GROTESCOS NO PODER
Entre declarações
falaciosas e o mais puro delírio, o presidente Bolsonaro foi denunciado no
Tribunal Penal Internacional por genocídio indígena, enquanto integrantes de seu
governo negam a História e o senso comum, atacam minorias, defendem
autoritarismos e apelam para teorias conspiratórias. Parte é pura ignorância,
mas há cortinas de fumaça
André Vargas
06/12/19 - 09h30 - Atualizado em 06/12/19 - 13h29
Desde o princípio do governo de Jair Bolsonaro, os brasileiros — e o mundo —
assistem a um aparelhamento ideológico descontrolado tanto no núcleo como nas
periferias do poder. A República foi tomada por algumas figuras lunáticas que se
dedicam a pregações apocalípticas e insanas, como se o papel central de um
governo fosse reescrever a história e negar o senso comum, em vez de prover
condições ao desenvolvimento e a prosperidade de seus cidadãos. A cada semana,
os noticiários e as redes sociais são inundados por diferentes declarações,
iniciativas e críticas desrespeitosas contra negros, mulheres, indígenas, gays,
estudantes, pesquisadores, ambientalistas e artistas. As afirmações mais pesadas
e ofensivas costumam recair sobre o conjunto de brasileiros pobres e indefesos.
90% Direita Alheia aos problemas indígenas, Ysani Kalapalo diz que queimadas são
acidentais (Crédito:Divulgação)
A conta da barbárie, todavia, não tardou a chegar. No final de novembro, o
presidente Jair Bolsonaro foi denunciado no Tribunal Penal Internacional (TPI),
em Haia, por incitar o genocídio de povos indígenas. A documentação foi entregue
pela Comissão Arns e pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADH),
diante do desmonte proposital dos aparatos de fiscalização ambiental e de
proteção aos povos indígenas. Não é pouca coisa. O documento foi assinado por
dois ex-ministros da Justiça, José Carlos Dias e José Gregori. Bolsonaro pode
até não ser julgado, mas já está em uma posição que foi ocupada por figuras
tenebrosas, como o croata-bósnio Radovan Karadzic, o congolês Thomas Lubanga
Dyilo e o ruandês Jean Kanbanda — todos condenados por crimes de guerra, de
genocídio e contra a humanidade.
O festival de desrespeito ao próximo também têm consequências por aqui. O
ex-jornalista Sérgio Camargo teve sua nomeação à presidência da Fundação
Cultural Palmares suspensa pela Justiça na quarta-feira 4. Filho do escritor e
militante da causa negra Oswaldo de Camargo, Sérgio foi pinçado a dedo das redes
sociais por afirmar que a escravidão foi “benéfica”, que os negros são
manipulados pela esquerda e que Zumbi dos Palmares hoje seria “bandido ou
defensor de bandido”.
Analfabetos e fanáticos
Autoproclamado de direita e bolsonarista fanático, o homem que deveria dirigir
uma entidade voltada à valorização da influência de matriz africana sobre a
sociedade brasileira é contrário ao Dia da Consciência Negra. Ele demonstra
também uma total falta de empatia com a memória e a família da deputada estadual
Marielle Franco, emboscada e assassinada no Rio, em 2018, em um caso de
repercussão internacional. Para ele, Marielle foi uma “mulher sem valor”, uma
mestiça que se passaria por negra para se fazer de vítima e que “morreu para
ficar atormentando os vivos”, escreveu em novembro. O produtor musical Wadico
Camargo não perdoou: “Tenho vergonha de ser irmão desse capitão do mato”.
Felizmente, Camargo poderá se defender sem ter de acionar a justiça congolesa,
para onde sugere que seus desafetos cobrem reparações.
As barbaridades permitem até promoções aos que não perdoam nem sequer figuras
vivas de grande estatura. Furioso com a atriz Fernanda Montenegro, que em
setembro posou para uma revista como bruxa prestes a ser imolada em uma fogueira
de livros, o então diretor da Funarte Roberto Alvim a classificou como “sórdida”
e de uma “canalhice abissal”. A foto era uma referência às tentativas de censura
do governo. Em novembro, Alvim foi nomeado secretário especial de Cultura, cargo
equivalente ao de ministro. É como se o governo recrutasse propositalmente os
mais delirantes e alheios. Presidente da Biblioteca Nacional, Rafael Nogueira
reclamou, em 2017, que livros didáticos com citações a Caetano Veloso e outros
explicaria o analfabetismo dos brasileiros. Mas não explicou qual a relação do
autor de “Língua” com o problema. Ele tampouco explicou o que pretende fazer na
fundação. Formado em direito e com pós-graduação em Educação, Nogueira enfrenta
a resistência dos funcionários e pesquisadores por desconhecer a natureza do
trabalho de conservação bibliográfica. Ele foi indicado por Roberto Alvim. Do
mesmo modo, o maestro Dante Mantovani subiu ao pódio da Funarte. Outro que gosta
de publicar suas opiniões questionáveis e heterodoxas, pelo menos Mantovani não
chega a ofender ninguém diretamente. Em vídeo, afirmou que os Beatles eram
comunistas, que o rock alimenta o satanismo, que a CIA distribuiu LSD em
Woodstock. Sua contribuição à cultura foi a divulgação do neologismo “terrabolistas”,
que descreve os que acreditam na esfericidade do planeta. Não dá para saber se
está brincando.
LGBT Presidente e aliados desprezam sistematicamente movimentos sociais e
minorias que buscam reconhecimento
Depilação de virilha
Já a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, delira — ou interpreta bem.
Em um áudio que correu esta semana por grupos de WhatsApp, ela descreveu uma
visão que teve enquanto rezava. Como se estivesse recitando de memória alguma
centúria de Nostradamus, relatou que Bolsonaro é alvo de feitiçarias 24 horas
por dia. É uma ladainha sangrenta que fala de ventres de bebês abertos e potes
de sangue que, em tom gutural e alguma rima, virariam uma letra de heavy metal
capaz de humilhar Ozzy Osbourne. Como sempre, diz que a salvação está na igreja.
Não falou dos indígenas mortos no Amapá por garimpeiros, nem da violência contra
a mulher. A principal ligação do governo com os povos nativos parece ser por
meio da indígena Ysani Kalapalo, do Xingu, que se diz “90% de direita”, que as
queimadas são meros acidentes e que há índios baderneiros em Brasília. Kalapalo
também posta vídeos sobre a depilação de virilhas femininas e os efeitos
positivos da vida sem calcinhas. Algo que contrariaria a ministra, que já
afirmou que estupros ocorrem porque muitas brasileiras não usam roupa de baixo.
“BACK TO USSR” Para Dante Mantovani, da Biblioteca Nacional, Beatles eram
comunistas
“SÓRDIDA” Crítica às tentativas de censura, Fernanda Montenegro despertou a
fúria de Roberto Alvim
Paulo freire feio
Essa falta impudica de espírito público é uma lacuna que abre espaço para um
vale tudo sectário e obscurantista em nome do poder — ou só de um cargo e suas
benesses. Estudioso do liberalismo e da democracia representativa, o pensador
Alexis de Tocqueville afirmava, lá no início do século XIX: “A saúde de uma
sociedade pode ser medida pela qualidade de funções desempenhadas por seus
cidadãos”. Pior faz o ministro da Educação, Abraham Weintraub. Ele criou uma
relação tóxica com reitores, educadores e estudantes ao afirmar ao Jornal da
Cidade Online, em novembro, sem a menor fundamentação, que há vastas plantações
de maconha em algumas universidades públicas: “A ponto de ter borrifador de
agrotóxico”. A associação de reitores pede na Justiça uma retratação. Na
terça-feira 3, descontente com os resultados do Brasil nas avaliações
internacionais, Weintraub afirmou que a culpa do baixo desempenho dos alunos
brasileiros é do educador Paulo Freire, que morreu em 1997. Freire desenvolveu
um método de alfabetização de adultos em 1963 e é um dos educadores mais
respeitados do mundo. Mas, para Weintraub, Freire é apenas “feio de doer”.
O ministro deveria saber que as técnicas do brasileiro são empregadas em escolas
dos EUA, Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia, países de economia liberal e
amplos investimentos públicos na educação.
Um olhar mais distanciado e crítico indica alguma engenharia, já que todo esse
caos declaratório serve como amortecedor e sedativo para obnubilar questões mais
delicadas e complexas no governo. O presidente e parte de seu ministério falam
barbaridades com algum conteúdo e risco, como quando Bolsonaro elogia Pinochet e
Stroessner, Paulo Guedes defende o AI-5 e Ricardo Salles diz que os dados do
Inpe sobre as queimadas não são confiáveis (ou tenta transferir um biólogo
marinho para o sertão de Pernambuco e se reúne com notórios infratores
ambientais). Um dos desatinos presidenciais foi parar no STF. O jornalista Glenn
Greenwald, do site The Intercept Brasil, pediu à Justiça que Bolsonaro esclareça
o que quis dizer quando classificou como “malandragem” a adoção de duas crianças
brasileiras. O jornalista americano é casado com um brasileiro, o que lhe dá
todo o respaldo legal. Greenwald e colegas revelaram as mensagens do ministro da
Justiça Sergio Moro com procuradores federais, quando este atuava como juiz da
Operação Lava Jato.
Para o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-secretário de governo que
rompeu com o bolsonarismo, há uma estratégia deliberada para confundir e abafar.
“Eles não querem ouvir ninguém. O presidente fala sem pensar a toda hora. Daí dá
nisso”, diz.
SOFRIMENTO Indicado para a Fundação Palmares, Sérgio Camargo nega evidências
históricas, como as pinturas de Debret
Terraplanista
Esse rancor que “subestima o mercado de ideias” é o motor do populismo
autoritário, conforme descrito pelo neurocientista cognitivo Steven Pinker, da
Universidade de Harvard. O que aflige o Brasil seria uma vertente política
sazonal que despreza o fundamento da promoção do bem-estar geral, pois considera
como parte legítima do exercício da vontade eleitoral da maioria a
desconsideração pelas minorias. Para quem está no poder — e seus apoiadores —, o
problema é o outro, o diferente, visto como inferior por definição e que,
portanto, merece ser excluído caso não se integre. Para justificar esse ideário,
recruta-se o negro racista Sérgio Camargo, a mulher machista Damares Alves, a
índia alienada Ysani Kalapalo, o maestro terraplanista Dante Mantovani. Esse
modo de agir acaba por avalizar as barbaridades criminosas do brasileiro comum,
que acaba por se sentir autorizado a agir em público como se fosse lógico, ético
e legal o desrespeito ao próximo.
Triste comédia
Foi o que ocorreu no Rio de Janeiro. Depois de gravar cenas da comédia “Juntos e
Enrolados”, no domingo 24, dentro do quartel-general dos bombeiros, a atriz e
humorista Cacau Protásio e os dançarinos que atuaram com ela sofreram ataques.
“Mete aquela gorda, preta, f.d.p. numa farda, uma bucha de canhão daquela, com
um monte de bailarino viado, quebrando até o chão”, escreveu um bombeiro militar
— um agente público.
Há alguma esperança de justiça e punição. A corporação instaurou uma
investigação interna. Primeiro o comando pediu que o pessoal parasse com os
ataques em aplicativos de mensagens. Diante da insistência, foi aberta uma
sindicância. “Ouvir tudo isso de um ser humano é horrível. Como eu posso dizer
que alguém que veste uma farda tão linda tem essa postura? Como eu posso dizer
que ele salva vidas?”, afirmou atriz. Foi um episódio triste e criminoso que
amanhã ou depois deverá ser deixado de lado, substituído por outra vergonha de
teor parecido.
<https://istoe.com.br/grotescos-no-poder/>
Como diria o Lula,
nunca antes na história deste país,
vimos ou imaginamos tais coisas!