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A FARSA DO DEFICIT DA
PREVIDÊNCIA
Em tese de doutorado, pesquisadora denuncia a farsa da crise da Previdência
Social no Brasil forjada pelo governo com apoio da imprensa
21/08/2016
Com argumentos insofismáveis, Denise
Gentil destroça os mitos oficiais que encobrem a realidade da Previdência Social
no Brasil. Em primeiro lugar, uma gigantesca farsa contábil transforma em
déficit o superávit do sistema previdenciário, que atingiu a cifra de R$ 1,2
bilhões em 2006, segundo a economista.
13 Janeiro 2016
O superávit da Seguridade Social – que abrange a Saúde, a Assistência Social e a
Previdência – foi significativamente maior: R$ 72,2 bilhões. No entanto, boa
parte desse excedente vem sendo desviada para cobrir outras despesas,
especialmente de ordem financeira – condena a professora e pesquisadora do
Instituto de Economia da UFRJ, pelo qual concluiu sua tese de doutorado “A falsa
crise da Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do período 1990 –
2005” (leia
a tese na íntegra).
Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, ela ainda explica por que considera
insuficiente o novo cálculo para o sistema proposto pelo governo e mostra que,
subjacente ao debate sobre a Previdência, se desenrola um combate entre
concepções distintas de desenvolvimento econômico-social.
A entrevista é de Coryntho Baldez, publicada por Jornal da UFRJ, 11-01-2016.
***** Eis a entrevista *****
A idéia de crise do sistema previdenciário faz parte do pensamento econômico
hegemônico desde as últimas décadas do século passado. Como essa concepção se
difundiu e quais as suas origens?
A idéia de falência dos sistemas previdenciários públicos e os ataques às
instituições do welfare state (Estado de Bem–Estar Social) tornaram-se
dominantes em meados dos anos 1970 e foram reforçadas com a crise econômica dos
anos 1980. O pensamento liberal-conservador ganhou terreno no meio político e no
meio acadêmico. A questão central para as sociedades ocidentais deixou de ser o
desenvolvimento econômico e a distribuição da renda, proporcionados pela
intervenção do Estado, para se converter no combate à inflação e na defesa da
ampla soberania dos mercados e dos interesses individuais sobre os interesses
coletivos. Um sistema de seguridade social que fosse universal, solidário e
baseado em princípios redistributivistas conflitava com essa nova visão de
mundo.
O principal argumento para modificar a arquitetura dos sistemas estatais de
proteção social, construídos num período de crescimento do pós-guerra, foi o dos
custos crescentes dos sistemas previdenciários, os quais decorreriam,
principalmente, de uma dramática trajetória demográfica de envelhecimento da
população. A partir de então, um problema que é puramente de origem
sócio-econômica foi reduzido a um mero problema demográfico, diante do qual não
há solução possível a não ser o corte de direitos, redução do valor dos
benefícios e elevação de impostos. Essas idéias foram amplamente difundidas para
a periferia do capitalismo e reformas privatizantes foram implantadas em vários
países da América Latina.
No Brasil, a concepção de crise financeira da Previdência vem sendo propagada
insistentemente há mais de 15 anos. Os dados que você levantou em suas pesquisas
contradizem as estatísticas do governo. Primeiramente, explique o artifício
contábil que distorce os cálculos oficiais.
Tenho defendido a idéia de que o cálculo do déficit previdenciário não está
correto, porque não se baseia nos preceitos da Constituição Federal de 1988, que
estabelece o arcabouço jurídico do sistema de Seguridade Social. O cálculo do
resultado previdenciário leva em consideração apenas a receita de contribuição
ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) que incide sobre a folha de
pagamento, diminuindo dessa receita o valor dos benefícios pagos aos
trabalhadores. O resultado dá em déficit. Essa, no entanto, é uma equação
simplificadora da questão. Há outras fontes de receita da Previdência que não
são computadas nesse cálculo, como a Cofins (Contribuição para o
Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição Social sobre o
Lucro Líquido), a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação
Financeira) e a receita de concursos de prognósticos. Isso está
expressamente garantido no artigo 195 da Constituição e acintosamente não é
levado em consideração.
A que números você chegou em sua pesquisa?
Fiz um levantamento da situação financeira do período 1990-2006. De acordo com o
fluxo de caixa do INSS, há superávit operacional ao longo de vários anos. Em
2006, para citar o ano mais recente, esse superávit foi de R$ 1,2 bilhões.
O superávit da Seguridade Social, que abrange o conjunto da Saúde, da
Assistência Social e da Previdência, é muito maior. Em
2006, o excedente de recursos do orçamento da Seguridade alcançou a cifra de R$
72,2 bilhões.
Uma parte desses recursos, cerca de R$ 38 bilhões, foi
desvinculada da Seguridade para além do limite de 20% permitido pela DRU
(Desvinculação das Receitas da União).
Há um grande excedente de recursos no orçamento da Seguridade Social que é
desviado para outros gastos. Esse tema é polêmico e tem sido muito debatido
ultimamente. Há uma vertente, a mais veiculada na mídia, de interpretação desses
dados que ignora a existência de um orçamento da Seguridade Social e trata o
orçamento público como uma equação que envolve apenas receita, despesa e
superávit primário. Não haveria, assim, a menor diferença se os recursos do
superávit vêm do orçamento da Seguridade Social ou de outra fonte qualquer do
orçamento.
Interessa apenas o resultado fiscal, isto é, o quanto foi economizado para pagar
despesas financeiras com juros e amortização da dívida pública.
Por isso o debate torna-se acirrado. De um lado, estão os que advogam a redução
dos gastos financeiros, via redução mais acelerada da taxa de juros, para
liberar recursos para a realização do investimento público necessário ao
crescimento. Do outro, estão os defensores do corte lento e milimétrico da taxa
de juros e de reformas para reduzir gastos com benefícios previdenciários e
assistenciais. Na verdade, o que está em debate são as diferentes visões de
sociedade, de desenvolvimento econômico e de valores sociais.
Há uma confusão entre as noções de Previdência e de Seguridade Social que
dificulta a compreensão dessa questão. Isso é proposital?
Há uma grande dose de desconhecimento no debate, mas há também os que
propositadamente buscam a interpretação mais conveniente. A Previdência é parte
integrante do sistema mais amplo de Seguridade Social.
É parte fundamental do sistema de proteção social erguido pela Constituição de
1988, um dos maiores avanços na conquista da cidadania, ao dar à população
acesso a serviços públicos essenciais. Esse conjunto de políticas sociais se
transformou no mais importante esforço de construção de uma sociedade menos
desigual, associado à política de elevação do salário mínimo. A visão dominante
do debate dos dias de hoje, entretanto, freqüentemente isola a Previdência do
conjunto das políticas sociais, reduzindo-a a um problema fiscal localizado cujo
suposto déficit desestabiliza o orçamento geral. Conforme argumentei antes, esse
déficit não existe, contabilmente é uma farsa ou, no mínimo, um erro de
interpretação dos dispositivos constitucionais.
Entretanto, ainda que tal déficit existisse, a sociedade, através do Estado,
decidiu amparar as pessoas na velhice, no desemprego, na doença, na invalidez
por acidente de trabalho, na maternidade, enfim, cabe ao Estado proteger aqueles
que estão inviabilizados, definitiva ou temporariamente, para o trabalho e que
perdem a possibilidade de obter renda. São direitos conferidos aos cidadãos de
uma sociedade mais evoluída, que entendeu que o mercado excluirá a todos nessas
circunstâncias.
E são recursos que retornam para a economia?
É da mais alta relevância entender que a Previdência é muito mais que uma
transferência de renda a necessitados. Ela é um gasto autônomo, quer dizer, é
uma transferência que se converte integralmente em consumo de alimentos, de
serviços, de produtos essenciais e que, portanto, retorna das mãos dos
beneficiários para o mercado, dinamizando a produção, estimulando o emprego e
multiplicando a renda. Os benefícios previdenciários têm um papel
importantíssimo para alavancar a economia. O baixo crescimento econômico de
menos de 3% do PIB (Produto Interno Bruto), do ano de 2006, seria ainda menor se
não fossem as exportações e os gastos do governo, principalmente com
Previdência, que isoladamente representa quase 8% do PIB.
De acordo com a Constituição, quais são exatamente as fontes que devem financiar
a Seguridade Social?
A seguridade é financiada por contribuições ao INSS de trabalhadores empregados,
autônomos e dos empregadores; pela Cofins, que incide sobre o faturamento
das empresas; pela CSLL, pela CPMF (que ficou conhecida como o
imposto sobre o cheque) e pela receita de loterias. O sistema de
seguridade possui uma diversificada fonte de financiamento. É exatamente por
isso que se tornou um sistema financeiramente sustentável, inclusive nos
momentos de baixo crescimento, porque além da massa salarial, o lucro e o
faturamento são também fontes de arrecadação de receitas. Com isso, o sistema se
tornou menos vulnerável ao ciclo econômico. Por outro lado, a diversificação de
receitas, com a inclusão da taxação do lucro e do faturamento, permitiu maior
progressividade na tributação, transferindo renda de pessoas com mais alto poder
aquisitivo para as de menor.
Além dessas contribuições, o governo pode lançar mão do orçamento da União para
cobrir necessidades da Seguridade Social?
É exatamente isso que diz a Constituição. As contribuições sociais não são a
única fonte de custeio da Seguridade. Se for necessário, os recursos também
virão de dotações orçamentárias da União. Ironicamente tem ocorrido o inverso. O
orçamento da Seguridade é que tem custeado o orçamento fiscal.
O governo não executa o orçamento à parte para a Seguridade Social, como prevê a
Constituição, incorporando-a ao orçamento geral da União. Essa é uma forma de
desviar recursos da área social para pagar outras despesas?
A Constituição determina que sejam elaborados três orçamentos: o orçamento
fiscal, o orçamento da Seguridade Social e o orçamento de investimentos das
estatais. O que ocorre é que, na prática da execução orçamentária, o governo
apresenta não três, mas um único orçamento chamando-o de “Orçamento Fiscal e da
Seguridade Social“, no qual consolida todas as receitas e despesas, unificando o
resultado. Com isso, fica difícil perceber a transferência de receitas do
orçamento da Seguridade Social para financiar gastos do orçamento fiscal. Esse é
o mecanismo de geração de superávit primário no orçamento geral da União. E, por
fim, para tornar o quadro ainda mais confuso, isola-se o resultado
previdenciário do resto do orçamento geral para, com esse artifício contábil,
mostrar que é necessário transferir cada vez mais recursos para cobrir o “rombo”
da Previdência. Como a sociedade pode entender o que realmente se passa?
Agora, o governo pretende mudar a metodologia imprópria de cálculo que vinha
usando. Essa mudança atenderá completamente ao que prevê a Constituição,
incluindo um orçamento à parte para a Seguridade Social?
Não atenderá o que diz a Constituição, porque continuará a haver um isolamento
da Previdência do resto da Seguridade Social. O governo não pretende fazer um
orçamento da Seguridade. Está propondo um novo cálculo para o resultado fiscal
da Previdência. Mas, aceitar que é preciso mudar o cálculo da Previdência já é
um grande avanço. Incluir a CPMF entre as receitas da seguridade é um
reconhecimento importante, embora muito modesto. Retirar o efeito dos incentivos
fiscais sobre as receitas também ajuda a deixar mais transparente o que se faz
com a política previdenciária. O que me parece inadequado, entretanto, é retirar
a aposentadoria rural da despesa com previdência porque pode, futuramente,
resultar em perdas para o trabalhador do campo, se passar a ser tratada como
assistência social, talvez como uma espécie de bolsa. Esse é um campo onde os
benefícios têm menor valor e os direitos sociais ainda não estão suficientemente
consolidados.
Como você analisa essa mudança de postura do Governo Federal em relação ao
cálculo do déficit? Por que isso aconteceu?
Acho que ainda não há uma posição consolidada do governo sobre esse assunto. Há
interpretações diferentes sobre o tema do déficit da Previdência e da
necessidade de reformas. Em alguns segmentos do governo fala-se apenas em choque
de gestão, mas em outras áreas, a reforma da previdência é tratada como
inevitável. Depois que o Fórum da Previdência for instalado, vão começar os
debates, as disputas, a atuação dos lobbies e é impossível prever qual o grau de
controle que o governo vai conseguir sobre seus rumos. Se os movimentos sociais
não estiverem bem organizados para pressionarem na defesa de seus interesses
pode haver mais perdas de proteção social, como ocorreu em reformas anteriores.
A previdência pública no Brasil, com seu grau de cobertura e garantia de renda
mínima para a população, tem papel importante como instrumento de redução dos
desequilíbrios sociais?
Prefiro não superestimar os efeitos da Previdência sobre os desequilíbrios
sociais. De certa forma, tem-se que admitir que vários estudos mostram o papel
dos gastos previdenciários e assistenciais como mecanismos de redução da miséria
e de atenuação das desigualdades sociais nos últimos quatro anos. Os avanços em
termos de grau de cobertura e de garantia de renda mínima para a população são
significativos. Pela PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), cerca
de 36,4 milhões de pessoas ou 43% da população ocupada são contribuintes do
sistema previdenciário. Esse contingente cresceu de forma considerável nos
últimos anos, embora muito ainda necessita ser feito para ampliar a cobertura e
evita que, no futuro, a pobreza na velhice se torne um problema dos mais graves.
O fato, porém, de a população ter assegurado o piso básico de um salário mínimo
para os benefícios previdenciários é de fundamental importância porque, muito
embora o valor do salário mínimo esteja ainda distante de proporcionar condições
dignas de sobrevivência, a política social de correção do salário mínimo acima
da inflação tem permitido redução da pobreza e atenuado a desigualdade da renda.
Cerca de dois milhões de idosos e deficientes físicos recebem benefícios
assistenciais e 524 mil são beneficiários do programa de renda mensal vitalícia.
Essas pessoas têm direito a receber um salário mínimo por mês de forma
permanente.
Evidentemente que tudo isso ainda é muito pouco para superar nossa incapacidade
histórica de combater as desigualdades sociais. Políticas muito mais profundas e
abrangentes teriam que ser colocadas em prática, já que a pobreza deriva de uma
estrutura produtiva heterogênea e socialmente fragmentada que precisa ser
transformada para que a distância entre ricos e pobres efetivamente diminua.
Além disso, o crescimento econômico é condição fundamental para a redução da
pobreza e, nesse quesito, temos andado muito mal. Mas a realidade é que a
redução das desigualdades sociais recebeu um pouco mais de prioridade nos
últimos anos do que em governos anteriores e alguma evolução pode ser captada
através de certos indicadores.
Apesar do superávit que o governo esconde, o sistema previdenciário vem perdendo
capacidade de arrecadação. Isso se deve a fatores demográficos, como dizem
alguns, ou tem relação mais direta com a política econômica dos últimos anos?
A questão fundamental para dar sustentabilidade para um sistema previdenciário é
o crescimento econômico, porque as variáveis mais importantes de sua equação
financeira são emprego formal e salários. Para que não haja risco do sistema
previdenciário ter um colapso de financiamento é preciso que o país cresça,
aumente o nível de ocupação formal e eleve a renda média no mercado de trabalho
para que haja mobilidade social. Portanto, a política econômica é o principal
elemento que tem que entrar no debate sobre “crise” da Previdência. Não temos um
problema demográfico a enfrentar, mas de política econômica inadequada para
promover o crescimento ou a aceleração do crescimento.
http://www.controversia.com.br/blog/2016/08/21/em-tese-de-doutorado-pesquisadora-denuncia-a-farsa-da-crise-da-previdencia-social-no-brasil-forjada-pelo-governo-com-apoio-da-imprensa-2/
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