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DEUS E O JARDIM DAS DELÍCIAS - ALGO INCOERENTE
Hélio Schwartsman
16/07/2009
"Já que a comparação que fiz entre missas e comportamentos histéricos em minha
coluna da semana passada irritou bastante gente, proponho hoje desenvolver um
pouco mais o tema.
Convenhamos que religião e nosso conhecimento do mundo não andam exatamente de
braços dados. De um modo geral, virgens não costumam dar à luz (especialmente
não antes do desenvolvimento de técnicas como a fertilização "in vitro") e
pessoas não saem por aí ressuscitando. Em contextos normais, um homem que veste
saias e proclama transformar pão em bife sempre que dá uma espécie de passe
seria prudentemente internado numa instituição psiquiátrica. E não me venham
dizer que a transubstanciação é apenas um simbolismo. Por afirmar algo parecido
-- a "impanatio" --, o teólogo cristão Berengar de Tours (c. 999-1088) foi preso
a mando da Igreja e provavelmente torturado até abjurar sua teoria. Ele ainda
teve mais sorte que o clérigo John Frith, que foi queimado vivo em 1533 por
recusar-se a acatar a literalidade da transformação.
Quando se trata de religião, aceitamos como normais essas e muitas outras
violações à ordem natural do planeta e à lógica. A pergunta que não quer calar
é: por quê?
Ou bem Deus existe e espera de nós atitudes exóticas como comer o corpo de seu
filho unigênito ou o problema está em nós, mais especificamente em nossos
cérebros, que fazem coisas estranhas quando operam no modo religioso. Fico com a
segunda hipótese. Antes de desenvolvê-la, porém, acho oportuno lembrar que a
própria pluralidade de tabus ritualísticos depõe contra a noção de Verdade
religiosa.
Se existe mesmo um Deus monoteísta, o que ele quer de nós? Que guardemos o
sábado, como asseguram judeus e adventistas; que amemos ao próximo, como
asseveram alguns cristãos; que nos abstenhamos da carne de porco, como garantem
os muçulmanos e de novo os judeus; ou que não façamos nada de especial e apenas
aguardemos o Juízo Final para saber quem são os predestinados, como propõe outra
porção dos cristãos?
Talvez devamos eliminar os intermediários e extrair a Verdade diretamente nos
livros sagrados. Bem, o Deuteronômio 13:7-11 nos manda assassinar qualquer
parente que adore outro deus que não Iahweh; já 2 Reis 2:23-24 ensina que a
punição justa a quem zomba de carecas é a morte. Mesmo o doce Jesus, fundador de
uma religião supostamente amorosa, em João 15:6, promete o fogo para quem não
"permanecer em mim".
E tudo isso em troca do quê? A Bíblia é relativamente econômica na descrição do
Paraíso, mas o nobre Corão traz os detalhes. Lá já não precisamos perder tempo
com orações e preces, poderemos beber o vinho que era proibido na terra (Suras
83:25 e 47:15), fartar-nos com a carne de porco (52:22) e deliciar-nos com
virgens (44:54 e 55:70) e "mancebos eternamente jovens" (56:17). O Jardim das
Delícias parece oferecer distrações para todos os gostos, mas, se banquetes,
prostíbulos e saunas gays já existem na terra, por que esperar tanto... --
poderia perguntar-se um hedonista empedernido.
Volumes e mais volumes podem ser escritos para apontar as incoerências e
desatinos dos chamados textos sagrados. Se acreditamos que um Deus pessoal
chancelou ou ditou cada uma dessas obras, temos, na melhor das hipóteses, um Ser
Supremo com transtorno dissociativo de identidade, também conhecido como
personalidade múltipla. Espero que, no fim dos tempos Ele esteja judeu de novo.
Tenho um primo que faria bom uso do Paraíso...
Voltando às coisas sérias, uma possibilidade mais plausível é que o chamado
cérebro espiritual, os módulos neuronais que criam e processam ideias
religiosas, seja menos permeável aos circuitos lógicos. Quem faz uma
interessante análise do problema é o médico e geneticista americano David
Comings em seu monumental "Did man create God?", uma ampla revisão de quase 700
páginas em que o autor esmiúça o caso de Deus sob todas as vertentes da ciência,
em especial a neurologia.
Para ele, ao contrário do mais provocativo Richard Dawkins, a religião dá
prazer, foi fundamental na evolução de nossa espécie e só será extinta quando o
último homem morrer. Mais importante, Comings acredita que os cérebros racional
e espiritual, embora funcionem de modo independente um do outro, podem de algum
modo ser conciliados no que o autor chama de "espiritualidade racional". Cuidado
aqui, o espiritual é uma esfera que abarca a religião, mas é mais ampla do que
ela. Inclui outras tentativas de tocar a transcendência.
Num resumo algo grosseiro da mensagem central de Comings, só o que precisaríamos
fazer é admitir que foi o homem que criou a ideia de Deus e escreveu os livros
supostamente sagrados. Assim, nenhuma religião é verdadeiramente "a Verdadeira"
ou intrinsecamente superior às concorrentes. Já não é necessário que guerreemos
para descobrir se é o Deus cristão ou muçulmano que está certo. No limite,
entregamos Deus para conservar uma espiritualidade menos belicosa, que nos
permita a experimentar a transcendência a baixo custo.
É uma proposta engenhosa, mas, receio, muito difícil, quase impraticável. O
monoteísmo já traz em germe a ideia de que existe um único caminho para a
salvação e todo os que não o seguem estão condenados. Embora a maioria das
pessoas consiga enxergar e valorizar as semelhanças entre os Deuses das várias
religiões, sempre emergirão grupos mais intolerantes que exigirão o
exclusivismo. Por paradoxal que pareça, não se os pode acusar de irracionais.
Eles apenas levam realmente a sério o que está escrito. Numa abordagem puramente
lógica, o Deus dos católicos e o de Calvino, por exemplo, não podem estar certos
ao mesmo tempo. O conflito é uma decorrência do cérebro racional processando uma
ideia espiritual.
É claro que podemos e devemos incentivar posições pró-tolerância como a de
Comings. Os níveis de guerras religiosas variaram ao longo das épocas, num
processo que certamente tem algo a ver com o modo mais ou menos pluralista
utilizado pelos clérigos em suas prédicas. Não devemos, contudo, ser ingênuos a
ponto de imaginar que o conflito possa ser extinto. O mundo é um lugar cheio de
problemas.
De minha parte, embora ímpio contumaz, também acredito em transcendência. Para
mim, ela está em atividades biologicamente inúteis às quais nos dedicamos e
atribuímos valor, como literatura, música, pintura, filosofia e, por que não?,
teologia. Elas podem ser extremamente prazerosas e, no limite, preencher nossas
vidas com um significado que a natureza apenas não lhes dá. Mas não é porque a
literatura nos leva à transcendência que devemos achar que Aquiles ou Brás Cubas
existem.
Hélio Schwartsman, 44, é articulista da Folha.
Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma
Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
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