COVID 19 FÚRIA DE DEUS?!
A comunidade haredi está a ser devastada
pela covid-19. Centenas de pessoas foram detidas por violar o isolamento social
em celebrações religiosas.
João Campos Rodrigues
A olho destreinado, é difícil pensar numa explicação religiosa para o facto
dos tementes a Deus (haredi, em hebraico) serem tão afetados pela covid-19
- em Israel, uns três quartos dos casos estão ligados à comunidade
ultraortodoxa, que compõe apenas 12% da população. Cientificamente, há
explicações óbvias, como as enormes celebrações de Purim, a 9 e 10 de março.
Daqui a umas semanas, talvez se fale nas festas de Lag Baomer: esta terça-feira
à noite, mais de 300 haredi foram detidos em redor das tradicionais fogueiras no
monte Meron, por violar o isolamento social - na noite anterior, em Brooklyn,
centenas de ultra-ortodoxos tinham sido dispersos pela polícia nova-iorquina.
“Os haredi têm morrido, em comparação com o público geral, numa percentagem
muito mais elevada. No exterior também”, admitiu o rabi Gershon Edelstein, um
dos mais influentes líderes da comunidade, num sermão na televisão. “O que é que
isto significa?”, questionou.
As frequentes quebras do isolamento em sinagogas, orações e funerais dos
ultra-ortodoxos estavam muito longe dos seus pensamentos. Para Edelstein a
explicação está no termo tinok she’nishba, ou “bebé nascido em cativeiro”, que
descreve judeus nascidos laicos, que têm menos responsabilidade ao pecar.
“Eles não são culpados. Eles não receberam educação... Os seus pecados são
inadvertidos. Mas um haredi - um haredi que peque não o faz inadvertidamente”,
justificou o rabi, citado pelo Haaretz. “Quando há pecado
entre o público, a justiça divina atinge mais os haredi”, explicou. Como
assegurou um estudante de uma escola haredi ao Times of Israel: “A
Torá protege-nos e salva-nos. Não temos medo”.
“Isto é louco” Em Israel, o Lag Baomer, o festival do fogo
judaico, que marca o aniversário do místico Shimon bar Yochai, levou pessoas a
juntar-se um pouco por todo o país, não apenas no monte Meron, onde fica o
túmulo do místico. Em Jerusalém, no bairro de Mea Shearim, chamaram a polícia de
choque, que foi recebida com pedras. “É um incidente muito sério, especialmente
num local que já foi definido como uma ‘área vermelha’, devido a um grande surto
anterior”, lamentou um funcionário do ministério de Saúde ao Ynet.
Do outro lado do planeta, o cenário foi semelhante. Centenas de judeus
ultra-ortodoxos cantaram e dançaram de mãos dadas à volta de uma fogueira, no
bairro de Crown Heights, em Brooklyn, na segunda-feira. Não havia uma máscara à
vista.
“Fiquei em choque”, contou Richard Ward, um estafeta que andava a entregar
comida quando assistiu ao evento. Chamou a polícia, que demorou cerca de uma
hora a dispersar a multidão. “Eu estava tipo: ‘isto é louco’”, acrescentou ao
New York Post. Perto dali, foram filmadas cenas semelhantes em Borough Park, um
bairro maioritariamente haredi.
Vacinação
A covid-19 não é a primeira doença
infecciosa a afetar desproporcionalmente ultra-ortodoxos.
Em 2019, o maior surto de sarampo da história recente de Nova Iorque, com
centenas de vítimas, centrou-se em Brooklyn e na sua população haredi: há forte
resistência à vacinação dentro da comunidade. Não por algum motivo
religioso em particular, atenção.
“Sendo um judeu religioso, estás habituado a ter o ponto de vista da minoria”,
dizia na altura Alexander Rapaport, um líder da comunidade haredi, à Vox.
Justificava porque é que os haredi são tão vulneráveis à propaganda contra às
vacinas - a explicação assenta que nem uma luva à resistência ao isolamento
social.
Isolamento
A comunidade haredi tende a criar bairros
próprios, tanto em Brooklyn como em Bnei Brak, nos subúrbios de Telavive. O
bairro foi devastado pelo coronavírus, e três cidades maioritariamente haredi,
Beit Shemesh, Elad e Modiin Illit, já têm cada uma mais casos ativos que a
capital, apesar de terem menos de metade da população.
Um dos motivos por que a comunidade haredi se isola é a sua desconfiança em
relação à internet. Mas isso parece ter os dias contados: com a quarentena,
houve um aumento de cerca de 40% no tráfego online em Bnei Brak, segundo a
operadora Bezeq, avançou a Reuters.
Importa lembrar que a comunidade ultraortodoxa é tudo menos monolítica, como
muitas vezes é retratada. Há várias fações profundamente dispares:
algumas opõem-se visceralmente ao sionismo e à existência de um Estado judaico,
outras apoiam partidos que fazem parte da coligação de direita que sustenta o
Governo de Benjamin Netanyahu.
Aliás, ainda no mês passado, Yaakov Litzman, então ministro da Saúde e
líder do partido ultraortodoxo Judaísmo Unido da Torá,
acabou por demitir-se após contrair o novo coronavírus. Foi acusado de violar as
suas próprias regras para ir a uma oração.
Perseguição? Discutir as práticas religiosas dos ultra-ortodoxos, mesmo num
contexto de saúde pública, é sempre um tema complicado em Israel. A comunidade
há muito que se queixa de descriminação e sofre de uma dura cobertura na
imprensa israelita: a recusa de muitos haredi em cumprir o serviço militar
obrigatório ou em trabalhar, dedicando-se aos estudos religiosos, é tudo menos
popular.
“Quando maiores taxas de infecção e mortalidade nas vilas haredi foram
registadas, muitos de nós, haredi, sabíamos o que vinha aí”, escreveu Avi
Shafran, colunista no Haaretz. “Serviços essenciais como manter a rede elétrica
operacional e a água canalizada não foram fechados”, lembrou Shafran. “Para um
líder haredi, fechar escolas é mais próximo desses exemplos que fechar negócios
ou locais de entretenimento”.
“Sim, algumas comunidade haredi não reconheceram a viralidade do vírus tão
depressa”, assumiu o colunista. “Julgar uma comunidade inteira por exceções
recalcitrantes é a essência da intolerância”, defendeu.
<https://sol.sapo.pt/artigo/696469/covid-19-ultra-ortodoxos-procuram-explicacao-para-f-ria-de-deus>
“Quando há pecado
entre o público, a justiça divina atinge mais os haredi”, “A
Torá protege-nos e salva-nos. Não temos medo”. Essas duas
frase exemplificam o quanto a fé pode fazer perpetuar a ignorância da realidade.
Irracionalmente, em vez de perceberem que nem Torá nem Yavé defende ninguém,
persistem em tentar explicações infantis.
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