmen Peredo, atual senadora suplente pelo
Movimento ao Socialismo (MAS) e então dirigente da
Fedcor.
De acordo com o representante da organização Água
Sustentável, Oscar Campanini, os regantes se
levantaram primeiro porque o contrato significava a
perda de sistemas comunitários que sequer haviam sido
criados pelo Estado. “Nas áreas rurais, eles são
anteriores até mesmo à Bolívia, foram criados durante o
Império Inca, com o trabalho e o dinheiro da comunidade,
geridos até hoje de forma comunitária pelas organizações
camponesas ou indígenas. Nas áreas urbanas, diante da
ausência do Estado na periferia, estes sistemas são a
mescla da experiência organizativa dos mineiros, que
migraram para a cidade com o desmonte do setor pelo
neoliberalismo, com essa tradição comunitária daqueles
que migraram da área rural. Só na zona sul de Cochabamba
existem cerca de 100 sistemas comunitários que atendem a
quase 200 mil pessoas. Nos municípios do entorno, são
cerca de 800”, relata Campanini.
Porém, em janeiro do ano 2000,
o anúncio de incremento de mais de 100% nas tarifas
feito por Águas do Tunari cai como uma bomba na cidade
Cochabamba e dá início a um massivo e extenso processo
de mobilização que ocupa as ruas da cidade, e até mesmo
de outros departamentos bolivianos, até abril de 2000,
quando a empresa é expulsa do país. A população se
revolta contra o consórcio encabeçado pela estadunidense
Bechtel, que prometeu um projeto de 300 milhões de
dólares para resolver os problemas de abastecimento da
cidade, mas que, em sua conformação, concretizada dois
dias antes da assinatura do contrato de concessão,
declarava, em sua ata de fundação, apenas 10 mil dólares
de capital.
As vitórias políticas
Para Ramiro Saravia, militante da Rede Tinku –
organização político-cultural que tem como sede a
principal praça da cidade (14 de Setembro) –, a Guerra
da Água “foi uma escola de participação, de gente na rua
e na praça que perdeu o medo e passou a ter confiança em
si, articuladas pela Coordenadora da Água e da Vida”,
instância que dirigiu as mobilizações e aglutinou todos
os setores de Cochabamba, organizados ou não, “com
democracia direta, da forma como sempre sonhamos”,
relembra Saravia.
“Foram quase seis meses de mobilização permanente, todas
as ruas, highlones [burguesas] ou não, estavam
bloqueadas, sem exceção. Foi a primeira vez, depois de
muito tempo, que se viu a unidade de diferentes classes
e a aliança do campo com a cidade”, relata a senadora
suplente do MAS.
Segundo o historiador, diretor da escola de formação
política itinerante do MAS e prefeito interino de
Cochabamba em 2008, Rafael Puente, “a novidade
política foi a capacidade de auto-organização massiva na
cidade”. Contudo, ele ressalta que o movimento não teria
tal magnitude “se não estivesse permanentemente
respaldado por um cordão camponês que apoiava e defendia
a mobilização urbana, tanto na Cordilheira, como no Vale
e no Trópico de Cochabamba”. De acordo com Puente, a
guerra foi o ponto de inflexão do modelo neoliberal, “a
primeira de muitas demonstrações de que a manutenção do
modelo no país só seria possível a ferro e fogo” e, por
isso, o início do atual processo de cambio.
Ele conta que, “pela primeira vez, a mobilização social
não levantava uma bandeira de volta ao passado, à
Revolução de 1952, mas uma visão adiante. A consigna era
clara: a gestão social da água. O quarto grande bloco
histórico da vida republicana do país, que foi o modelo
neoliberal, se manteve intacto até 2000. Mas a expulsão
de Águas de Tunari foi a sua primeira grande ferida”.
Segundo a senadora suplente Peredo, os guerreiros da
água influíram de forma direta na Nova Constituição
Política de Estado, colocando os recursos hídricos como
um direito humano fundamental e estabelecendo “cadeados
jurídicos que impedem a volta da tragédia”. Campanini
afirma que a experiência acumulada
com o conflito levou a Bolívia a encabeçar a luta pelo
reconhecimento da água como um direito nos fóruns
internacionais, “mas isso não é realidade porque
países maiores, como o Brasil, jogam para o outro lado”.
Outros legados da Guerra da Água destacados por
Campanini são a expulsão da transnacional franco-belga
Suez de El Alto, em
2005, o aumento dos investimentos do Estado boliviano em
água e o aumento da visibilidade dos sistemas
comunitários: “Os anteriores governos atendiam, e mal, à
parte central das cidades e o campo, mas não às zonas
peri-urbanas, que têm uma gestão comunitária muito
interessante, mas precisam de ajuda técnica e de
infra-estrutura. Com a luta, eles são vistos pelas
políticas públicas e já ganharam boa parte dos fundos
públicos para o setor”.
A dívida histórica
Porém, segundo Puente, a bonita história do exercício do
poder popular não conseguiu resolver velhos problemas.
“Temos que dizer com frieza: essa gestão social não
existe, a administração segue ineficiente, injusta e
cara. Houve uma modernização tecnológica, aumentou um
pouco as conexões, mas nada perto do que se esperava.
Ganhamos a guerra, mas não conquistamos a paz”.
Segundo Campanini, cerca de 50% da rede deveria ser
reinstalada, porque, do volume total captado pela Semapa,
metade se perde com vazamentos. “Trabalhadores já
comentaram que foram trocar tubos em alguns lugares,
cavaram, mas não os encontraram. Os tubos estavam tão
desgastados que eram simplesmente canais de terra ou
pedra”, conta. Outro problema está
nas conexões clandestinas manipuladas por grupos de
trabalhadores da empresa e por políticos. “Aí
esses grupos cobram por fora e, aliados a segmentos
políticos, fazem chantagem eleitoral com a população
prometendo novas conexões”, denuncia.
Em Cochabamba, boa parte da população ainda se abastece
de carros-cisterna privados que cobram 20 bolivianos (R$
5,27) pelo metro cúbico de água de baixa qualidade. A
mesma quantidade, e de boa qualidade, fornecida pela
Semapa custa, em média, 3 bolivianos.
“Eu pago mais de água do que luz e com freqüência temos
escassez de água, em toda cidade. E a Semapa ainda
contratou outra empresa só para efetuar cortes de quem
não paga, é incrível”, relata, cabisbaixo, Saravia.
Mais triste do que constatar a continuidade de problemas
estruturais, é ouvir porque o movimento que expulsou uma
transnacional não assumiu o controle da empresa. Segundo
o historiador Puente, “os dirigentes começar a disputar
a notoriedade. Os dirigentes da Coordenadora claudicaram
e vários deles aproveitaram o
papel importante que tiveram para obter vantagens
pessoais e passaram a partidos de direita”.
Saravia afirma que a Coordenadora funcionou bem até
2002, quando chegaram as eleições
e todos os 15 principais dirigentes foram candidatos.
“Ofereceram deputação até para nós, mas não aceitamos
porque o princípio da Coordenadora era a decisão
conjunta, mas quando vimos todos já tinham decidido e
estávamos sós”.
Na visão de Peredo, ex-dirigente da Fedcor, que tinha
assento na direção da Coordenadora, o órgão se diluiu
“porque outros companheiros tinham sua própria ótica e
não havia a mesma linguagem”, gerando uma paralisia na
organização que foi fundada no consenso. “Perdemos muito
tempo e quando não fazemos a coisa no calor do momento,
perdemos a oportunidade. Demoramos meses para fazer um
novo estatuto da Semapa, mas havia muitas divergências
sobre como deveria ser a empresa. Temos uma dívida
histórica”, concluiu.
O sindicalista Oscar Oliveira, consolidado na
opinião pública como principal dirigente da guerra, é
apontado como um dos principais responsáveis pela má
condução da reestatização por Puente. “Ele superestimou
o momento histórico e seu papel, dizendo já em 2000 que
o tema da água já era pequeno e que se dedicaria a lutar
contra tudo o que foi o processo de capitalização das
empresas públicas na Bolívia. Evidentemente era a
batalha central, mas que se deu com o tempo. Assim,
deixou a questão para Jorge Alvarado, um companheiro com
méritos, mas que se isolou em meio às disputas e se
perdeu na burocracia”.
O integrante da Rede Tinku, Saravia, eleva a crítica à
Oliveira. “Fizeram da luta um negócio e com o dinheiro
que deram a Cochabamba o Oliveira criou a Fundação
Abril, que se especializou no tema água”.
Até mesmo o pequeno avanço conseguido na gestão da
empresa – a eleição direta pela população de três
diretores da Semapa – se perdeu. Segundo Puente, “no
primeiro ano teve certo efeito, elegendo lutadores que
participaram da luta, mas alguns deles tardaram pouco a
somar-se à burocracia e à corrupção nessa e em outra
instâncias. E a fé da cidadania diminuiu tão rapidamente
que faz dois anos um candidato era eleito por 400 votos,
num universo de 300 mil eleitores”.
Mesmo diante de tantas decepções, Saravia comenta que a
derrota do neoliberalismo foi tão acachapante que
o discurso privatista não
ressurgiu. “O povo sabe que isso é pagar mais.
O povo quer que melhore o serviço e que não haja
corrupção”, sentenciou.
Cronologia da Guerra da Água*
3 de setembro de 1999 – Assinado contrato entre governo
e Águas do Tunari.
20 de outubro – Promulgada lei 2029, chamada de “Serviço
de Água Potável e Esgoto”.
4 e 5 de novembro – Os regantes iniciam os bloqueios de
ruas e estradas.
12 de novembro – Criação da Coordenadora da Água e da
Vida.
11, 12 e 13 de janeiro de 2000 –
A Coordenadora organiza um grande
bloqueio contra o aumento das tarifas em mais de 100%
e contra a lei 2029. Governo se compromete a rever as
tarifas e a lei.
4 e 5 de fevereiro – A Coordenadora realiza a tomada de
toda cidade e o Exército vai às ruas. Governo assina
documento se comprometendo a retomar as tarifas
anteriores.
26 de março – A Coordenadora realiza um referendo com
mais de 50 mil votantes a favor da expulsão de Águas do
Tunari.
4 de abril – Convocação de bloqueio indefinido.
6 de abril – Em reunião de negociação, prefeitura
declara preso os dirigentes e governo central declara
estado de sítio. Cerca de 50 mil pessoas tomam a praça
central, onde está a sede da prefeitura. O prefeito
volta atrás, desmente o estado de sítio e comunica a
saída de Águas do Tunari da cidade.
7 de abril – Governo central nega o rompimento do
contrato. Prefeito de Cochabamba renuncia e um novo
estado de sítio é declarado. 22 dirigentes são presos.
8 de abril – As estradas de todo o Altiplano da Bolívia
são bloqueadas, os enfrentamentos crescem e deixam um
morto. Mas exército e polícia se retiram aos quartéis e
a cidade fica nas mãos dos manifestantes.
9 de abril – Aniversário da Revolução de 1952.
Autoridades pertencentes ao MNR (partido da Revolução)
comparecem ao enterro do jovem assassinado e são
agredidos pelos manifestantes.
Governo central anuncia saída de Águas do Tunari.
10 de abril – A Coordenadora exige documento do governo
oficializando sua posição. Ele se nega e acusa a
rebelião de Cochabamba de ser fruto do “narcotráfico”.
Manifestantes iniciam marcha massiva e governo realiza a
rescisão do contrato.
11 de abril – Parlamento aprova a lei com as
modificações propostas pela Coordenadora. No campanário
da Igreja localizada na praça central de Cochabamba, é
encontrado enforcado o jovem Juan Rodriguez, responsável
por, durante a guerra, avisar a população da chegada do
Exército e da Polícia com os toques do sino.
12 de abril – Terminam os bloqueios.
14 de abril – Presos são libertados e familiares de
mortos e feridos indenizados.
*Dados retirados do livro “La guerra por el agua y por
la vida”, de Ana Esther Ceceña.
(Ecodebate, 01/03/2010) publicado pelo IHU On-line,
parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da
informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
– Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
<https://www.ecodebate.com.br/2010/03/01/cochabamba-guerra-da-agua-completa-10-anos/>
“O povo sabe que isso é pagar mais. O povo quer que
melhore o serviço e que não haja corrupção”, quando
se trata de privatização,
lá na Bilívia; aqui parece que o povo ainda ainda não
sabe.
Ver mais POLÍTICA E
ECONOMIA
|
..
|
. |
|
|