DEUS - UMA BIOGRAFIA
Deus – Uma biografia
Pesquisadores revelam que Javé, o grande personagem da Bíblia, não foi visto
sempre como Deus único. Antes do Livro Sagrado, ele era só mais um entre muitas
divindades. Saiba como Deus conquistou seu espaço no céu. E na Terra.
Por Reinaldo José Lopes
31 out 2016, 18h35 - Publicado em 28 nov 2010, 22h00
Deus criou o Universo.
Deus está em todos os lugares.
Deus é a força que nos une.
Cada sociedade vê a figura do Criador à sua maneira. Cada indivíduo, até. Para
Einstein, Ele era as leis que governam o tempo e o espaço – a natureza em sua
acepção mais profunda. Para os ateus, Deus é uma ilusão. Para o papa Bento 16, é
o amor, a caridade. “Quem ama habita Deus; ao mesmo tempo, Deus habita quem
ama”, escreveu em sua primeira encíclica.
Pontos de vista à parte, toda cultura humana já teve seu Deus. Seus deuses, na
maioria dos casos: seres divinos que interagiam entre si em mitologias de enredo
farto, recheadas de brigas, lágrimas, reconciliações. Os deuses eram humanos.
Mas isso mudou. A imagem divina que se consolidou é bem diferente. Deus ganhou
letra maiúscula na cultura ocidental. Os panteões divinos acabaram. Deus
tornou-se único. É o Deus da Bíblia, Javé, o criador da luz e da humanidade. O
pai de Jesus. Essa concepção, que hoje parece eterna, de tanto que a conhecemos,
não nasceu pronta. Ela é fruto de fatos históricos que aconteceram antes de a
Bíblia ter sido escrita. O próprio Javé já foi uma divindade entre muitas. Fez
parte de um panteão do qual não era nem o chefe. O fato de ele ter se tornado o
Deus supremo, então, é marcante: se fosse entre os deuses gregos, seria como se
uma divindade de baixo escalão, como o Cupido, tivesse ascendido a uma posição
maior que a de Zeus É essa história que vamos contar aqui. A história de Javé, a
figura que começou como um pequeno deus do deserto e depois moldaria a forma
como cada um de nós entende a ideia de Deus, não importando quem ou o que Deus
seja para você.
Criança
No princípio, Ele não sabia falar. Só chorava, grunhia e balbuciava. Deus era
uma criança. Uma não, muitas: um deus era a chuva, outro deus, o Sol, mais
outro, o trovão… Os deuses eram as forças por trás de uma natureza inexplicável
para os primeiros humanos da Terra. Facetas de divindades borbulhavam em
cachoeiras, galopavam com os cavalos selvagens, voavam com o vento, escondiam-se
em cada rochedo, bosque ou duna do deserto. E do deserto veio a que daria origem
ao Deus para valer.
Deuses nasceram do pôquer. A crença em divindades provavelmente vem da
capacidade humana de detectar as intenções das outras pessoas. Somos muito bons
nisso desde que surgimos, há 200 mil anos, e precisamos ser mesmo, porque o Homo
sapiens sempre levou a vida social mais complicada do reino animal, sempre em
comunidades cheias de intrigas, fingimentos, traições. Saber o que se passa na
cabeça do outro era questão de sobrevivência – e até certo ponto ainda é.
E a melhor maneira de tentar se antecipar a um adversário nos jogos mentais do
dia a dia é imaginar as intenções dele: “O que será que ele pensa que eu estou
pensando?” Nosso cérebro é uma máquina de pôquer.
Pesquisadores como o antropólogo francês Pascal Boyer defendem que esse sistema
de detecção de intenções pode acabar aplicado a coisas que não têm intenções de
nenhum tipo – como a chuva, ou o Sol. A ideia de que há espíritos de toda sorte
da natureza seria, assim, um efeito colateral do nosso sistema de detecção de
mentes, tão hiperativo.
Por esse ponto de vista, a espiritualidade faz parte dos nossos instintos. É
quase tão natural acreditar em divindades quanto comer ou dormir.
Cada fenômeno da natureza, então, representava as intenções de alguma divindade.
É como ainda acontece nas tribos de caçadores-coletores de hoje. Entre os índios
tupis, os trovões são a raiva do deus Tupã. E fim de papo.
Obras de arte de mais de 30 mil anos atrás dão outra pista sobre essa
espiri-tualidade primitiva – que podemos chamar de “infância de Deus” (no caso,
dos deuses). Elas mostram seres que misturam características humanas e animais –
sujeitos com cabeça de leão ou de rena e corpo de gente, por exemplo.
Acredita-se que essas criaturas híbridas representem um tipo de crença que ainda
é comum nas tribos indígenas: a de que não haveria separação rígida entre o
mundo dos humanos, o dos animais e o dos espíritos. Seria possível transitar
entre essas esferas se você possuísse o conhecimento correto, e, em tese,
qualquer falecido, seja pessoa, seja bicho, pode ter um papel parecido com o que
associamos normalmente a um deus.
Os deuses abandonam de vez as feições animais quando os bichos se tornam menos
importantes no nosso cotidiano. Foi precisamente o que aconteceu quando a
agricultura foi criada, há 10 mil anos, no Oriente Médio. Graças a ela, montamos
as primeiras cidades. E a nossa espiritualidade progrediria junto: acabaria bem
mais centrada nas pessoas que na natureza selvagem.
Há sinais de que ancestrais mortos eram as grandes entidades com status divino
nessas primeiras cidades. Um exemplo arqueológico vem de escavações em Jericó,
uma das mais antigas aglomerações humanas, que hoje fica no território palestino
da Cisjordânia. Os habitantes de Jericó enterravam o corpo de seus mortos, mas
guardavam o crânio, que era recoberto com camadas de gesso e tinta, simulando o
rosto humano. Assim preparada, a caveira talvez servisse de oráculo doméstico –
uma espécie de deus particular para cada família.
Os artesãos de crânios de Jericó não tinham escrita – aliás, passariam mais de 5
mil anos até que essa tecnologia fosse inventada. Quando isso finalmente
aconteceu, em torno do ano 2000 a.C., os deus ficaram bem mais sofisticados.
Entraram em cena criaturas ao estilo dos habitantes do Olimpo na mitologia
grega. Em parte, alguns deles até eram mesmo personificações das forças da
natureza, mas agora eles ganhavam personalidades e biografias complexas.
É aí que está a origem do grande personagem desta história: Javé, uma divindade
que provavelmente começou como um deus menor, cultuado por nômades. Bem antes de
a Bíblia ser escrita.
Cabeça de leão
Estátuas e pinturas de povos caçadores, que viviam nas cavernas da Europa há 30
mil anos, mostram figuras que misturam formas de homens e de animais. Tudo
indica que esses foram os primeiros deuses a habitar a mente humana.
Jovem
O rapaz era uma divindade dos desertos do sul. Junto com seus poucos súditos,
chegaria à pulsante Canãa, domínio do deus El, o altíssimo. Ao lado do soberano,
a mãe de divindades e homens, Asherah, senhora de tudo o que é fértil, e seu
sucessor, Baal, o deus que dava chuvas àquelas paisagens àridas. Tudo na santa
paz. Eles só não imaginavam que Javé tramava a destruição deles.
Ele começou de baixo. Era só mais um deus entre vários outros de sua região. Só
que na Bíblia Javé é identificado como o Deus único. Hoje, cogitar a existência
de outras divindades que teriam convivido com o Senhor da Bíblia é um absurdo do
ponto de vista religioso. Mas não do ponto de vista científico. Pesquisadores de
várias áreas – arqueólogos, linguistas, teólogos – estão encontrando pistas
sobre uma provável “vida pregressa” de Javé. Uma vida mitológica que ele teve
antes de seu nome ir parar na Bíblia como o da entidade que criou tudo.
Onde pesquisar isso? A própria Bíblia é uma fonte. O Livro Sagrado não foi feito
de uma vez. Trata-se de uma coleção de textos escritos ao longo de séculos. O
Pentateuco, os 5 primeiros livros da Bíblia, foi finalizado por volta de 550 a.C. Mas há textos ali de 1000 a.C., ou de antes. E nada disso foi editado em
ordem cronológica – em grande parte, a Bíblia é uma junção de textos
independentes, cada um escrito em tempos e realidades diferentes.
Como saber a que tempo e a que realidade cada um pertence? Pela linguagem.
Pesquisadores analisam as expressões do texto original, em hebraico, e vão
comparando com a de documentos encontrados em escavações arqueológicas, cuja
datação é fácil de determinar. Com esse método, chegaram a uma descoberta
reveladora. Alguns poemas da Bíblia dão a entender que Javé era uma divindade de
lugares chamados Teiman ou Paran – dizendo literalmente que o deus veio dessas
regiões. E esses textos estão justamente entre os mais antigos – se a língua do
livro fosse o português moderno, eles estariam mais para Camões.
Teiman e Paran eram lugares desérticos fora das fronteiras onde viviam os homens
que escreveram a Bíblia. Não se sabe exatamente que regiões eram essas, já que
os nomes dos territórios vão mudando ao longo dos séculos. “Mas arqueólogos
supõem que essa região seja no noroeste da atual Arábia Saudita”, diz Mark
Smith, professor de estudos bíblicos da Universidade de Nova York. E isso diz
muito.
Os autores dos primeiros textos da Bíblia viviam na antiga Canaã – uma região do
Oriente Médio onde hoje estão Israel, os territórios palestinos e partes da
Síria e do Líbano. Ali se formaram algumas das primeiras civilizações da
história, há 10 mil anos. E por volta de 1000 a.C. já era um território
disputado (como nunca deixou de ser, por sinal). Estava dividido numa miríade de
tribos, as dos israelitas, a dos hititas, a dos jebedeus…
Apesar das rivalidades, todas tinham culturas parecidas. Reverenciavam o mesmo
panteão de deuses, por exemplo. Mas Javé, pelo jeito, não era um deles. Teria
sido importado das áreas mais desérticas do sul.
Outra evidência disso é a associação de seu nome com os chamados shasu. Shasu é
um termo egípcio que significa “nômade” ou “beduíno”. Algumas inscrições
egípcias mencionam um “Javé dos Shasu”.
Uma possibilidade, então, é que nômades do deserto teriam se incorporado às
tribos israelitas, trazendo o novo deus com eles. Essa divindade se embrenharia
no meio da grande mitologia desse povo: o panteão de deuses cananeus. Mas quem
eram essas divindades? As melhores pistas a esse respeito vêm de Ugarit, uma
antiga cidade encontrada durante escavações arqueológicas na atual Síria. Ela
foi destruída por invasores em 1200 a.C., quando os israelitas ainda eram um
povo em formação. As inscrições encontradas ali, então, servem como uma cápsula
do tempo. Revelam o contexto cultural em que nasceu a mitologia israelita,
mostra como era a mitologia dos antepassados dos escritores da Bíblia. E os
deuses em que eles acreditavam seriam fundamentais para a biografia de Javé. O
panteão de Ugarit é bem grandinho, mas algumas figuras se destacam. Há o pai dos
deuses e dos homens, o idoso, bondoso e barbudo
EL; sua esposa, Asherah, deusa
da vegetação e da fertilidade; a filha dos dois, Anat, feroz deusa do amor; e o
filho adotivo do casal, Baal, deus da guerra e da tempestade que morre,
ressuscita e derrota as divindades malignas Yamm (o Mar) e Mot (a Morte).
Muitos estudiosos especulam que as tribos israelitas originalmente tinham El
como seu deus supremo. Afinal, o nome do povo bíblico também termina com o
elemento -el. “Esse tipo de nome próprio, conhecido como teofórico (‘portador de
um deus’, em grego), costuma dar pistas sobre o ente divino que o dono do nome
venera”, diz Airton José da Silva, professor de Antigo Testamento da
Arquidiocese de Ribeirão Preto.
Mas os indícios a respeito de El vão além da nomenclatura. O deus cananeu também
tem uma relação especial com os chefes de clãs, prometendo-lhes uma vasta
descendência – exatamente o que Deus faria depois na Bíblia ao selar uma aliança
com os ancestrais dos israelitas, Abraão, Isaac e Jacó. “El é o deus desses
patriarcas”, diz Christine Hayes, professora de estudos judaicos de Yale.
Deus do deserto
Javé pode ter sido uma divindade trazida do deserto por nômades que se
embrenharam nas tribos israelitas, quando elas ainda estavam em formação na
região de Canaã. Aí ele se junta aos deuses cananeus, como Baal e El, o
altíssimo.
Adulto
“Israel é a minha herança”, brada o impetuoso deus do deserto. Diante dele, a
assembleia dos deuses de Canaã se sente cada vez mais intimidada. E, numa
escalada de poder sem precedentes, o guerreiro chega a ser considerado idêntico
ao próprio El como criador e governador do mundo. A própria esposa do antigo
senhor dos deuses passa às mãos do novato.
Uma ameaça pairava sobre os deuses de Canaã. Era a ambição de Javé. O novo deus
começou a buscar seu lugar entre as antigas divindades cananeias. E teve
sucesso. Com sua personalidade forte, foi ganhando espaço dentro da mitologia
israelita, tomando o terreno dos deuses criados pelos povos cananeus.
A maior prova disso está em outro texto poético dos mais antigos da Bíblia, o
Salmo 82. Ele nos apresenta o chamado “conselho divino”: uma espécie de Câmara
dos Deputados dos deuses, na qual eles se reúnem para discutir assuntos
importantes – um indício de que o Salmo foi escrito antes do próprio início da
Bíblia, que já começa apresentando Javé como Deus único. A ideia, ali, é que El
preside o conselho e seus filhos ou subordinados discursam. Lá, Javé
aparentemente perde a paciência:
“Deus se levanta no conselho divino,/em meio
aos deuses ele julga:/”Até quando vocês julgarão injustamente,/sustentando a
causa dos injustos? (…) “Eu declaro: embora vocês sejam deuses,/e todos filhos
do Altíssimo,/morrerão como qualquer homem”. Trocando em miúdos menos
rebuscados: “Quem manda aqui sou eu”.
É difícil dizer a que período da história israelita corresponde esse momento em
que, na imaginação religiosa das pessoas, Javé começou a impor sua vontade
perante os deuses cananeus. Talvez o fenômeno tenha a ver com a consolidação de
Israel como povo distinto dos demais cananeus: a adoração a uma divindade
unicamente israelita pode ter emergido como um elemento-chave nessa consciência
“nacionalista” dos ancestrais dos judeus.
Para completar essa nova fase na vida do Senhor, que poderíamos chamar de começo
da vida adulta, falta ainda um elemento crucial. Lembre-se do impetuoso deus
guerreiro Baal. O que parece ocorrer, segundo Mark Smith e outros especialistas,
é que Javé se “baaliza”, virando uma mistura de El e Baal, com ligeira
predominância do segundo.
As evidências: Javé e Baal estão associados a tempestades, vulcões, fogo e
terremoto; ambos são guerreiros invencíveis que habitam o alto de montanhas (Baal
vive no lendário monte Zafon, Javé, no Sinai). E a semelhança fica ainda mais
detalhada.
Na tradição mitológica de Canaã, quem tinha triunfado contra Yamm, o deus
caótico do mar, era Baal, mas os textos da Bíblia atribuem essa vitória –
adivinhe só – a Javé. Mais sugestivo ainda: alguns Salmos parecem ter sido
originalmente hinos a Baal que acabaram adaptados para o culto ao Senhor dos
israelitas. Só que Javé vai muito além das intervenções típicas de Baal no
mundo. Na mitologia israelita, sua grande vitória não é contra o mar, mas, sim,
usando o mar como arma contra o faraó que tinha escravizado o povo hebreu no
Egito. Escolhendo o profeta Moisés como seu emissário, conforme conta o livro
bíblico do Êxodo, o novo deus guerreiro puniu os egípcios com uma sucessão de
pragas e, como grand finale, destruiu “carros de guerra e cavaleiros” do faraó
afundando-os no mar.
A diferença em relação a Baal é que o Senhor seria capaz de agir não só num
passado mítico mas na própria história dos israelitas. Ele é literalmente “o
Senhor dos Exércitos de Israel”, aquele que promete a vitória em batalha em
troca da fidelidade religiosa do povo. Daí em diante, Deus nunca deixa de ser,
em grande medida, um guerreiro.
Além de herdar o trono de El na mitologia israelita, Javé também pode ter levado
Asherah, a mulher do velho deus. Eis aí uma possibilidade para a qual a Bíblia
não prepara seus leitores. Os profetas bíblicos vivem chiando contra o fato de
que os israelitas estariam se “prostituindo” (metaforicamente, e talvez
literalmente também, via orgias rituais) nos altares de Asherah. Mas inscrições
achadas ao longo do século 20, como as de Kuntillet Ajrud, um pit stop de
caravanas no deserto do Sinai, poderiam indicar que o deus e a deusa não eram
inimigos, e sim um casal.
As inscrições, datadas em torno do ano 800 a.C., dizem coisas como “a bênção
para ti por Javé de Teiman e sua Asherah”. Seja como for, mesmo se o casamento
ainda existisse, Javé logo optaria por um divórcio – daqueles litigiosos,
barra-pesada, nos quais o pai joga os filhos contra a mãe.
Casal maior
Inscrições do do século 9 a.C. dão a entender que Javé tinha se casado com
Asherah, a maior divindade feminina de Canaã. Era uma interpretação israelita da
mitologia da região: o deus daquele povo tomava para si a esposa de El.
Homem feito
A última resistência da antiga assembleia divina parte de Baal. Sem pestanejar,
Javé o elimina. Asherah tem o mesmo destino trágico. Daqui por diante ele estará
sozinho nos céus. E alcança a serenidade. Hora de fazer as pazes com a
humanidade. E um sacrifício.
Seu grande momento estava chegando. Era a hora da virada para Javé. Ele deixaria
de ser mais um deus. E viraria o Único. No mundo real, esse momento teve data:
foi a reforma religiosa introduzida por Josias (649 – 609 a.C.), rei de Judá.
Antes, porém, um interlúdio político.
Àquela altura, a nação das tribos israelitas de Canaã tinha sido dividida em
dois reinos. Um ao norte, o de Israel, e um ao sul, o de Judá. E o de cima havia
sido derrotado e conquistado pelo Império Assírio.
Josias não queria o mesmo destino. E parte de seus esforços para fortalecer a
unidade interna de Judá e resistir aos invasores foi uma maior centralização da
vida religiosa do reino. Para isso, ele começou a transformar Javé no único deus
adorado por seus súditos. Por decreto: destruindo altares a outras divindades,
como El, Baal… E Asherah. Esse foi o divórcio.
Também é possível que date do reinado de Josias o ataque final dos fiéis de Javé
ao culto a Baal, muito criticado pelos profetas dessa época. Para a maior parte
dos israelitas, não era problema adorar a Javé e a Baal ao mesmo tempo. É que
outra especialidade do antigo deus cananeu era a agricultura – ele mandava chuva
para regar as colheitas. Até então, embora Javé tivesse tomado conta das funções
guerreiras de Baal, nada indicava que ele também pudesse bancar o regador de
plantas. Mas os profetas israelitas passam, então, a afirmar que o mandachuva
era ele.
Essa expulsão definitiva de Baal do panteão explica o episódio do bezerro de
ouro durante a passagem dos israelitas pelo deserto. Para quem não se lembra: o
povo de Deus, cansado de esperar que Moisés volte do monte Sinai, constrói uma
estátua de ouro de um bezerro (emblema de Baal). Tanto Moisés quanto Javé ficam
enfurecidos, e milhares de israelitas morrem como punição pela infidelidade do
povo.
As ideias de Josias marcariam para sempre a visão que temos de Deus. E mais
ainda depois que esse rei acabou morto. Na geração dos filhos do monarca
reformista, o reino de Judá seria riscado do mapa e Jerusalém, a capital,
acabaria conquistada pela Babilônia. Mas a adversidade do povo teve o efeito
oposto em sua fé. No mundo mitológico, Javé se fortalecia como nunca. Com a
nação agora indefesa militarmente, era a hora de reafirmar que o deus da nação,
ao menos, era todo-poderoso. Nisso os profetas israelistas diziam que só Javé
tinha existência, vida e poder; os outros deuses eram meras imagens de pedra,
metal ou madeira. Era nada menos que a inauguração do monoteísmo: um momento tão
importante na história da espiritualidade quanto a adoção do cristianismo como
religião oficial do Império Romano seria bem mais tarde. E era esse Javé único
que iria para a Bíblia. E se tornaria a imagem de Deus no mundo ocidental.
Um Deus, agora, não só dos israelitas. Mas da humanidade inteira. O Deus que
criou o mundo, que fez o homem à sua imagem e semelhança. E que, de certa forma,
era a imagem e semelhança do Javé pré-Bíblia: o Deus guerreiro, militar, que
pune com rigidez os erros de seus adoradores. O Velho Testamento está recheado
de castigos divinos: dos mais leves, como transformar o fiel Jó, um milionário,
em um mendigo, como um teste para sua fé, até o dilúvio universal – praticamente
um restart no mundo depois de ter concluído que a humanidade não tinha mais
jeito. A justificativa para tal comportamento está na própria história de
Israel. A ideia era acreditar que os maus bocados pelos quais a nação passou nas
mãos de assírios e babilônios eram provações divinas, que, se o povo mantivesse
sua fé, tudo acabaria bem.
Mas Deus surge na Bíblia como algo mais complexo que um mero feitor. Usando os
paralelos deste texto, seria como se Ele tivesse amadurecido depois que Josias e
os profetas o aclamam Deus único. Javé fica menos humano, menos falível. Passa a
ser uma entidade transcendental de fato. Começa a afirmar aos seres humanos que
“os meus caminhos não são os seus caminhos” – a ideia hoje familiar de que Deus
escreve certo por linhas tortas.
Mas o caráter divino só se completaria mesmo no século 1. O primeiro século
depois de seu filho, quando o Novo Testamento foi escrito. É a metamorfose mais
radical do guerreiro Javé. Encarnado na figura de Jesus, Deus apresenta uma nova
solução para a humanidade. Em vez de castigar ou destruir os homens mais uma
vez, decide purgar os pecados dos mortais com outro sacrifício: o Dele próprio.
Morre o corpo do Deus encarnado, não o espírito divino. Este, agora mais sereno,
continuou zelando por nós. E assim será. Até o fim dos tempos. E acaba assim a
nossa história, certo?
Claro que não. A saga de Javé é só um dos reflexos de uma epopeia maior: a da
humanidade buscando um sentido para a existência. Nesse aspecto, continuamos tão
perdidos quanto os antigos que não sabiam por que o trovão trovejava ou o que as
estrelas faziam pregadas no céu. Ainda não sabemos por que estamos aqui. E a
única certeza é que vamos continuar buscando respostas. Seja o que Deus quiser.
Único
Javé chega ao auge conhecendo cada detalhe do passado e do futuro. Sua figura
lembra El. Mas agora Ele está só.
Para saber mais
The Early History of God
Mark Smith, Wm. B. Eerdmans Publishing.
Deus, uma Biografia
Jack Miles, Companhia das Letras.
<https://super.abril.com.br/historia/deus-uma-biografia/>
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