EVANGÉLICOS E FAKE NEWS
Evangélicos entram na onda dos
bolsonaros, criando fake news contra Lula, dizendo que ele persegue
igrejas.
Eleições 2022: fake news sobre
perseguição a evangélicos chegam a milhões via filhos e aliados de Bolsonaro
Julia Braun
Da BBC News Brasil em São Paulo
27 setembro 2022
'Percebemos oportunismo de muitos políticos ligados ao bolsonarismo para usar os
ambientes de troca de informação dos evangélicos para ganhar confiança,
disseminar desinformação e angariar votos', diz pesquisadora.
Filhos e aliados próximos do presidente Jair Bolsonaro foram peça-chave no
compartilhamento a milhões de brasileiros de desinformação sobre perseguição a
cristãos durante a campanha eleitoral.
As mensagens — compartilhadas não apenas por políticos influentes como também
por usuários comuns — associam candidatos de esquerda, principalmente o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a falsos projetos para proibir pregação
de pastores, criminalizar a fé evangélica e até retirar o nome de Jesus da
Bíblia.
Outras fazem referência a casos reais de violência contra comunidades religiosas
em países da América Latina, Ásia e África e alardeiam que isso pode ocorrer no
Brasil.
Como pensam evangélicas, que podem definir eleição para presidente
"No cenário eleitoral e político brasileiro atual, isso se traduz em uma
representação de Lula como um anticristão, enquanto que o Jair Bolsonaro é
representado como um grande Messias", afirma Débora Salles, professora da Escola
de Comunicação da UFRJ e uma das pesquisadoras do NetLab responsável pelo
relatório 'Evangélicos nas redes'.
O relatório monitorou perfis de influenciadores com grande alcance no segmento
evangélico entre janeiro e agosto de 2022 e identificou os macro-influenciadores
e perfis mais relevantes no terreno da desinformação de fundo religioso.
Entre eles, personalidades com ampla base de seguidores nas redes como o senador
Flávio Bolsonaro (PL), o deputado
Eduardo Bolsonaro (PL) e o vereador
Carlos Bolsonaro (PL); os deputados
Marco Feliciano (PL) e
Carla Zambelli (PL); e o
pastor Silas Malafaia, líder da
Assembleia de Deus Vitória em Cristo.
A BBC News Brasil analisou as redes sociais dessas seis figuras expoentes entre
6 de agosto e 6 de setembro e encontrou pelo menos 85 mensagens que usavam o
temor de perseguição para "demonizar" adversários como Lula e Ciro Gomes.
Foram identificadas 14 postagens nas páginas do senador Flávio Bolsonaro, 11 nas
do deputado Eduardo Bolsonaro, 2 na do vereador Carlos Bolsonaro, 8 nas de Carla
Zambelli e 3 na do pastor Silas Malafaia no período. O campeão de postagens,
porém, foi Marco Feliciano, com um total de 47 em apenas um mês.
Desse total, três mensagens chegaram a ser proibidas pelo TSE por "deturpar e
descontextualizar" notícias a fim de gerar a "falsa conclusão no eleitor".
"Percebemos oportunismo de muitos políticos ligados ao bolsonarismo para usar os
ambientes de troca de informação dos evangélicos para ganhar confiança,
disseminar desinformação e angariar votos", diz a professora Rose Marie Santini,
fundadora do NetLab, laboratório vinculado à Escola de Comunicação da UFRJ
dedicado a estudos de internet e redes sociais.
"As pessoas estão mais informadas em relação ao perigo das fake news do que
estavam em 2018, quando muitos foram pegos de surpresa. Mas certamente esse tipo
de desinformação com fundo religioso terá grande impacto no resultado", diz
Magali Cunha, doutora em Ciências da Comunicação, pesquisadora do Instituto de
Estudos da Religião (Iser) e editora-geral do Coletivo Bereia, especializado em
checagem de notícias falsas com teor religioso.
Segundo pesquisadora, responsáveis pela produção e disseminação de desinformação
com fundo religioso se aproveitam do crescimento da população evangélica para
angariar votos
'Banir a religião cristã'
Uma das fake news compartilhadas nos perfis monitorados pela BBC News Brasil
afirma que Lula editou um decreto para "banir a religião cristã" em 2010.
Trata-se de um vídeo que combina reportagens da Band e da TV Globo sobre o
decreto conhecido pela sigla PNDH-3 (Programa Nacional de Direitos Humanos), de
2009.
Vídeo afirma falsamente que decreto assinado por ex-presidente Lula visava a
"banir a religião cristã"
Antes do vídeo, uma narração faz a seguinte pergunta: "Você sabia que em 2010 o
presidente Lula assinou o decreto PNDH-3 para censurar a imprensa e banir a
religião cristã e dar direito de posse da terra a invasores? Mas o projeto foi
barrado pelo Congresso. Acha que se ganhar a eleição, ele não vai tentar
novamente?".
A alegação é falsa. O documento assinado por Lula não cita qualquer tipo de
banimento da religião cristã. O decreto, que ainda está em vigor, propõe
justamente o inverso: incentivar a liberdade religiosa e combater a
discriminação.
O documento também não prevê censura à imprensa ou dar o direito de posse de
terra a invasores. O vídeo foi compartilhado em diversas redes sociais. No
TikTok, uma das postagens tem quase 100 mil visualizações.
Ele também foi compartilhado pelo senador Flávio Bolsonaro em suas páginas no
Facebook e Instagram no dia 19 de agosto e retuitado pelo deputado Eduardo
Bolsonaro a partir de outro perfil no Twitter em 25 de agosto.
A BBC News Brasil entrou em contato com os dois filhos do presidente, mas eles
não responderam aos pedidos de comentário até a publicação desta reportagem.
Nas postagens do senador Flavio Bolsonaro, entre comentários de 'Lula nunca
mais' e '#bolsonaro2022', uma usuária escreveu: "Isso precisa ser divulgado em
todas redes sociais". Uma outra versão da mesma notícia falsa foi postada pelo
deputado Marco Feliciano no Facebook e Instagram em 20 de agosto.
Em 19 de agosto, Eduardo publicou no Twitter, Facebook e Instagram uma montagem
afirmando que "Lula e PT apoiam invasões de igrejas e perseguição de cristãos".
Na mesma imagem, há recortes de notícias sobre a perseguição de religiosos na
Nicarágua e de declarações do PT e de Lula sobre o presidente Daniel Ortega.
Após um pedido da campanha do petista, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral)
determinou no início de setembro a remoção das publicações, que não estão mais
no ar, por "deturpar e descontextualizar quatro notícias
a fim de gerar a falsa
conclusão, no eleitor, de que o ex-presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores apoiam invasão de igrejas e a perseguição de cristãos".
A reportagem entrou em contato com a campanha de Lula, mas não obteve resposta.
Postagens de Eduardo e Flávio Bolsonaro no Twitter trazem discurso falso de que
há ameaça aos cristãos no Brasil
Eduardo Bolsonaro já tinha recebido ordens do TSE para tirar do ar um vídeo que,
segundo o tribunal, apresentava de forma descontextualizada e editada um
material cujo objetivo era dizer que Ciro Gomes, candidato à presidência do PDT,
prega a desarmonia entre as religiões.
A postagem afirma, entre outras coisas, que Ciro "comparou igrejas com o
narcotráfico em 2018". "Os recortes são manipulados com o objetivo de prejudicar
a imagem do candidato, emprestando o sentido de que ele seria contrário à fé
católica e odioso aos cristãos", escreveu o ministro Raul Araújo, do TSE, na
decisão.
O apelo a moral e bons costumes que torna notícias enganosas mais
'compartilháveis' na eleição
Eleições 2022: quem são os candidatos a presidente e os obstáculos que devem
enfrentar
'Discurso de ódio para destruir as igrejas evangélicas'
As mensagens que fazem referência a uma ameaça de perseguição aos cristãos não
estão apenas no Facebook, Instagram e Twitter. São compartilhadas também por
usuários desconhecidos em aplicativos de mensagem como WhatsApp e Telegram, com
muito menos controle das autoridades.
Segundo levantamento feito pelo Monitor de WhatsApp da UFMG a pedido da BBC News
Brasil, a mensagem mais compartilhada nos mais de mil grupos públicos
acompanhados na rede social desde o começo do ano e que contém expressões como
'cristofobia', 'destruir as igrejas' e 'intolerância religiosa' é também de
ataque ao ex-presidente Lula.
A postagem diz, entre outras coisas, que o candidato "não tem apreço por
pastores e militares, faz um verdadeiro discurso de ódio para destruir as
igrejas evangélicas" e foi enviada um total de 19 vezes por 6 usuários distintos
em 15 dos grupos monitorados pelos pesquisadores.
A segunda mais repostada, porém, também contém distorções, mas contra o
presidente Jair Bolsonaro.
"O povo de Deus abandonou Bolsonaro e suas mentiras, ele é o enviado da morte,
fome, desgraça e desemprego, que veio para destruir as igrejas evangélicas com
política, e jogar irmão contra irmão", diz o texto, enviado 18 vezes por 3
usuários distintos em 10 grupos.
Fake news difundida no WhatsApp se refere a lei que proibiria a pregação
religiosa
Crédito, Coletivo Bereia
Legenda da foto,
Fake news difundida no WhatsApp se refere a lei que proibiria a pregação
religiosa
Entre as mensagens detectadas pela UFMG há ainda uma que se refere a uma suposta
"lei de proteção doméstica" em debate no Senado Federal que proibiria a pregação
religiosa. Ela foi enviada um total de 68 vezes por 49 usuários distintos e
apareceu em 63 grupos.
A mensagem cita uma iniciativa debatida no Senado que teria como objetivo, entre
outras coisas, determinar a prisão religiosa por pregações em horários
impróprios e a sanção de congregações e fiéis. Segundo o coletivo Bereia,
trata-se de uma notícia falsa, e não existe Projeto de Lei em discussão
denominado "Proteção Doméstica".
O texto em tramitação mais próximo ao citado é o PL 524/2015, que está parado no
Senado Federal e prevê estabelecer limites para emissão sonora nas atividades em
templos religiosos, sem menção à prisão religiosa, proibição de pregações ou
limitação da liberdade religiosa.
'Um alerta à igreja'
Mas nem todos os posts identificados pela reportagem são imediatamente
reconhecidos como fake news. Enquanto alguns usam notícias ou declarações
tirados do contexto com o objetivo de desinformar, outros simplesmente
reproduzem o discurso que explora o temor de restrição à liberdade religiosa.
Um vídeo em que o ex-presidente Lula aparece falando justamente do crescimento
das fake news religiosas e acusa algumas pessoas de "fazer da Igreja um palanque
político" foi compartilhado com frequência no final de semana de 20 e 21 de
agosto e associado a um ataque a pastores e igrejas.
"Tem muita fake news religiosa correndo por esse mundo. Tem demônio sendo
chamado de Deus e gente honesta sendo chamada de demônio", diz o petista na
gravação feita durante um comício. Em seguida, ele afirma que, em um eventual
novo governo seu, o Estado será laico. "Eu, Luiz Inácio Lula da Silva, defendo
Estado laico, o Estado não tem que ter religião, todas as religiões têm que ser
defendidas pelo Estado", diz
"Igreja não deve ter partido político, tem que cuidar da fé, não de fariseus e
falsos profetas que estão enganando o povo de Deus. Falo isso com a
tranquilidade de um homem que crê em Deus."
"Mais uma vez Lula zomba da fé cristã", escreveu a deputada Carla Zambelli em
post compartilhado no Twitter
Crédito, Reprodução
Legenda da foto,
"Mais uma vez Lula zomba da fé cristã", escreveu a deputada Carla Zambelli em
post compartilhado no Twitter
Ao ser compartilhado nas redes sociais, porém, o vídeo foi descrito como uma
demonstração de ódio ou zombaria. "Mais uma vez Lula zomba da fé cristã. Desta
vez, atacando o sacerdócio e a honra de padres e pastores. INACEITÁVEL!",
escreveu a deputada Carla Zambelli.
A BBC News Brasil procurou Zambelli, que afirmou em nota que "existe, sim, uma
ameaça à liberdade do Cristianismo no Brasil, e não podemos ignorar isso tão
somente argumentando que vivemos em um país majoritariamente cristão".
"Os ataques ocorrem não apenas a templos e igrejas, mas a valores cristãos. A
censura à manifestação religiosa é uma tática antiga de ideologias de esquerda,
como no regime soviético, que taxou igrejas, proibiu a venda e circulação da
Bíblia Sagrada e praticou diversas campanhas antirreligiosas", disse ainda a
deputada, que é autora de um projeto de lei para ampliar a legislação sobre
crimes contra a liberdade religiosa.
O vídeo também foi repostado por Flávio, Eduardo e Carlos Bolsonaro e pelo
deputado Marco Feliciano.
Carlos Bolsonaro não respondeu ao pedido de comentário feito pela reportagem. Em
nota, Feliciano afirmou que suas postagens não se tratam de fake news e que
parte de "premissas incontestes" quando faz alertas sobre a ameaça à liberdade
religiosa dos cristãos.
"Desavisados, manipuladores e as esquerdas atribuem às ideias conservadoras como
fake news. Numa narrativa rasa dos assuntos que não lhes convém! Quando eu
publico um alerta ao povo que me elegeu, cristãos evangélicos e conservadores,
eu parto de premissas incontestes!", disse Marco Feliciano em nota enviada à BBC
News Brasil.
"Em todos os países em que a esquerda socialista-comunista tomou o poder à força
ou pela urnas, quando não conseguiu uma Igreja subserviente, partiu para a mais
atroz perseguição, como estamos assistindo na Nicarágua, que persegue a Igreja
Católica expulsando freiras e fechando as emissoras de rádio cristãs, regime que
tem muitos amigos por aqui (Brasil). Completo: não se trata de falso temor, mas
da sabedoria popular: 'o seguro morreu de velho'".
Postagem na página no Instagram do deputado e pastor Marco Feliciano
Crédito, Reprodução / Instagram
Legenda da foto,
Postagem na página no Instagram do deputado e pastor Marco Feliciano
Mas a professora Marie Santini, da UFRJ, afirma que mensagens como as postadas
pelos filhos e aliados de Bolsonaro geram desinformação e alardeiam pânico sem
apresentar evidências que justifiquem esse temor.
"Entendemos fake news como algo que parece jornalismo, mas na verdade é só
propaganda. A desinformação é algo mais amplo, inclui teorias da conspiração,
distorção de fatos, discursos de ódio e que citam a intolerância e o ódio, por
exemplo", diz Santini.
Em alguns dos vídeos compartilhados pelo pastor Silas Malafaia, a reportagem
também identificou o discurso classificado como desinformativo pelos
especialistas e que trata, por vezes de forma implícita, da ameaça de
perseguição aos cristãos.
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Postagem do pastor Silas Malafaia no Instagram
Crédito, Reprodução / Instagram
Legenda da foto,
"Ficamos chocados, estão queimando Bíblia, estão fechando igreja. Mas estamos
votando em gente que apoia governos que fecham igrejas e que queimam Bíblias",
diz Malafaia em vídeo.
Em um vídeo postado em seu canal no YouTube em 4 de setembro e compartilhado
também em suas páginas no Facebook, Instagram e Twitter, o pastor faz um
"alerta" à sua igreja e fala sobre um avanço "com toda força" contra os
evangélicos.
"Ficamos chocados quando comunistas e ímpios rasgam a Bíblia e tacam fogo nela.
E quando os crentes rasgam a Bíblia do seu coração apoiando gente que nos odeia
e odeia nossos fundamentos e princípios?", diz Malafaia, no vídeo de cerca de 11
minutos.
"Eu estou dando um alerta, depois não chora. Porque meu irmão, vão vir em cima
da igreja com toda força (...), porque nós somos o último guardião contra aquilo
que eles creem e acreditam."
O vídeo tem mais de 150 mil visualizações no YouTube. Um trecho compartilhado no
perfil de Malafaia no Instagram tem 84 mil curtidas.
A reportagem procurou o pastor Silas Malafaia, que afirmou que suas postagens
não são fake news e que suas manifestações fazem parte de seu direito de
expressão. "A minha fala não tem relação com perseguição. O que estou dizendo é
que não podemos apoiar um candidato que é contra nossas crenças, valores e
fundamentos", disse.
Como exemplos de medidas que corroboram sua visão, Malafaia citou a PLC
122/2006, que criminaliza a homofobia, como um projeto cujo objetivo era "botar
padre e pastor na cadeia que impedisse que gays dessem beijo no pátio da igreja"
e que foi apoiado pelo PT.
Em sua redação final aprovada na Câmara dos Deputados, antes de ser enviado ao
Senado, a proposta citada pelo pastor não mencionava padres ou pastores. Um dos
artigos previa pena de reclusão de dois a cinco anos para quem impedisse ou
restringisse a expressão e a manifestação de afetividade em locais públicos ou
privados abertos ao público por discriminação ou preconceito de gênero, sexo,
orientação sexual e identidade de gênero. O projeto, porém, foi arquivado.
Malafaia disse ainda que, durante seu governo, a ex-presidente Dilma Rousseff
"promoveu através do secretário Rachid da Receita Federal perseguição às
igrejas". "Eu sou um que sofreu perseguição e multas violentas, de pura
maldade", disse à BBC News Brasil.
'Cristofobia'
O uso do tema da perseguição a cristãos pela esquerda, porém, não é novo. O
discurso remonta às eleições de 1989, quando o PT lançou Lula candidato pela
primeira vez e apoiadores de Fernando Collor de Mello usaram o imaginário da
ameaça comunista relacionada ao PT e o discurso de que ele fecharia as igrejas
para apoiar sua campanha.
A narrativa foi retomada com mais força mais recentemente, nas eleições
municipais de 2020, sob o rótulo do termo "cristofobia". Dentro das esferas
evangélicas, o termo tem sido usado para se referir a perseguições sofridas por
adeptos do cristianismo em diversos países, principalmente em locais onde eles
são minoria. Bolsonaro usou a expressão em discurso na ONU naquele ano.
"Há alguns anos, eram mais comuns as postagens que identificavam casos de
perseguição a cristãos no Oriente Médio, na China e em países ligados ao
comunismo. As mensagens criavam um certo pânico em torno disso e chamavam os
cristãos brasileiros para que tivessem solidariedade", afirma Magali Cunha.
"Mas de 2020 para cá, temos observado que se está trazendo para a realidade do
Brasil esse tipo de abordagem."
Postagem do vereador Carlos Bolsonaro em seu canal no Telegram
Crédito, Reprodução / Telegram
Legenda da foto,
Postagem do vereador Carlos Bolsonaro em seu canal no Telegram
O antropólogo Flávio Conrado é assessor de campanhas do grupo de pesquisa Casa
Galileia e coordena um projeto de monitoramento de perfis cristãos nas redes
sociais.
Segundo ele, a narrativa de perseguição religiosa tem objetivo de atingir
especialmente os grupos evangélicos, mas em muitos momentos também acaba por
chamar a atenção de católicos mais conservadores.
"Algumas das vozes por trás das postagens usam uma estratégia de se associar aos
católicos e passam a falar em nome dos cristãos como um todo", diz. Para
Conrado, o objetivo por trás da campanha de desinformação é usar o temor de um
ambiente de perseguição para atrair votos.
De acordo com Débora Salles, o discurso de ameaça à liberdade religiosa dos
cristãos também se mistura de forma intensa com uma outra narrativa que vem
sendo difundida com frequência nas redes sociais — a de que existe uma "guerra"
de valores morais entre evangélicos e a esquerda.
"Essas narrativas se baseiam em uma lógica populista em que tenta se criar a
ideia de que há uma guerra político cultural em que os evangélicos deveriam se
juntar pela defesa dos seus valores, que estão ameaçados por uma esquerda
associada a instituições democráticas, à mídia tradicional e a figuras
importantes do cenário cultural", explica a pesquisadora
Em alguns de seus vídeos para as redes sociais, o vereador mineiro Nikolas
Ferreira (PL-BH) dá voz a esse discurso.
"Esse vídeo é um alerta para abrir os nossos olhos para a guerra silenciosa que
estamos vivendo", diz ele em um vídeo de março, em que fala sobre uma
"doutrinação" nas escolas e universidades e cita a criação de um exército pelo
que define como "o inimigo" dos cristãos.
Em outra postagem, associa a campanha do ex-presidente Lula à ditadura da
Nicarágua e à invasão de igrejas. "Essa galerinha de esquerda gosta de invadir
uma igreja né? Imagina quantas igrejas não serão invadidas se o Lula estiver no
poder?", diz no vídeo, que tem mais de 500 mil curtidas.
O vereador de 26 anos tem uma grande comunidade de fãs nas redes, com 3,1
milhões de seguidores no Instagram e 1,4 milhão no TikTok.
Nikolas Ferreira, enviou a seguinte nota à reportagem: "Eu não me baseei em
achismo ou levantei meras suposições, mas expus fatos que evidenciam igrejas
sendo invadidas, imagens sendo quebradas e profanadas nos países da América
Latina. A perseguição já existe. Inclusive, o amigo do Lula, Daniel Ortega, está
fechando rádios católicas e perseguindo fiéis na Nicarágua. Desinformar é dizer
o contrário."
Segundo o antropólogo Flávio Conrado, também são comuns os conteúdos
desinformativos que, por exemplo, associam o PLC 122/2006, projeto de lei
chamado informalmente de "projeto anti-homofobia", apresentado em 2001 para
punir criminalmente discriminação de gênero e de orientação sexual, com a
perseguição a pastores e o fechamento de igrejas.
A proposta foi arquivada no final de 2014, mas em junho de 2019 o STF decidiu
pela criminalização da homofobia e da transfobia, com a aplicação da Lei do
Racismo (7.716/1989).
Em um vídeo compartilhado no início de agosto, o deputado Marco Feliciano afirma
que pastores de todo o Brasil estão sendo perseguidos e processados por se
recusarem a celebrar casamentos entre pessoas do mesmo. "A liberdade de
consciência e crença está em jogo. A Igreja precisa resistir!!!", escreveu na
legenda.
Mas há ou não perseguição a cristãos no Brasil?
Todos os anos, a ONG internacional Portas Abertas, que auxilia cristãos que
sofrem opressão por conta de sua religião, produz um ranking dos 50 países onde
seguidores do cristianismo são mais perseguidos por causa de sua fé.
O estudo é feito a partir de relatos de incidentes de violência. Na edição de
2022 do ranking, os únicos países da América Latina citados como localidades
onde há perseguição severa são Colômbia (30ª posição), Cuba (37ª) e México
(43ª).
Há ainda uma lista de países em observação, que engloba outras 26 nações — entre
elas estão Nicarágua (61°), Venezuela (65°), Honduras (68°) e El Salvador (70°).
O ranking é elaborado anualmente e a edição atual foi feita entre setembro de
2020 e outubro de 2021, o que significa que a classificação de alguns países
pode mudar na próxima publicação.
O governo da Nicarágua, citado em muitos dos conteúdos desinformativos
identificados pela reportagem, tem sido, de fato, denunciado por repressão à
Igreja Católica no país. A tensão entre o Executivo do presidente Daniel Ortega
e a instituição cresceu desde que o clero forneceu abrigo a estudantes
envolvidos nos protestos de 2018.
Mas desde que a lista do Portas Abertas começou a ser feita, há quase 30 anos, o
Brasil não aparece no ranking e é classificado como livre de perseguição.
Segundo o sociólogo Clemir Fernandes, pesquisador do Instituto de Estudos da
Religião (Iser) e pastor da Igreja Batista, o discurso em torno da cristofobia
sequer faz sentido em um país como o Brasil, onde 86,8% da população se
identifica como cristã, entre católicos e evangélicos, segundo dados do censo de
2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
"Não é possível falar de perseguição a um grupo que não só é majoritário
numericamente, como também tem grande representação nos poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário e na cultura brasileira", diz.
Ainda de acordo com o pesquisador, o ambiente de confiança criado em torno das
igrejas evangélicas e os laços formados entre os fiéis facilita a difusão dos
conteúdos falsos nesse ambiente.
"Muitas pessoas podem julgar as informações passadas nos grupos evangélicos como
verdadeiras porque não verificam a sua veracidade, mas também porque elas foram
repassadas por irmãos de fé", diz Clemir Fernandes.
Pastor Silas Malafaia e outras lideranças evangélicas rezam ao redor do
presidente Jair Bolsonaro e da primeira-dama Michelle Bolsonaro na Marcha para
Jesus no Rio de Janeiro
Crédito, Getty Images
Legenda da foto,
Pastor Silas Malafaia e outras lideranças evangélicas rezam ao redor do
presidente Jair Bolsonaro e da primeira-dama Michelle Bolsonaro na Marcha para
Jesus no Rio de Janeiro
Mas há preconceito?
Embora não haja evidências de perseguição concreta a cristãos no Brasil,
pesquisadores afirmam que há "arrogância" e "preconceito", especialmente por
parte da elite de esquerda, ao falar sobre evangélicos.
No segundo turno da eleição de 2018, o então candidato do PT à Presidência,
Fernando Haddad, chamou o pastor Edir Macedo, fundador da Igreja Universal, de
"representante do fundamentalismo charlatão".
Para o historiador e antropólogo Juliano Spyer, isso custou votos a Haddad e deu
munição a segmentos evangélicos que defendiam um apoio formal de suas igrejas a
Bolsonaro.
"As camadas médias e altas do Brasil têm uma visão fora de foco do Brasil
popular e ignoram esse fenômeno [evangélico]. Isso é problemático, porque
generaliza a imagem de um grupo de brasileiros com imensa importância cultural,
econômica e política", diz Spyer, que é autor do livro O Povo de Deus: Quem são
os evangélicos e por que eles importam.
"Ao tratar os evangélicos de forma desrespeitosa, arrogante, desinformada e com
uma série de críticas por serem religiosos, estamos abrindo mão do diálogo com
as pessoas que têm valores conservadores".
'Realmente acho que pode acontecer aqui no Brasil'
Luciana Casa Grande, de 40 anos, frequenta uma Igreja Batista em São José dos
Campos, São Paulo. Assim como muitos outros evangélicos no país, ela vem sendo
exposta nas redes sociais a conteúdos que alardeiam uma ameaça à liberdade
religiosa dos cristãos.
"Leio com frequência postagens e notícias nas redes sociais que falam sobre
invasões, incêndios e atentados em igrejas ou assassinatos de cristãos na África
e em outros lugares", afirmou a arquiteta à BBC News Brasil. "Pela intolerância
que vejo, principalmente dos partidos de esquerda ou daqueles que se
autodenominam socialistas ou comunistas, realmente acho que pode acontecer aqui
no Brasil."
Luciana afirma acompanhar com frequência o perfil de alguns dos aliados de Jair
Bolsonaro citados pela reportagem, como Nikolas Ferreira e a vereadora Sonaira
Fernandes (PL-SP), outra aliada de Jair Bolsonaro que dá voz ao discurso
desinformativo de perseguição religiosa.
Em um post na página do Instagram de Fernandes, em que a vereadora que se
autodenomina cristã fala sobre a possibilidade de ataques ao cristianismo no
Brasil a partir de um vídeo de uma homilia de um bispo católico, Luciana
expressou sua apreensão: "Deus é maior! É hora dos cristãos se posicionarem e se
colocarem à disposição de Nosso Senhor Jesus Cristo!", escreveu a paulista nos
comentários.
Em nota enviada à reportagem, a vereadora Sonaira Fernandes disse que é cristã
"antes de ser qualquer outra coisa, e tenho todo direito de expressar minhas
convicções religiosas, conforme prevê a Constituição".
"Diz o filósofo Luiz Felipe Pondé que o único preconceito ainda socialmente
aceito no Brasil é contra evangélicos e católicos. Isso fica evidente quando uma
declaração minha, que reflete minha cosmovisão cristã, é demonizada e
criminalizada", afirma.
Postagem da vereadora Sonaira Fernandes no Instagram
Crédito, Reprodução / Instagram
Legenda da foto,
'Precisamos estar vigilantes e defender a fé cristã contra seus inimigos',
escreveu a vereadora na legenda do vídeo
Luciana já tem seu candidato à presidência definido: "Vou votar no Bolsonaro,
principalmente porque ele defende as coisas em que eu acredito", diz.
"Gosto da defesa que ele faz pelo fim da sexualização das crianças. A questão do
aborto também, eu sou contra o aborto".
Algumas informações que circulam nas redes sociais sobre o ex-presidente Lula
também influenciaram Luciana no momento de escolher seu candidato. "Temos ouvido
falar que o Lula vai colocar os padres e os pastores em seu devido lugar. Sempre
faz um ataque nesse sentido", diz a arquiteta.
"Vi na internet e em cortes de vídeos, mas não me lembro onde exatamente. Leio
muita coisa, não fico catalogando."
- Este texto foi publicado em
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62985337