A última encarnação do criacionismo
religioso é a teoria do design inteligente. Segundo seus propositores, as
belezas da vida e o bom funcionamento de nosso organismo são provas de que
fomos criados por uma divindade inteligente e amorosa. Contudo, desde os
tempos de Darwin, nós sabemos que um processo inconsciente – a seleção
natural – também é capaz de produzir sistemas biologicamente evoluídos e que
funcionam bem. Então, tanto a teoria da seleção natural quanto a do design
inteligente são consistentes com o aparecimento de um organismo
biologicamente perfeito. O problema começa quando surgem as imperfeições. Se
eu lhe disser que um processo evolutivo – arbitrário e inconsciente –
permite, vez ou outra, que certas falhas apareçam, provavelmente você irá
concordar, certo? Mas a coisa fica mais complicada se alguém argumentar que
esses absurdos biológicos acontecem porque Deus, o onipotente, tem falhas
como todos nós. Se isso fosse possível, teríamos de fazer uma pequena
alteração em um ditado popular: “Errar é divino, mas perdoar a Deus é
humano”.
Filósofos e teólogos já tentaram, diversas vezes, explicar como, apesar de
perfeito, Deus criou um mundo cheio de males e imperfeições. A teoria da
justiça divina é a mais antiga dessas tentativas. Ou seja, imperfeições
aparecem porque essa é a maneira que Deus encontrou para fazer justiça. Por
que, por exemplo, as pessoas devem sofrer com diabetes, ataques cardíacos,
acidentes vasculares cerebrais, articulações ruins, ataques de apendicite ou
dentes do siso? Será que esses problemas acontecem porque os humanos pecaram
no Jardim do Éden, como muitos cristãos acreditam? Ou eles (os problemas),
deram um jeito de subverter a perfeição que Deus inscreveu nos nossos genes?
Afinal, o genoma humano é ou não é a demonstração última da perfeição de
Deus?
Até recentemente, os cientistas não tinham conseguido responder a essas
questões. As ferramentas disponíveis para espiar o genoma eram simplesmente
inadequadas. Mas agora, graças às descobertas das tecnologias genéticas, nós
temos uma resposta: o genoma humano é absolutamente cheio de falhas
estruturais e impropriedades funcionais. Ele empilha legiões de mutações,
resíduos grotescos e becos sem saída; tem um design absurdo, uma construção
malfeita e inúmeras outras evidências que indicam, no mínimo, uma fabricação
incrivelmente ruim. Será que Deus (ou, talvez, o Diabo) é diretamente
responsável por esse estado bioquímico ridículo?
Não necessariamente. A inspeção detalhada do genoma humano mostra, em todo
lugar, rastros de forças evolutivas inconscientes, muito mais do que pistas
de um design inteligente feito por Deus. Nesse caso, essa deveria ser uma
nova fonte de preocupação para os filósofos, para os teólogos e o resto de
nós? Não, absolutamente o contrário: no que concerne às imperfeições
biológicas, a ciência evolutiva pode livrar a religião das amarras da teoria
da justiça divina. Não é mais necessário blasfemar contra uma divindade
onipotente, culpando-a por nossas fragilidades e falhas genéticas. Em vez
disso, nós podemos colocar toda a culpa nos ombros de processos evolutivos
inconscientes. Dessa maneira, a ciência pode ajudar a religião a retornar ao
seu reino legítimo – não como intérprete das minúcias de nossa existência
física, mas como uma conselheira respeitável em grandes questões filosóficas
que sempre tiveram importância suprema para a humanidade.
Como autor, sabe o que eu espero que os leitores absorvam do meu livro
Inside the Human Genome? Primeiro, que eles aprendam um bocado sobre a
estrutura e a operação do incrível genoma humano. Mas, em linhas mais
gerais, espero que eles vejam que as ciências genéticas e evolutivas podem e
devem ser vistas como parceiras filosóficas – mais do que inimigas inerentes
– da teologia e da religião.
JOHN C. AVISE*, Phd em genética e autor do livro inside
the human genome: a case for non-intelligent design