O FIM DO MUNDO EM FEVEREIRO
08/11/2009
O Fim do Mundo
Cecília Meireles
A primeira vez que ouvi falar no fim do mundo, o mundo para mim não tinha nenhum
sentido, ainda; de modo que não me interessava nem o seu começo nem o seu fim.
Lembro-me, porém, vagamente, de umas mulheres nervosas que choravam, meio
desgrenhadas, e aludiam a um cometa que andava pelo céu, responsável pelo
acontecimento que elas tanto temiam.
"Filha de Carlos Alberto de Carvalho Meireles,
funcionário do Banco do Brasil S.A., e de D. Matilde Benevides Meireles,
professora municipal, Cecília Benevides de Carvalho Meireles
nasceu em 7 de novembro de 1901, na Tijuca, Rio de Janeiro. Foi a única
sobrevivente dos quatros filhos do casal. O pai faleceu três meses antes do seu
nascimento, e sua mãe quando ainda não tinha três anos."<http://www.releituras.com/cmeireles_bio.asp>
Ela faleceu em 1964. O cometa que a maravilhou e que tanto aterrorizou as
mulheres adultas foi cometa de Halley, que passou bem próximo da Terra em 1910.
Ele voltou a passar em 1986, mas, dessa vez, passou tão distante, que nós que
queríamos vê-lo não pudemos fazê-lo.
Nada disso se entendia comigo: o mundo era delas, o cometa era para elas: nós,
crianças, existíamos apenas para brincar com as flores da goiabeira e as cores
do tapete.
Mas, uma noite, levantaram-me da cama, enrolada num lençol, e, estremunhada,
levaram-me à janela para me apresentarem à força ao temível cometa. Aquilo que
até então não me interessava nada, que nem vencia a preguiça dos meus olhos
pareceu-me, de repente, maravilhoso. Era um pavão branco, pousado no ar, por
cima dos telhados? Era uma noiva, que caminhava pela noite, sozinha, ao encontro
da sua festa? Gostei muito do cometa. Devia sempre haver um cometa no céu, como
há lua, sol, estrelas. Por que as pessoas andavam tão apavoradas? A mim não me
causava medo nenhum.
Ora, o cometa desapareceu, aqueles que choravam enxugaram os olhos, o mundo não
se acabou, talvez eu tenha ficado um pouco triste - mas que importância tem a
tristeza das crianças?
Passou-se muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto sentido
do mundo. Não duvido de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo muitos,
inúmeros, pois em redor de mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada
coisa que bem se vê haver um sentido do mundo peculiar a cada um.
Dizem que o mundo termina em fevereiro próximo. Ninguém fala em cometa, e é
pena, porque eu gostaria de tornar a ver um cometa, para verificar se a
lembrança que conservo dessa imagem do céu é verdadeira ou inventada pelo sono
dos meus olhos naquela noite já muito antiga.
O mundo vai acabar, e certamente saberemos qual era o seu verdadeiro sentido. Se
valeu a pena que uns trabalhassem tanto e outros tão pouco. Por que fomos tão
sinceros ou tão hipócritas, tão falsos e tão leais. Por que pensamos tanto em
nós mesmos ou só nos outros. Por que fizemos voto de pobreza ou assaltamos os
cofres públicos - além dos particulares. Por que mentimos tanto, com palavras
tão judiciosas. Tudo isso saberemos e muito mais do que cabe enumerar numa
crônica.
Se o fim do mundo for mesmo em fevereiro, convém pensarmos desde já se
utilizamos este dom de viver da maneira mais digna.
Em muitos pontos da terra há pessoas, neste momento, pedindo a Deus - dono de
todos os mundos - que trate com benignidade as criaturas que se preparam para
encerrar a sua carreira mortal. Há mesmo alguns místicos - segundo leio - que,
na Índia, lançam flores ao fogo, num rito de adoração.
Enquanto isso, os planetas assumem os lugares que lhes competem, na ordem do
universo, neste universo de enigmas a que estamos ligados e no qual por vezes
nos arrogamos posições que não temos - insignificantes que somos, na tremenda
grandiosidade total.
Ainda há uns dias a reflexão e o arrependimento: por que não os utilizaremos? Se
o fim do mundo não for em fevereiro, todos teremos fim, em qualquer mês..."
Texto extraído do livro "Quatro Vozes", Distribuidora Record de Serviços de
Imprensa - Rio de Janeiro, 1998, pág. 73.