"Uma luz no fim do túnel”, decreta o editorial de O
Estado de S. Paulo da terça-feira 11, dia seguinte à aprovação na
Câmara dos Deputados da emenda constitucional que
limita os gastos em saúde e educação.
“Piso para o futuro”, proclamava o editorial da
Folha de S.Paulo do dia anterior, em defesa da mesma emenda.
“Pós-impeachment destrava negócios e atrai
estrangeiros”, comemora a manchete da sexta-feira 14 do Valor
Econômico.
“Gasolina deve cair mais e ajudar na redução de juros”,
prevê O Globo em sua manchete do sábado 15.
O esforço dos meios de comunicação tradicionais para
emular um ambiente positivo na política e na economia é perceptível a
olhos nus, basta trafegar pelas páginas de jornais ou dedicar algum
tempo ao noticiário na tevê e no rádio.
É possível, no entanto, demonstrá-lo de maneira mais
cabal. Um levantamento do site Manchetômetro, sistema de monitoramento
das notícias publicadas nos principais diários do Brasil gerenciado pelo
Laboratório de Mídia e Esfera Pública, ligado à Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, transformou em gráfico a inflexão da cobertura dos
temas econômicos após o
impeachment de Dilma Rousseff.
Conforme se vê à página 23, as menções negativas
despencaram a partir de abril deste ano, após atingir picos entre agosto
de 2015 e fevereiro último, auge da campanha em favor da deposição da
presidenta eleita.
Outros dois gráficos complementam a interpretação do
comportamento da mídia: predominam no caso de
Michel Temer as citações interpretadas pelo laboratório como
neutras, enquanto no caso de Dilma Rousseff as referências negativas
superam em muito aquelas positivas ou neutras. Da mesma forma, o pico
acontece no período mais intenso da operação para removê-la da
Presidência da República.
Criador do Manchetômetro, o professor João Feres Jr.
diz não ter dúvidas sobre o papel dos meios de comunicação no processo
de derrubada da presidenta: “A mídia
trabalhou ativamente pelo impeachment”. Feres Jr. destaca a
“escalada brutal” das menções negativas à presidenta e à economia após
as eleições de 2014. Segundo ele, o tom anti-Dilma prevaleceu até quando
os temas eram controversos e exigiam, por sua natureza, uma postura mais
equilibrada do jornalismo.
Feres Jr. não usa o termo, mas se o Manchetômetro
captou uma espécie de “jornalismo
de guerra” contra Dilma Rousseff, é previsível a mudança de humor
dos meios de comunicação após a vitória consumada. Diante de propostas e
medidas de “ajuste
fiscal” muito parecidas, a má vontade transmutou-se em benevolência.
Os indicadores econômicos, diga-se, não mudaram de forma substancial, ao
contrário, continuam a piorar e desautorizam a euforia estampada nos
jornais.
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Quem sabe a prisão
não estimule Dirceu e Palocci a refletir sobre suas ilusões?
O desemprego beira os 12%, o Produto Interno Bruto caiu
0,9 em agosto e 5,6% em doze meses, o País tornou-se um pária nas
relações internacionais, o que tende a afastar investidores
estrangeiros, o número de falências é recorde, os juros continuam
escandalosos e o
teto de gastos celebrados em editoriais vai representar, segundo
cálculos diversos, uma redução de quase 700 bilhões de reais nos
investimentos em saúde e educação ao longo dos próximos 20 anos.
Quiçá a “luz no fim do túnel” seja uma autorreferência.
Nenhum outro setor teve suas demandas atendidas com tanta rapidez pelo
novo governo. Os primeiros atos de Temer trataram de
reconcentrar os
investimentos publicitários federais nos maiores veículos, boicotar quem
tem um posicionamento crítico, CartaCapital incluída, e desmontar
o sistema público de radiodifusão concebido no segundo mandato de Lula.
O jornalista Miguel do Rosário publicou em seu blog, O
Cafezinho, os mais recentes dados oficiais de gastos publicitários do
governo e das estatais. Surpresas? Nada. Entre maio e agosto,
a TV
Globo, que engolfa cerca de 60% dos anúncios no segmento, recebeu 24,4%
a mais do governo federal do que em igual período do ano passado. O
aumento do repasse para a Abril, que edita Veja, foi de 624,3%. A
Folha de S.Paulo e seu portal UOL embolsaram 78,1% a mais.
A Band, 1.129,4%.
Quando se comparam períodos mais longos (de janeiro a
agosto), aparecem informações curiosas como a extraordinária expansão de
3.759,4% nos repasses à revista Caras, de fofocas e celebridades.
Tal desempenho talvez explique a súbita decisão da Editora Abril, que em
recente reestruturação havia se livrado da publicação, de recolocar o
título em seu portfólio.
Não há informações sobre a IstoÉ. A revista
está, no entanto, recheada de anúncios federais, embora sua circulação
não seja mais auditada pelo IVC, principal órgão de verificação do
mercado editorial. Ou seja, a União investe na publicação, embora não
possua mais um dado confiável e público a respeito do número de leitores
da revista.
Apesar do estado de calamidade da economia e da
urgência de medidas para melhorar a situação fiscal do País, as
primeiras decisões de Temer, ainda na fase de interinidade, visaram o
setor de comunicação. No dia seguinte ao afastamento temporário de Dilma
Rousseff pelo Senado, o governo cancelou um patrocínio de 100 mil reais
da Caixa Econômica Federal para um seminário de blogueiros independentes
(então acusados de “dilmistas”) em Belo Horizonte.
Após a remoção definitiva da presidenta, as coisas só
pioraram. Por ordem da Secretaria de Comunicação, controlada pelo
ministro
Eliseu Padilha, foram cancelados os contratos com sites e blogs
progressistas (petistas, segundo o novo governo) no valor de 11 milhões
de reais, quantia irrisória diante dos gastos bilionários em publicidade
estatal nos veículos tradicionais.
O governo justificou a decisão com o argumento de que
os anúncios federais devem ser publicados em produtores de notícia e não
em espaços de opinião. A Secom também foi orientada a excluir
CartaCapital de qualquer programação de mídia.
A ordem tem sido cumprida à risca desde então.
Coincidência ou não, na mesma época
o presidente da
Associação de Mídias Evangélicas, Orli Rodrigues, afirmou que Temer
havia prometido premiar as emissoras religiosas com publicidade estatal.
O assunto mereceu uma cobertura especial de O Globo e não se sabe
se a promessa foi ou será cumprida (em consequência da rixa com a Igreja
Universal, proprietária da Record, os Marinho têm restrições a esse tipo
de iniciativa).
Além de cortar a publicidade de quem critica
explicitamente o processo de impeachment,
Temer promoveu o
desmonte da tevê pública. Por meio de uma Medida Provisória, destituiu o
jornalista Ricardo Melo da presidência da Empresa Brasileira de
Comunicação, eleito para um mandato de quatro ano, e instalou em seu
lugar Laerte Rímoli, apaniguado do ex-deputado
Eduardo Cunha, preso na quarta-feira 19 pela
Operação Lava Jato.
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Dilma acreditou no
poder do 'controle remoto' (Foto: Lula Marques/Agência PT)
A MP ainda extinguiu o Conselho Curador, criado
justamente para garantir o caráter público e não estatal da EBC. “O
governo agiu para enterrar de vez qualquer possibilidade de
fortalecimento de um projeto de tevê pública”, afirma Venício Lima, um
dos principais estudiosos de mídia do Brasil, atualmente pesquisador
sênior do Centro de Estudos Republicanos da Universidade Federal de
Minas Gerais.
A EBC sempre foi tratada pelos meios de comunicação
privados como um arroubo “bolivariano” e doutrinário dos governos
petistas, mas é justamente sob a administração de Rímoli que se acumulam
denúncias de intervenção no conteúdo.
Funcionários da empresa, sob anonimato, relatam
frequentes casos de censura interna. Na cobertura da aprovação da PEC do
teto de gastos, entrevistas com parlamentares e especialistas contrários
à medida teriam sido proibidas ou desestimuladas. Não seria o único
caso. Segundo esses relatos, a EBC é, hoje, literalmente, uma tevê
“chapa branca”.
Durante seminário em São Paulo no fim de setembro, o
uruguaio
Edison Lanza, relator para a liberdade de expressão da Organização
dos Estados Americanos, declarou-se preocupado com a intervenção na EBC,
a tentativa de calar as vozes discordantes e a repressão aos protestos
contra Temer. “A falta de políticas para a
pluralidade midiática no Brasil é um problema grave para a
democracia e para o próprio sistema de comunicação”, afirmou. “Não
existe democracia consolidada sem liberdade de expressão.”
Presidente do Barão de Itararé, centro de estudos da
mídia alternativa mantido por blogueiros independentes, Altamiro Borges
recorre a uma brincadeira para resumir o momento: “O governo Temer não
tem as preocupações republicanas do PT. Com a turma do PMDB, a conversa
é outra. O objetivo é sufocar quem os critica”.
Entenda-se o contexto das “preocupações republicanas”
petistas descritas por Borges. Constantemente acusados de alimentar com
dinheiro público meios de comunicação “simpáticos às suas causas”, os
governos de Lula e Dilma Rousseff oscilaram em suas políticas de
comunicação.
Salvo exceções, foram reações espasmódicas à
conjuntura, desconectadas de qualquer estratégia para ampliar e garantir
a pluralidade de informação. No segundo mandato de Lula, quando o
jornalista
Franklin Martins chefiava a Secom, foram adotados critérios técnicos
que ampliaram e regionalizaram a distribuição das verbas publicitárias.
A quantidade de meios de comunicação agraciados com
publicidade estatal sextuplicaram: de cerca de 300 durante o governo
Fernando Henrique Cardoso para quase 2 mil, o que melhorou a eficiência
da comunicação do governo e, embora de maneira tímida, estimulou alguma
diversidade de opinião. Os sucessores de Martins no governo Dilma
abandonaram, no entanto, essa orientação e voltaram a reconcentrar os
recursos nos oligopólios.
Resultado: apesar das acusações dos adversários
políticos e da mídia hegemônica, o PT reproduziu ao longo de seus 13
anos no poder a lógica dos investimentos de governos anteriores, como se
percebe no gráfico à página 22.
Entre 2003 e 2014, a Globo recebeu mais de 6 bilhões de
reais em anúncios. CartaCapital, 61 milhões, média de 2 milhões
por ano. “A Dilma manteve anúncios naqueles meios de comunicação que ela
chamou de criminosos. Os principais veículos, alimentados com dinheiro
público, apostaram o tempo todo na desestabilização do governo”,
ressalta Borges.
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Na Argentina, Macri
também acerta a fatura com a mídia (Foto: Jales Valquer/Fotoarena)
Trata-se
de um cacoete do PT, diga-se. Ou um misto de arrogância e ingenuidade.
No primeiro mandato de Lula, o senador peemedebista
Roberto Requião defendeu a criação de uma rede pública de
comunicação, que só sairia do papel seis anos depois, e ouviu do então
ministro José Dirceu: “Para quê? Já temos a Globo”.
Dirceu hoje mofa na cadeia e não contou com nenhum
beneplácito da família Marinho.
Antonio Palocci organizou uma operação de salvamento da mesma Globo
por meio do BNDES quando ocupava o Ministério da Fazenda. Atualmente faz
companhia a Dirceu em Curitiba.
E Dilma, sempre que confrontada com a tese da
necessidade de combater o oligopólio midiático, saía-se com o argumento
batido do poder do “controle remoto”, o poder de escolha do consumidor,
como se existisse uma gama heterodoxa de opções. Acabou destituída sem
ter conseguido explicar para a maioria dos eleitores que seu afastamento
atropelou os preceitos constitucionais.
Nenhum outro agrupamento partidário, lembra Borges,
atuou ou atua na comunicação pública com a preocupação de parecer isento
e transparente. Sob comando do PSDB há duas décadas, o estado de São
Paulo, dono do segundo maior orçamento publicitário da República, não
parece se abalar com as acusações de favorecer a “mídia simpática” a seu
projeto de poder.
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Lanza, da OEA: 'Não
existe democracia sem liberdade de expressão' (Foto: Sergio Amaral)
Segundo levantamento da jornalista Conceição Leme,
entre 2003 e 2014, o Estado gastou sem licitação 155,5 milhões de reais
em assinaturas dos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S.
Paulo e das revistas Veja, Época e IstoÉ. As
edições foram enviadas a bibliotecas públicas e escolas sob o pretexto
de serem “fontes de boa informação e educação”.
Não foram os únicos contemplados. Em cinco anos, o
governador Geraldo Alckmin aplicou 4,5 milhões de reais em publicações
do futuro prefeito da capital
João Doria, seu correligionário. Doria edita, entre outras, a
fundamental revista Caviar Lifestyle.
O governo Temer não destoa da tendência na América do
Sul a partir da derrota de governos ditos de esquerda. Na Argentina, o
presidente Mauricio Macri igualmente fez questão de pagar um tributo à
mídia ao assumir. Entre as primeiras decisões de Macri figura o
desmonte da lei de meios aprovada no último mandato de Cristina
Kirchner.
Detalhe: a legislação kirchnerista promoveu uma reforma
radical do setor, nunca pensada no Brasil. A “ley de medios” forçou a
desconcentração dos oligopólios, obrigou o Grupo Clarín a se desfazer de
uma série de empresas e transferiu para a tevê pública o controle da
transmissão dos jogos de futebol.
Aqui, a influência da Globo sobre a CBF e os clubes não
só distorce a concorrência no mercado de tevê. Ela está na raiz dos
escândalos de corrupção investigados dentro e fora do País (a maior
parte da propina paga a dirigentes da Fifa saiu da negociação dos
direitos televisivos dos torneios internacionais).
Embora
pontualmente se registrem recuos em favor de interesses privados nas
sólidas legislações de comunicação criadas no século XX na maioria das
nações, nada se assemelha à realidade brasileira. Os Estados Unidos, o
mais liberal dos países desenvolvidos, mantêm de pé regras centenárias
que impedem a concentração da mídia, entre elas, a proibição de um grupo
deter em uma mesma área concessões de rádio e tevê e editar jornais ou
revistas.
Não existe conglomerado de mídia no planeta com tanto
poder concentrado quanto a Globo, destino de 60% da verba publicitária
total, associada nos estados a grupos políticos poderosos e dona dos
maiores veículos em praticamente todos os segmentos. No México, outro
exemplo de forte concentração, a Televisa ao menos disputa espaço com a
TV Azteca.
Leis e recomendações continuam a ser produzidas no
exterior para evitar a formação de monopólios. Após o escândalo dos
grampos ilegais divulgados pelo “falecido” News of the World, do
tycoon Rupert Murdoch, o Reino Unido aprovou uma dura legislação
de direito de resposta e punição aos crimes cometidos por jornalistas.
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Levenson: um
relatório que cairia bem no Brasil (Foto: Suzanne Plunkett/Getty
Images)
O relatório do juiz
Brian Leveson, indicado para analisar o episódio e sugerir medidas ao
Parlamento, propôs uma nova lei de imprensa e a criação de um órgão
fiscalizador. O diagnóstico de Leveson se aplicaria perfeitamente ao
Brasil: “Setores da mídia agiram como se seu próprio código de conduta
não existisse... desprezo significativo e negligente em relação à
verdade factual”.
O Banco Mundial recomenda a adoção de critérios de
distribuição de anúncios públicos que estimulem a pluralidade de
opiniões. Uma comissão da União Europeia fez sugestões semelhantes aos
associados: reservar uma parte dos investimentos para veículos menores e
comunitários, capazes de contemplar a diversidade de pensamento
existente na sociedade.
Países como a França e a Itália tomam decisões de
investimentos públicos baseadas não só em critérios de audiência.
Relevância e pluralidade são levados em conta. E a concentração é
proibida e desestimulada em praticamente toda a Europa.
No Brasil, caminha-se na direção contrária. Enquanto o
Executivo recria o “bolsa-mídia”, a base aliada do governo Temer no
Congresso parece disposta a reduzir a liberdade de expressão na
internet. O alvo é o
Marco Civil aprovado durante o mandato de Dilma Rousseff.
Um projeto em tramitação pretende autorizar o bloqueio
e a retirada de conteúdos da rede e ao mesmo tempo atender ao lobby
das operadoras de telefonia para limitar o acesso de dados por meio da
banda larga.
Em outras palavras, o projeto cria internautas de
primeira e segunda classe. “Se depender do Temer e companhia”, avalia
Borges, “viveremos um período de
censura e obscurantismo nas áreas de comunicação e cultura. São
ações típicas de governos autoritários.”
https://www.cartacapital.com.br/revista/924/o-golpe-sera-televisionado