A HISTÓRIA DE TERROR DE VERA PRATT
A história de terror de Vera Pratt, a
idosa “possuída por demônios” que perdeu milhões ao ser enganada pela sua
exorcista
O caso da herdeira, falecida em 2018, colocou em evidência o vazio jurídico que
existe para perseguir os prestadores de serviços de ocultismo
Imágenes: Getty / Collage: Blanca López
Begoña Gómez Urzaiz
Barcelona - 30 oct 2021 - 23:12 BRT
De vez em quando vem à tona uma história de “milionário enganado por um
golpista” e a notícia é recebida nos meios de comunicação com algo parecido ao
schadenfreude, a pulsão de se alegrar com mal alheio. Aí está. Não ter sido
ricos. Estamos falando de histórias como a do empresário imobiliário Stephen
Cloobeck, de 59 anos, que exige que a sua ex, Stefanie Gurzanski, de 26, uma
modelo com muitos seguidores no OnlyFans, lhe devolva o milhão de dólares que
gastou em presentes nos cinco meses que passaram juntos. Também nos casos de
fraude de alto nível que alimentam podcasts e plataformas é difícil que nos
sintamos com o coração encolhido por gente como a ex-secretária da Educação de
Trump, a bilionária Betsy DeVos, que investiu 100 milhões de dólares (cerca de
563 milhões de reais) na fraude de Theranos.
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revelou um predador sexual
No entanto, a história de Vera Pratt, a idosa enganada por uma vidente que foi
divulgada nesta semana em um longo artigo do Boston Globe só pode ser lida como
um conto triste de Alice Munro ou Elizabeth Strout. A idosa entregou 3,5 milhões
de dólares a uma vidente chamada Angela Johnson para tentar exorcizar o demônio
de seu corpo. Em uma relação que durou sete anos, a vidente da Flórida conseguiu
manter a mulher sob total controle, afastou-a da família e dos amigos, tornou-se
titular do seu cartão de crédito e passou a ter um estilo de vida que lhe
permitiu comprar um Porsche Cayenne e usar bolsas Chanel e sapatos Louboutin,
enquanto a mulher que lhe passava os cheques teve de pedir a uma afilhada que
pagasse sua conta de luz.
Vera Pratt morreu em 2018 no sentido mais concreto do termo. Pertencia à quarta
geração de pessoas que viviam do dinheiro ganho por Charles Pratt, sócio de John
D. Rockefeller na Standard Oil Company. Em 1891, a fortuna de Pratt era de cerca
de 20 milhões de dólares, que agora seriam 576. Vera nunca precisou ter algo
parecido com um emprego, mas de acordo com o artigo do Globe, “ela não se sentia
confortável com sua riqueza” e preferia gastar os milhões que lhe couberam
fazendo doações filantrópicas para causas como a Oxfam e a Save the Children.
Gostava de pintar óleos impressionistas, de reiki e de viajar. Teve uma vida
errante e despreocupada. Estudou psicologia junguiana em Viena e experimentou
drogas psicodélicas com Timothy Leary. O amor, costumava dizer, a tinha evitado.
Entardecer em Martha’s Vineyard (Massachusetts), lugar favorito dos ricos
discretos nos Estados Unidos. Também dos Kennedys.
Entardecer em Martha’s Vineyard (Massachusetts), lugar favorito dos ricos
discretos nos Estados Unidos. Também dos Kennedys. Atlantide Phototravel (Getty
Images)
Em 2006, Vera Pratt comprou seu maior capricho, uma casa de quatro quartos
avaliada em dois milhões de dólares em Martha’s Vineyard, a ilha de
Massachusetts que sempre acolheu as férias dos Kennedys e de certa elite que
valoriza o dinheiro discreto. A polêmica festa de aniversário de 60 anos de
Barack Obama no verão passado, com a presença de convidados como Steven
Spielberg e Oprah Winfrey, foi realizada, evidentemente, na mansão que os Obama
compraram na ilha graças aos seus negócios pós-presidenciais, que incluem
contratos com a Netflix e adiantamentos de muitos milhões de dólares por seus
livros.
A casa de Vera Pratt era uma coisa mais discreta, mas tinha sua sala de
meditação, sua sala para fazer conservas e sua horta, onde plantava brócolis e
morangos. Mesmo assim, a mulher não estava tranquila. Sempre tinha acreditado em
forças paranormais. Acreditava que ela mesma era um pouco bruxa, e se convenceu
de que as coisas que aconteceram com ela desde que completara 70 anos eram
coisas do diabo. Especificamente, pensava que estava possuída e que o demônio se
alojava em sua clavícula direita. Era ele quem levava a culpa de que seus
e-mails eram deletados, de seus problemas de cobertura do celular e de que seu
fogão a carvão tivesse quebrado.
Foi então que encontrou um anúncio de uma mulher da Flórida que se anunciava
como Psychic Angela, ou seja, a Vidente Angela Johnson —que, na verdade, se
chamava Sally Reed, afirmava pertencer aos ciganos norte-americanos e vendia
serviços de leitura de cartas, limpeza espiritual, cura e meditação. Por alguma
razão, Vera Pratt acreditou que entre as centenas de milhares de pessoas que
ganham dinheiro em um setor cada vez mais normalizado, o da venda de fumaça,
seja através de cristais ou eneagramas, a Vidente Angela era exatamente o que
buscava. Johnson, que então tinha trinta e poucos anos, dava um verniz
corporativo ao seu negócio. Dizia que tinha ajudado executivos de alto nível.
Escreveu sobre si mesma na plataforma Yelp: “Nunca falhei em nenhum caso”.
Já em sua primeira conversa, em 2006, a vidente deve ter intuído que tinha um
negócio de longo prazo nas mãos. Começou um tratamento que duraria mais de sete
anos. Johnson lhe dizia que passava horas inteiras, do dia e da noite,
exorcizando os demônios de Pratt, e cobrava pelo tempo dedicado, é claro.
Dava-lhe instruções por telefone para colocar cristais e incenso em casa para
conter a energia negativa, rezar e meditar. Como os demônios aparentemente
persistiam, a vidente convenceu-a de que era necessário que se encontrassem.
Johnson começou a fazer viagens regulares da Flórida a Martha’s Vineyard. É
claro que Pratt pagava a passagem aérea e a estadia no Harbor View Hotel, onde a
noite custa cerca de 500 dólares. Em 2011, quando Pratt já havia pagado centenas
de milhares de dólares à vidente, notou que tinha pouco dinheiro na conta. Em um
e-mail que escreveu a Johnson, ela disse: “Não tinha olhado quanto eu te dava”.
E em seu diário escreveu, com a despreocupação de quem nunca perdeu o sono por
causa de dinheiro: “O que você me pede para lidar com demônios é muito. Pelo
visto, estou ficando sem fundos”. Enquanto isso, a vida financeira de Johnson ia
muito bem. Morava em uma casa de meio milhão de dólares na Flórida e tinha outro
apartamento em Nova York, no Flatiron District. Graças ao cartão de Pratt, que
usava à vontade, podia comprar bolsas Celine e Chanel, além de sapatos Louboutin
e Yves Saint Laurent.
Hillary Clinton durante o verão de 1993 em Martha’s Vineyard, a ilha favorita
dos democratas milionários.
Hillary Clinton durante o verão de 1993 em Martha’s Vineyard, a ilha favorita
dos democratas milionários. Dirck Halstead (Getty Images)
A família de Pratt começou a se preocupar com a relação com a vidente,
especialmente depois que Pratt pediu dinheiro ao seu irmão Charles. Eles a viam
cada vez menos, porque Johnson fez algo muito comum nesses tipos de golpes de
manipulação: convencer o cliente de que sua família e amigos eram más
influências para sua aura. Seu irmão Peter escreveu-lhe: “Infelizmente isso já
aconteceu antes e acontecerá novamente, porque sua curandeira te pede mais
dinheiro à medida que você fica mais viciada nela. Embora você ache que esta é
especial, está custando muito dinheiro. Espero que você procure uma segunda
opinião antes que isso te custe todos os teus amigos, família, casa e
propriedades”.
Finalmente, depois de fazer algumas verificações no banco, uma das afilhadas de
Pratt levou o caso à polícia. Como Martha’s Vineyard é um lugar pequeno,
descobriu-se que o detetive designado para o caso, Sean Slavin, era vizinho de
Pratt e tinha visto a mulher trabalhando no jardim. Ele foi visitá-la e ficou
surpreso com a desordem na casa. Perguntou-lhe:
—Vai se mudar?
Ao que ela respondeu:
—Oh, sim, quando minha curandeira terminar de exorcizar meus demônios e me
permita.
Pratt admitiu ter gasto cerca de 15.000 com uma vidente. Na verdade o valor era
de três milhões e meio.
Aí começou uma investigação para tentar condenar a vidente por fraude. A defesa
de Johnson alegou, entre outras coisas, liberdade religiosa. Apontou que quem
via tudo aquilo como uma fraude não compartilhava as crenças de Pratt e Johnson.
Apesar da insistência de Sean Slavin, o caso não pôde prosseguir porque a
legislação norte-americana tem uma lacuna nesses casos, o que permite que muitos
videntes e similares escapem impunes. O que o FBI conseguiu fazer foi iniciar
uma investigação fiscal em relação a Johnson, que declarava ganhar 4.000 dólares
por ano. Na verdade, em muitos meses Pratt enviava-lhe até 50.000.
A essa altura, a família já havia conseguido cortar o vínculo entre ambas,
embora a vidente não tenha deixado ir de qualquer maneira sua cliente mais
lucrativa. Passou a ligar para ela até que tiveram de mudar o número da casa. A
demência que Pratt já sofria começou a se acelerar e ela foi para uma casa de
repouso. Em 2018, um tribunal da Flórida condenou Johnson a devolver 3.567.300 à
vítima e outros 800.000 ao fisco, e condenou-a a 26 meses de prisão. Vera Pratt
já estava com a saúde muito deteriorada para saber disso. Morreu um mês depois,
com 82 anos. O jornal local, o Vineyard Gazzette, descreveu-a em seu obituário
como “pintora e filantropa”. “Será lembrada por seu altruísmo, suas vívidas
pinturas das paisagens de Martha’s Vineyard, seus belos jardins e seu amor pela
natureza”. A vidente Angela já saiu da cadeia e acredita-se que continue
praticando serviços de cura para clientes milionários.