DIA INTERNACIONAL DE LUTA CONTRA A TORTURA

26 de junho

 

Apanhado em meio à noite,
jogado ao chão da cela,
o corpo nu conhece
a primeira humilhação.
Outras virão: o soco,
o choque, a ameaça,
o urro na escuridão
[1].

Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”.

Trata-se do artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que tem uma consonância com o 26 de junho (Dia Internacional de Luta contra a Tortura) e com o Brasil. Tortura que nos acompanha desde sempre, entranhada em terras brasileiras desde os primórdios; tortura que não é apenas a da ditadura militar e dos seus aparatos de terror, mas a que vem antes e a depois dela; a tortura deste nosso cotidiano, utilizada como instrumento de punição, confissão, controle e opressão sobre, principalmente, corpos e mentes de pessoas pobres, negras e negros, indígenas, os das existências desviantes e afrontadoras do status quo, dentre outros; mas, a bem da verdade, todos podem ser suas vítimas.

Forjada desde o início como política de poder para manter o controle sobre escravos e escravas (indígenas e africanos), esse atentado à dignidade humana continua a nos envergonhar, desumanizando homens e deslegitimando instituições, sobretudo as de segurança pública e as Forças Armadas.

Até o século XVIII, a tortura constava em lei, exposta que era em praça pública, tendo o pelourinho como seu símbolo e eternizada nas pinturas de Jean-Baptiste Debret, como as aquarelas “Feitores açoitando negros na roça” (1828) e “Aplicação do castigo do açoite”. Se na Europa do século XIX essa chaga já começava a cair em desuso e legalmente proibida, na esteira da Declaração do Direitos do Homem e do Cidadão (1789) da Revolução Francesa, aqui apenas se esboça alguma vergonha. Na Constituição Brasileira de 1824 a tortura fora proibida apenas para os homens livres (e mesmo assim, na prática, aos “bem nascidos”), continuando sua aplicação aos escravos, embora, legalmente, com algumas restrições.

É mais para o século XX que a tortura, no Brasil, passa por outro nível de envergonhamento, uma vez que vai se praticando às escondidas, nos mais recônditos porões, celas e ambientes privados, embora nem sempre seja assim. Foi ela largamente utilizada como política de repressão contra os que eram tidos como ameaça política no Estado Novo (1937-1945), de Getúlio Vargas, o que rendeu livros como Subterrâneos da Liberdade, de Jorge Amado, e Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, suas vítimas dentre tantas outras.

Passado esse período e sob o espírito da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), fruto das atrocidades do fascismo, nazismo e da guerra, poderíamos imaginar que ela sumiria de nossa terra; ledo engano; continuou largamente a ser utilizada; os esquadrões da morte já a denunciavam antes da ditadura militar; esquadrões estes que vão se encontrar com ela, sobretudo na figura do delegado Sérgio Paranhos Fleury.

Como consta de muitas obras e relatórios, a ditadura militar (1964-1984) fez da tortura verdadeira política de combate aos ditos opositores. Sem entrar na tipificação da tortura, sob o plano legal ou conceitual (afinal, em geral, as pessoas sabem do que se trata…), e de forma bem sintética “O aparato da repressão criado no período em questão contou com estrutura física, pessoas, instituições e um corpo de leis, embasados ideologicamente pela Doutrina de Segurança Nacional”[2]. Alguns documentos significativos sobre a tortura nesse período: “Relatório sobre as acusações de tortura no Brasil” (Anistia Internacional)[3], “Brasil: nunca mais” (Comissão Justiça e Paz de São Paulo)[4], “Relatório da Comissão Nacional da Verdade” (em três volumes)[5], “Relatório Azul”[6], dentre outros.

Se se acreditava que depois da ditadura, com a capenga redemocratização, e a reboque da Constituição, chamada de cidadã, a tortura seria atenuada, mais uma vez: ledo engano. Como sabemos, apenas reconfigurou-se seu alvo predileto:

“No início da década de 80 ocorre uma mudança bastante significativa em relação às violações de direitos humanos; elas mudam de alvo, se antes estavam associadas principalmente aos opositores do regime militar, passam a centrar-se na população pobre e marginalizada das grandes cidades e no preso comum. Na verdade, essa parcela da população sempre foi alvo das forças de segurança, inclusive na época da ditadura (como é o caso do Esquadrão da Morte), porém agora todo o artefato repressivo volta-se para ela”. [7]

Se há uma área em que esse processo de redemocratização e arejamentos passa longe é a da segurança pública, que manteve a mentalidade, parte da estrutura e modus operandi da ditadura, abarcando as polícias civil e militar, as Forças Armadas, o sistema carcerário, dentre outros; e continuando a grassar a tortura como política de investigação.

O Incisos III (“ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”), XLIII (“a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”), XLVII (“não haverá penas cruéis”) e XLIX (“é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”) do artigo 5º da Constituição Brasileira (1988) punem a tortura, coerentemente com os documentos internacionais (pactos, convenções etc.) que o Brasil foi se tornando signatário relativos aos chamados direitos civis e os específicos à tortura, no âmbito do sistema ONU (Organização das Nações Unidas) e OEA (Organização dos Estados Americanos).

O Brasil é signatário ao menos dos seguintes documentos: Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes e seu protocolo facultativo.

No plano interno, duas leis deram o substrato jurídico-penal necessário. A 8.072, de 1990, que tornou a tortura crime inafiançável e insuscetível de anistia, graça e indulto e a 9.455, de 1997 (chamada de lei da tortura). As duas leis adequam o crime de tortura conforme as exigências do artigo 5º da Constituição, a segunda, inclusive, criando a figura penal adequada, além de defini-la, uma vez que antes esse crime era punido apenas associado a lesões corporais, constrangimento ilegal, abuso de autoridade, maus tratos etc.

Temos também a lei 9.140, de 1995, que, ao reconhecer as pessoas desaparecidas no regime militar, indenizar os familiares e instituir a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, também se vincula à questão da tortura. A partir daí muitas iniciativas na forma de comitês e comissões, planos de ações, relatórios e outros documentos se sucederam, sendo que, talvez, a mais emblemática tenha sido a criação da Comissão Nacional da Verdade e as Comissões Estaduais da Verdade, com os elucidativos relatórios que, ao puxar os fios da memória, nos levaram a novas descobertas, aprofundaram e esmiuçaram questões relacionadas também à tortura, na luta pelas reparações[8].

Esse rol de ações e iniciativas nos daria a impressão que a árdua luta contra essa praga rapidamente seria vencida. Mais uma vez, ledo engano. Essa fratura só fez expor a contradição do sistema legal com a realidade cotidiana, neste país de belas leis e documentos. O que se apresenta é a acumulação de denúncias e mais denúncias (que, como sabemos, estão bem aquém do real, pois apenas parcela das vítimas denunciam). A gravidade da situação desperta acompanhamento e monitoramento por parte da ONU, inclusive com a constituição de missões especiais de observação e relatoria, como em 2000, 2005 e 2015. Em todas elas a tortura é fartamente demonstrada nas instituições de segurança pública do país; nesse fatídico roteiro repetitivo, em 2017 se afirmou o seguinte, a respeito de relatório entregue às autoridades brasileiras em 24 de novembro de 2016, em função da visita em 22 prisões no país:

“Em entrevista ao site da revista Exame, o representante regional para América do Sul do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH), Amerigo Incalcaterra, afirmou que a impunidade em casos de tortura praticados por agentes públicos contra presos se tornou regra — e não exceção — no sistema penitenciário brasileiro.

Em nota publicada no início deste mês, o representante do ACNUDH já havia se manifestado sobre os massacres que têm ocorrido nos presídios brasileiros. Na ocasião, ele pediu imediata investigação dos fatos, visando à atribuição de responsabilidades pela ação e omissão do Estado, principal responsável pelos presos sob sua custódia”[9].

Também, organizações como a Anistia Internacional, Human Rights Watch, Justiça Global, dentre outras, vêm, ao longo do tempo, publicando relatórios específicos sobre a questão, sendo que nos anuais desta última organização, na parte referente ao Brasil, todo ano se repetem as fartas menções à tortura.

Neste momento, corre perigo uma das mais importantes iniciativas em curso para o combate à tortura no país, que é o chamado Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, fruto da lei 12.847, de 2013, com regimento aprovado em 2016 e que tem como objetivo realizar uma série de ações, tais como: realizar visitas regulares e periódicas em instalação de privações de liberdade de todas as unidades da federação, por parte de seus peritos, atuar conjuntamente com a ONU, requerer a instauração de procedimentos administrativos e criminais, elaborar relatórios de cada visita e gerais, realizar recomendações e propostas[10]. Além das denúncias de tortura, o Mecanismo em geral aponta para a não abertura de inquéritos e investigações e a já historicamente conhecida impunidade.

Além dessa iniciativa no âmbito federal, temos os Mecanismos Estaduais, o que se revela verdadeira batalha em função da resistência à aprovação nas assembleias legislativas estaduais e de governadores. Atualmente, temos Mecanismos Estaduais[11] funcionando em apenas cinco Estados (RJ, PE, PB, RO, MA), o que denota grave sintoma, sobretudo diante das dificuldades impostas ao Mecanismo Nacional para uma visita a unidades prisionais do Estado do Ceará, em fevereiro deste ano, por parte do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, ao qual o órgão está vinculado; a missão ocorreu em abril.

A situação chegou ao seu ápice no dia 11 de junho último, quando o Presidente da República, este que recentemente estimulou a comemoração a regime que teve a tortura como Política de Estado, exonerou os 11 integrantes do Mecanismo e impôs mudanças que, na prática, o inviabiliza perante seus propósitos. Embora ainda caiba recurso e possa levar a uma batalha jurídica, isso revela a conivência governamental com a tortura:

“Para o agora ex-coordenador do mecanismo, a exoneração do grupo é uma retaliação à atuação da instituição. ‘Essa é uma retaliação clara à forma como nós vínhamos atuando. O mecanismo vem, há anos, revelando a prática sistemática da tortura no Brasil’, afirmou”.

A não atuação do Mecanismo imprime um déficit em termos de fiscalização, denúncia e recomendações, crucial em termos de políticas públicas que possam nos dar uma esperança da erradicação de algo tão grave. O mais preocupante é que com essa medida o Governo rompe com o sistema internacional dos direitos humanos no âmbito da ONU, ao qual o país está inextricavelmente preso, a partir de sua própria Constituição. O Artigo 3 do Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Decreto 6085, de 19 de abril de 2007), exigido pela Convenção com o mesmo nome (acima mencionada), do qual o Brasil é signatário, determina a criação do Mecanismo Nacional.

Por que o silêncio da sociedade brasileira (excetuando-se, claro, os atores que teimam na denúncia e na brava luta) para algo tão aviltante à dignidade humana? Por que a ausência de ações governamentais concretas, de peso (e não apenas legais e documentais), para eliminá-la? E a tentativa de silenciamento do que já se construiu e em vez de fazer prosperar, se obstrui? Será que boa parte da população, pela conivência, aceita esse suprassumo da covardia (e neste caso não nos fiemos nas pesquisas de opinião; obviamente as pessoas dirão que são contra a tortura)?

Cassiano Ricardo Martines Bovo é doutor em Ciências Sociais e mestre em Economia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e já lecionou, de 1986 aos dias de hoje, em 17 Instituições de Ensino Superior e em vários cursos (presenciais e EAD), disciplinas na área de Economia e Sociologia, com produção nessas áreas. Atua voluntariamente como Organizador Nacional Estratégico da Anistia Internacional Brasil e no Grupo de Ativismo São Paulo da Anistia Internacional. É autor dos livros Anistia Internacional: roteiros da cidadania-em-construção e Os Correios no Brasil e a Organização Racional do Trabalho.
<https://www.justificando.com/2019/06/25/26-de-junho-dia-internacional-de-luta-contra-a-tortura/>

 

Ver mais COMEMORAÇÕES, FATOS E MITOS

 

..

.