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CORTE NA CARNE
Revista VEJA, 16/2/2011
MAIS LONGE
DO PRATO
Os
brasileiros já sentiram no bolso o aumento nos preços, fruto da tolerância do
governo com a inflação no ano eleitoral. Chegou a hora de pagar essa conta
amarga
Marcelo Sakate
Sinal amarelo
na economia brasileira. O ritmo de reajuste nos preços se acelera desde meados
do ano passado. O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo
IBGE, acumula uma alta de 6% nos doze meses encerrados em janeiro, acima do
centro da meta oficial do Brasil, de 4,5%. Mas esse indicador é apenas uma
média. Como as donas de casa já haviam notado bem antes de muitos economistas,
em especial aqueles que batem o ponto no governo, há mercadorias que encareceram
muito mais rapidamente. No último ano, o feijão-fradinho foi o produto cujo
preço mais subiu, segundo o IBGE: alta de 63%. Os aumentos mais sentidos
no bolso dos consumidores, no entanto, foram aqueles nos preços da carne,
principalmente nos cortes nobres. O quilo do filé-mignon teve um reajuste de
52%, e o da picanha, de 42%. Os bifes de carne de primeira ficaram
mais distantes dos pratos dos brasileiros, sobretudo para aqueles que apenas
agora começaram a sentir esse gostinho. Há supermercados e açougues nos quais o
quilo desses cortes chegou a 70 reais, o dobro do que se paga pelo bacalhau do
Porto.
Para justificar
a alta e tranqüilizar a população, o governo se ampara na explicação de que
esses aumentos de preços são motivados por fatores externos e transitórios. A
realidade é um pouco mais complexa e desafiadora. Como o quadro ao lado revela,
não são poucos os itens cuja remarcação superou 10% no último ano -
alguns deles, indispensáveis na maior parte dos lares. De fato, os preços dos
alimentos estão em alta no mundo inteiro. Passada a crise financeira mundial, os
países em desenvolvimento voltaram a crescer de maneira acelerada. Os milhares
de chineses e indianos que saem da miséria, a cada ano, passam a se alimentar
melhor, consomem mais grãos e carne, elevando os preços. No caso especifico da
carne, houve ainda a contribuição de fatores como a seca na Austrália e a queda
na produção argentina. Mas, segundo os especialistas, o aumento no poder de
compra levou o brasileiro a consumir mais carne, principalmente a carne de
primeira. Em 1994, quando o real foi lançado, a elevação nas vendas do frango e
do iogurte simbolizou a melhora no poder aquisitivo daqueles mais pobres com o
fim da inflação.
Agora a
emergência social é representada pela picanha, o corte bovino tido como o mais
nobre nos churrascos. O aumento da procura bateu no preço. Diz Antonio Comune,
economista da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe): “A picanha e o
filé-mignon são as carnes mais apreciadas pelo brasileiro. Por isso subiram mais
nesse cenário econômico favorável e com renda em alta”. Há dois anos, uma nota
de 20 reais bastava para comprar uma peça de picanha. Com a mesma cédula, hoje
não se compra nem 0,5 quilo. O aumento na demanda está por trás também do
aumento de 11% nos restaurantes, da alta de 12% nas tarifas de hotéis,
14% nos bilhetes aéreos e 31% no ingresso para as partidas de futebol. É uma
situação que o brasileiro comum, que vai diariamente ao supermercado e às lojas,
já percebeu há alguns meses, mas da qual o governo parece só agora ter se dado
conta.
No mercado
doméstico, poucas vezes se viu cenário tão propício para o consumo. O desemprego
está no menor patamar da história recente, os reajustes salariais obtidos por
diferentes categorias profissionais superam a inflação, o que impulsionou a
massa de renda disponível. Seriam apenas boas notícias caso a economia
brasileira já tivesse capacidade de suportar um ritmo de crescimento tão
acelerado - que beirou 8% no último ano. Mas ainda não é o caso, e isso se
reflete nos preços. Quando a demanda sobe num ritmo mais acelerado do que a
oferta, os produtos saem mais rápido das prateleiras. O corolário desse
processo, se não contido, é a remarcação de preços e, por fim, a perda do poder
de compra. Historicamente, a alta nos preços é sentida especialmente pelos mais
nobres. É o que já começou a ocorrer no Brasil. Em janeiro de 2010, um
trabalhador que ganhasse um salário mínimo teria de cumprir uma jornada de 86
horas e 48 minutos para comprar os alimentos que formam a cesta básica. No
mês passado, deveria trabalhar quase nove horas a mais. Os oportunistas poderiam
ver nesse fenômeno uma justificativa adicional para defender um reajuste ainda
maior para o salário mínimo. Estariam embaralhando causas e efeitos. Forçar o
reajuste maior dos salários apenas reacenderia a armadilha da indexação,
contribuindo para perpetuar a alta nos preços. Explica André Braz, economista da
FGV: “O salário mínimo é um custo importante para vários serviços,
principalmente os mais básicos, como lavagem de carro e salão de beleza, que
pagam esse valor para os seus funcionários. Na medida em que ele cresce acima da
inflação, aumentam os custos desse segmento, com repasse para o preço final.
Isso vai realimentando todo o processo inflacionário”.
Existem dois
instrumentos clássicos, conhecidos e comprovadamente eficientes para quebrar
essa espiral ascendente antes que ela saia do controle:
aumento na taxa de juros e corte nos gastos públicos. São remédios
amargos, que já começam a ser sentidos pelos consumidores. Os juros médios para
o crédito pessoal, por exemplo, saltaram de 40%, em dezembro, para 49%, depois
que o Banco Central aplicou medidas restritivas ao financiamento. A taxa básica
de juros, a Selic, foi elevada para 11,25% e deverá seguir em alta nas próximas
reuniões do Comitê de Política Monetária do BC (Copom). Essa elevação encarecerá
ainda mais o crédito, esfriando a economia. O governo, depois de ter ampliado os
seus gastos em 15% acima da inflação no ano passado, promete retomar a política
de austeridade. Na semana passada, os ministros Guido Mantega, da Fazenda, e
Miriam Belchior, do Planejamento, anunciaram um corte de 50 bilhões de reais nas
despesas governamentais previstas no orçamento aprovado pelo Congresso. Porém as
autoridades não deram detalhes a respeito de como serão feitos esses ajustes.
A dose desses
remédios terá de ser ainda mais amarga agora porque o governo demorou a agir. No
ano eleitoral, liberou verbas num ritmo nunca visto, comprometendo as metas
fiscais e contribuindo para superaquecer a economia. O BC, por sua vez, retardou
a alta nos juros, a despeito das evidências de que os preços começam a subir num
ritmo ameaçador. “Em vez de o Banco Central matar de vez a cobra, ou melhor, o
dragão, no ano passado, deu tempo para que ele se mexesse. Agora será necessário
um esforço maior, elevando o custo para a sociedade”, afirma o economista
Gustavo Loyola, ex-presidente do BC e sócio da consultoria Tendências. Completa
Loyola: “Não podemos tolerar que a inflação fuja do controle num pais como o
Brasil, que ainda tem resquícios de indexação. Quanto menor a inflação, menor o
custo para mantê-lo em patamar baixo, porque todos os agentes econômicos
trabalham com a perspectiva de que ela vai se manter assim e resistem à tentação
de reajustar seus preços”. O dilema, no entender do economista José Júlio Senna,
da MCM Consultores, é que o governo posterga ajustes mais duros porque busca
equilibrar políticas por vezes contraditórias. “O governo trabalha com tantos
objetivos sem possuir instrumentos para alcançá-las”, afirma Senna. Em resumo,
procura fazer omeletes sem quebrar ovos. Quer controlar a inflação, mas sem
subir os juros em demasia nem reduzir drasticamente a gastança pública.
Enquanto vacila
na tentativa de alcançar metas irreconciliáveis, a equipe econômica dá chances
para que o dragão abra os olhos. Chegou a hora de o governo abrir os olhos, sob
pena de o ajuste sair ainda mais caro para os brasileiros.
QUANDO O DINHEIRO ACABA EM CINZAS
Luiz
Guilherme Barrucho
Entre janeiro
de 1980 e junho de 1994, véspera do Plano Real, a inflação acumulada no Brasil,
medida pelo IPCA, foi de 10,5 trilhões por cento (ou 10500000000000%). Em 1993,
a taxa anual atingiu 2477%. Naquele ambiente, a cada mês a moeda perdia
praticamente metade do seu poder de compra. A hiperinflação brasileira foi uma
das mais agudas e renitentes de toda a história econômica. O Brasil amenizou o
impacto da destruição diária do valor da moeda com o recurso da correção
monetária e suas versões mais agressivas, o “overnight” e a “conta remunerada”,
que corrigiam o valor dos depósitos à vista nos bancos. Vergada pela impiedosa
reparação cobrada pelos aliados que a derrotaram na I Guerra Mundial, a Alemanha
enfrentou hiperinflação sem correção monetária. Isso ocorreu no período que
precedeu e propiciou a ascensão dos nazistas ao poder. Em 1918, com 3 marcos se
comprava 1 dólar americano. Em 1923, cada dólar custava 4,2 trilhões de marcos.
Queimar cédulas
de marco na lareira no inverno era mais barato do que usar lenha. A maior
hiperinflação, porém, ocorreu na Hungria, no período posterior à II Guerra
Mundial. Os húngaros chegaram a carregar nos bolsos cédulas no valor de 100
quintilhões - 100 seguido de dezoito zeros. Em 1946, quando o governo húngaro
criou uma nova moeda, o valor total de todo o dinheiro em circulação no país
correspondia a um décimo de 1 centavo de dólar. No Zimbábue, país do ditador
Roberto Mugabe no sul da África, a inflação anual em 2008 alcançou 231000000%.
Um ovo de galinha chegou a ser vendido por 50 bilhões de dólares zimbabuenses. O
Zimbábue controlou a hiperinflação ao recorrer à única saída possível a um país
arrasado: abdicar das próprias divisas. A economia funciona agora em dólares,
euros e rands, moeda da vizinha África do Sul. A inflação caiu para 3% ao ano.
Com o real, o Brasil, ao contrário do Zimbábue, passou a valorizar de verdade
sua própria moeda. Trata-se de um patrimônio que se espera que governo nenhum
volte a pôr em jogo.
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