EXONERAÇÃO NÃO É A
SOLUÇÃO
EXONERAÇÃO É A SOLUÇÃO?
William Douglas, juiz federal/RJ
“Já que os servidores estão insatisfeitos por que não
pedem exoneração dos cargos e vão tentar um emprego melhor?” –
indagou um.
Respondo:
Alguns servidores e também juízes estão fazendo isso, e é um direito que lhes
acorre.
Outros, porém, preferem exercer o direito de não desistir
de suas carreiras.
Ao fazermos concursos
públicos, estamos aceitando uma oferta do Estado, oferta esta de buscar os
melhores e mais qualificados, regulada na Constituição e nas leis.
O Estado (União, Estados-membros, Municípios e Distrito
Federal) tem o dever de cumprir as regras, inclusive os princípios
constitucionais da legalidade e moralidade (art. 37, caput, CF).
Não somos obrigados a desistir e, de mais a mais, ocorre
que gostamos de ser servidores públicos, e temos direitos que estão sendo
desrespeitados.
Não estamos pedindo esmolas, mas o cumprimento da Constituição.
Não queremos abandonar o barco só porque ele está sendo
canhoneado pelos que se interessam por um Judiciário fraco.
Estamos falando de escolhas de vida, de carreiras, de acreditar no serviço
público etc. Falamos de saber a importância do
funcionalismo público para construir um país justo e próspero. Falamos de
anos de estudo, da prestação de um serviço que você
utiliza. Se falarmos do Judiciário, então trataremos de proteger o pobre dos
poderosos e, a todos, pobres e ricos, dos abusos do Executivo e até do
Legislativo.
Quando a pessoa está insatisfeito com algo, pode partir para outra. Ok, você
acha que tudo se resume a isso?
Você rasgaria o seu diploma e estudaria Medicina, caso,
sendo advogado, a advocacia passasse a ser uma carreira de quinta categoria?
Não seria mais honroso lutar pela valorização da sua classe? Os servidores estão
lutando por um direito constitucional (art. 37, X, CF), não possuem data-base e
por isso precisam apresentar projetos como este para conseguirem manter o poder
de compra. Eles não têm culpa da omissão dos Poderes no
cumprimento da Constituição, das negociatas em que se vendem os direitos do povo
e, menos ainda, da corrupção e incompetência que colocaram o país na situação
atual.
Uns dizem, como você fez, que “os incomodados que se mudem”. Outros, como eu e
os servidores, dizemos como Caio Fernando Abreu:
E tem o seguinte, meus senhores: não vamos enlouquecer,
nem nos matar, nem desistir. Pelo contrário: vamos ficar ótimos e incomodar
bastante ainda.
Viktor Frankl, um psicólogo que ficou anos nos campos de concentração da
Alemanha nazista, nos quais perdeu toda a sua família, foi obrigado a lidar com
uma crise bem maior do que a nossa. No campo de concentração tudo está perdido,
a família, a roupa do corpo, o emprego, o futuro. Todo o patrimônio e todas os
direitos são desfeitos, confiscados. Fome, humilhação, medo, sofrimento e
tortura são a regra. Nesse cenário, bem pior do que o nosso de hoje, Frankl
desenvolveu o que chamou de “a última liberdade humana”, qual seja, a capacidade
de “escolher a atitude pessoal diante de determinado conjunto de
circunstâncias”.
Este homem realizou sessões terapêuticas nos seus companheiros de prisão e um
dos seus desafios era: “Como despertar num paciente o sentimento de que é
responsável por algo perante a vida, por mais duras que sejam as
circunstâncias?” Para ele, “a vida tem um sentido potencial sob quaisquer
circunstâncias, mesmo as mais miseráveis”. E logrou êxito ao provar sua tese
numa situação tão extrema como a de um campo de concentração. A tese está em seu
livro Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração (Ed. Vozes,
2008, p. 7-10), de onde saíram as citações deste parágrafo.
Eu comando um excepcional time de servidores públicos do Poder Judiciário,
estes que estão há nove anos sendo humilhados e pisados
com uma inflação que corrói a qualidade de vida que já tinham e que está sendo
subtraída de forma inconstitucional e imoral. Como magistrado, passei
sete anos sem reajuste, tivemos um, depois mais quatro anos à míngua. Da última
vez, ao invés de darem o reajuste constitucionalmente
previsto, resolveram parte da defasagem com um auxílio-moradia que lançou a
população contra os juízes. A quem mesmo interessa um Judiciário fraco? A
quem interessa juízes acovardados e sem equipe competente para processar seus
feitos e executar suas decisões?
Pois bem, na Vara Federal onde atuamos, eu e minha equipe
decidimos que não vamos punir as pessoas pelos erros do STF, do CNJ e do Poder
Executivo (que preferia que não tivéssemos poder algum). Decidimos que
não vamos abrir mão do sonho nem da carreira. Decidimos que nossa melhor
vingança é continuar a trabalhar bem, fazer justiça e cumprir o dever cívico e
funcional. Em paralelo, decidimos que não vamos abrir mão de lutar pelos
direitos que nos protegem. Afinal, é da nossa cultura
preservar direitos subtraídos pelos bandidos, mesmo quando usam terno ou têm
cargos públicos.
Pretendemos continuar lutando por justiça para todos, inclusive para os
servidores públicos. Nesse passo, concedi, como juiz federal, antecipação de
tutela reajustando os vencimentos da Polícia Federal, tudo com base no art. 37,
X, da Constituição Federal. A decisão caiu no TRF. Então,
escrevi um livro com 200
páginas mostrando que se o STF interpretar a Constituição, no caso dos
servidores, da mesma forma que interpretou noutros casos, o reajuste será dado.
Em suma, como juiz, professor e escritor estou fazendo minha parte. E somos a
vara mais produtiva da cidade porque tenho uma equipe que não desistiu de
cumprir sua carreira e seu dever.
Talvez tenhamos que ter uma greve completa e definitiva. Longa e, para todos,
dolorosa. Talvez tenhamos que ser assediados por uma imprensa que repete as
mentiras do Poder Executivo (alias, imprensa para a qual não falta dinheiro
publicitário do governo), talvez tenhamos a incompreensão
de pessoas que tiveram suas datas-bases respeitadas nos últimos nove anos,
talvez tenhamos que ser atacados pelos Tribunais e CNJ, que estão
rotineiramente omissos no dever de preservar a dignidade dos servidores e as
leis que os protegem. Talvez cortem o ponto dos servidores, já ameaçaram fazer
isso.
Ou talvez tenham vergonha na cara de não querer jogar
sobre a categoria dos servidores públicos do PJU a conta dos últimos vários anos
de incompetência, omissão ou, pior, negociações escusas.
Nesse cenário, talvez seja mesmo mais fácil sair, ou fazer concurso para os
cargos que não incomodam o governo, ou virar sindicalista com cargo em comissão
mesmo que não se tenha competência alguma para cuidar do assunto, ou até ir para
a iniciativa privada. Pode ser. Apenas temo que, indo para
a iniciativa privada, precisemos de um Judiciário competente e independente, de
juízes e servidores capazes, ao invés de manietados. Nessa hora querem
que existam “juízes em Berlim”.
Como diz Jean-Paul Sartre, “O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o
que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós”. Então, citando Frankl,
Sartre e Caio, quer saber?
Acho que a maior parte não pedirá exoneração. Acho que vamos nos valer da
“última liberdade humana”, e, me permita repetir, fazer como Caio sugeriu: não
vamos enlouquecer, nem nos matar, nem desistir. Pelo contrário: vamos ficar
ótimos e incomodar bastante ainda.