"Religião também é usada para |
O procurador Jefferson Aparecido Dias (foto), da
Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal
em São Paulo, vem sofrendo ameaças de morte desde que deu entrada a uma ação
na Justiça pedindo a retirada da expressão “Deus seja louvado” das cédulas
real.
“Eu estou sendo ameaçado por causa dessa ação, por cristãos”, disse em
entrevista a Talita Zaparolli, do portal Terra. “Recebi alguns emails com
ameaças, em nome de Deus.”
O procurador tem se destacado como defensor da laicidade do Estado
brasileiro. Em 2009 ele ajuizou uma ação pedindo a retirada de símbolos
religiosos das repartições públicas federais.
Dias, que é católico, recorreu à Bíblia para defender a laicidade prevista
na Constituição. “Em nenhum momento Jesus deu a entender, para quem é
cristão, que o dinheiro deveria trazer o nome dele ou o nome de Deus”,
disse. “Acho que é uma inversão de valores.”
Na entrevista, ele informou que pediu a retirada de Deus do real em
atendimento a uma representação de uma pessoa ateia. Ele também rebateu as
críticas segundo as quais não tem o que fazer e falou sobre algumas
conquistas do Ministério Público Federal.
Segue a íntegra da entrevista.
"Da forma como está hoje, um presidente poderia
mandar colocar no real 'Vai Corinthians'"
Como
surgiu essa ação [da retirada de Deus do real]?
Uma pessoa ateia entrou com uma representação na PRDC [Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão] questionando a existência do "Deus seja louvado". Na procuradoria, as queixas são distribuídas e, dependendo da temática, vai para a PRDC. Toda essa temática de liberdade religiosa vai para a PRDC e aí eu passo a investigar. A reclamação era só no aspecto de laicidade do Estado, um Estado laico. E aí nós constatamos também que não tem uma lei autorizando, que era um pedido pessoal do ex-presidente da República num primeiro caso e, depois, um pedido pessoal do ministro da Fazenda. Então aí a ação é proposta sob dois aspectos: violação da legalidade e violação do princípio da laicidade do Estado.
A pessoa que entrou com a representação se sentia incomodada com a
expressão?
Ela relata que se sentia afetada na sua liberdade religiosa pelo fato dela
não crer em Deus e ter que conviver com a manifestação estatal de predileção
por uma religião. Se chegar uma representação pra mim, independentemente de
qual for a temática, eu sou obrigado a investigá-la. É uma obrigação legal
minha.
A substituição das cédulas vai gerar despesas ao Banco Central?
Não vai gerar nenhum gasto. As cédulas vão se danificando e vão sendo
substituídas gradativamente. Ela tem um tempo de vida útil e aí ela acaba se
deteriorando e sendo substituída. Na ação nós pedimos que, nessa
substituição de cédulas, elas sejam trocadas sem a expressão. Nem que demore
10, 15 ou 20 anos. Mas acredito que demore menos.
Um ateu entrou com a representação por se sentir ofendido, mas fato de
retirar a expressão "Deus seja louvado" das cédulas não vai ofender uma
população 64% católica, além das demais religiões cristãs?
O Estado não pode manifestar predileção religiosa. O Brasil optou em 1890
por ser um Estado laico. O mais grave que um eventual sentimento dos
católicos, é o fato de ser ilegal. Por exemplo, eu não gosto de pagar
impostos, então não quero pagar impostos, mas é ilegal. Mesmo sendo
católico, eu ouso discordar um pouco. Porque, se você for estudar a Bíblia,
Jesus nunca teve uma posição materialista. Jesus disse que, quando lhe é
perguntado se ele deveria dar dinheiro, pagar imposto a César, ele fala "A
César o que é de César, a Cristo o que é de Cristo". Quando ele encontra
vendedores no templo, ele os expulsa de lá dizendo que "A casa do Senhor não
é casa de comércio". Perguntado sobre o rico, ele fala que "seria mais fácil
um camelo passar pelo buraco da agulha do que um rico entrar no reino dos
céus". Então, em nenhum momento Jesus deu a atender, para quem é cristão,
que o dinheiro deveria trazer o nome dele ou o nome de Deus. Acho que é uma
inversão de valores.
Com tantas injustiças e violência, essa não seria uma forma de ressaltar
certa religiosidade, pregar o cristianismo?
Mas essa é uma injustiça e uma violência. Eu estou sendo ameaçado por causa
dessa ação, por cristãos. Recebi alguns emails com ameaças, em nome de Deus.
Ameaças em que sentido?
De que vão me matar. A religião é usada para violação de direitos humanos
também. Acho um pouco de hipocrisia do religioso que usa um discurso, mas
não usa uma prática condizente. Eu tenho uma religiosidade, a minha, mas
acho que o Estado não pode ter religiosidade. Cada cidadão tem direito de
optar pela sua.
O senhor já foi abordado na rua, questionado sobre essa a ação?
Na sexta-feira, em um jantar, fui bastante abordado. Mas para ser elogiado
pela iniciativa. As pessoas me questionam mais pelo Twitter.
O senhor responde aos comentários?
Em alguns casos eu respondo. Só não quando a pessoa falta com a educação
porque a abordagem está sendo agressiva, desrespeitosa.
O senhor poderia divulgar o seu endereço no Twitter?
Jefferson Dias - Claro, é @jeffdiasmpf.
Qual a posição do senhor com relação à crítica do ex-presidente e
presidente do Senado José Sarney (PMDB-AP) que disse "eu acho que isso é uma
falta do que fazer"?
Eu acho que as pessoas não se dão ao trabalho de pesquisar sobre o trabalho
da PRDC. Só nos últimos seis meses, por exemplo, nós fizemos um acordo com o
INSS (Instituto Nacional da Seguridade Social) em uma ação nossa, que é o
maior acordo da história do instituto. Em torno de 3 milhões de pessoas
serão beneficiadas e R$ 15 bilhões. Nós conseguimos obrigar o governo
federal a fornecer remédios para o AVC (acidente vascular cerebral), em
abril desse ano. Temos uma ação contra a Anac (Agência Nacional de Aviação
Civil) para que ela obrigue as empresas aéreas a transportar cadeiras de
rodas sem custo, porque ela cobra. Na página da Procuradoria nós temos
relatórios semestrais. Há uma PRDC por Estado e nós somos a que mais tem
demanda, a que mais tem ações, a que mais produz. Então eu estou um pouco
acostumado. Se eu entro com uma ação defendendo portadores de necessidades
especiais, falam que eu não tenho o que fazer. Se eu entro com uma ação
defendendo homossexuais, falam que eu não tenho o que fazer. Então, isso é
desculpa de quem se sente incomodado com alguma das nossas medidas. Sempre
as pessoas acham que o outro problema é mais importante.
O senhor foi procurado por algum representante do Banco Central, do
governo federal ou até mesmo por algum religioso para que a ação fosse
retirada?
Até o momento não.
Na moeda americana, o dólar, também há a expressão religiosa In God we
trust (Nós confiamos em Deus) e também uma em latim annuit coeptis
(Deus ajudou na nossa empreitada). O senhor é contra essas manifestações?
A história do dólar é um pouco diferente. Essas expressões foram colocadas
no dólar em 1.776 pelos maçons porque eles ajudaram na independência do
País. Existe toda uma história. Mas no Brasil foi mandado colocar pelo
ex-presidente José Sarney em 1986. Não tem história nenhuma. E da forma como
está hoje, um presidente poderia mandar colocar "Vai Corinthians", por
exemplo. E se a maioria entender que é para colocar essa expressão? Aí o
restante vai ter que aceitar? Pelo discurso do Banco Central, poderia
colocar isso.
Então se quisermos escrever alguma outra expressão nas cédulas, como
"Pague seus impostos em dia", por exemplo, poderia?
Pela tese do Banco Central, sim. Segundo o governo federal, pode ser
colocada a mensagem que quiser. E é contra isso que eu estou lutando.
Por se tratar de uma ação demorada, sua saída da PRDC (no início de 2013
devido ao término do mandato) enfraqueceria esse pedido?
Em tese não. Mas pode ser que haja alguma decisão e ninguém recorra. Não tem
como prever o que vai acontecer. Principalmente porque, em tese, é uma ação
que pode ser levada até o Supremo Tribunal Federal. E as decisões do Supremo
são bem interessantes. O ministro Marco Aurélio Mello quando foi julgar o
caso do aborto de anencéfalos, no voto dele, ele fala muito sobre as
cédulas. Ele já fala que ele acha que deveria ser retirada a expressão.
Tanto que a ação foi baseada muito no voto dele também. Inclusive, ele
conseguiu dados que o Banco Central se recusava a me informar. Porque o BC
foi muito reticente em me dar informações sobre por que havia sido incluído,
quem mandou, e quem conseguiu foi ele.
O Banco Central dificultou de alguma forma?
O Banco Central dificultou sim a obtenção de informações, acho que, já
desconfiado de que ia ter alguma medida judicial. Num primeiro momento ele
respondeu única e exclusivamente que a expressão foi incluída porque estava
no preâmbulo da Constituição, só. Aí depois que o ministro Marco Aurélio
descobriu tudo e colocou no voto dele, aí sim o Banco Central começou a
reconhecer que não era bem assim, que existiam pedidos pessoais.
Mas a expressão usada no preâmbulo da Constituição não é feita em nome de
Deus?
Sim, é outra. Inclusive o Supremo já decidiu que a palavra Deus no preâmbulo
não tem força normativa, não gera efeitos jurídicos. Pessoalmente, acho que
estamos abstraindo um problema de sentimentos pessoais. Acho que é
inevitável. O Brasil, mais cedo ou mais tarde, vai ter que fazer essa
separação efetiva entre Estado e governo. O interessante é que a própria
Igreja Católica tem documentos dirigidos aos países muçulmanos.
Quando diz
respeito a países muçulmanos, a Igreja Católica defende a separação de
Estado da igreja. Mas quando é do lado dela, ela defende outra coisa.
Essas expressões não são utilizadas apenas pela Igreja Católica, mas por
outras igrejas cristãs também.
Mas tudo indica que foi incluída pela Igreja Católica. Além de ser uma
expressão que não vai incorporar os politeístas e os ateus. Vamos supor que
o próximo presidente da República seja ateu e ele queria escrever "Deus não
existe". Pela regra que eles falam, poderia.
Como senhor avalia as decisões tomadas pelo Supremo, já que o citou,
diante de temas polêmicos como o aborto de anencéfalos, o uso de células
tronco e a união homoafetiva?
O Supremo está decidindo juridicamente e não de acordo com religião. Acho
isso importante. São decisões acertadas que debatem a partir de preceitos
legais, funcionais, e acho que é o caminho. Esses são os grandes temas
discutidos hoje em que os argumentos não são jurídicos, são religiosos.
Esse
desejo da Igreja Católica de continuar pautando decisões a partir de visões
religiosas e não legais, acho que não tem mais espaço. Superamos essa fase.
Muitas pessoas vão ficar incomodadas, mas acho que é um preço muito pequeno
a se pagar pela democracia.