A IGREJA E O FASCISMO


Como a Igreja Católica ajudou a consolidar o fascismo
O papa e Mussolini, do historiador americano David I. Kertzer, conta como Pio XI colaborou com Mussolini em troca de privilégios
RUAN DE SOUSA GABRIEL
12/05/2017 - 08h00 - Atualizado 12/05/2017 12h08

 

No dia 6 de fevereiro de 1922, Achille Ratti (1857-1939), o recém-eleito papa Pio XI, surgiu na sacada da Basílica de São Pedro para abençoar a multidão que se apinhava na praça. Os fiéis caíram de joelhos ao avistar o novo pontífice. Era a primeira vez que um papa aparecia em público desde 1870. Na ocasião, as tropas do rei Vítor Emanuel II tomaram Roma em nome da unificação italiana e reivindicaram a capital dos Estados Papais como capital do Reino da Itália. Os monarcas católico e italiano se transformaram em inimigos ferozes. Pio IX, papa na época, se autoproclamou “prisioneiro do Vaticano”, um título que seus sucessores tomaram por empréstimo, assim como o hábito de jamais passear ao ar livre e apenas abençoar as multidões escudado pelas paredes da basílica. Quase meio século depois, a aparição pública de Pio XI foi também um ato político. Não eram mais os soldados do rei que perseguiam a Igreja, mas os camisas-negras, tropas fascistas que saqueavam igrejas, espancavam católicos e forçavam padres a tomar óleo de rícino, provocando vergonhosa diarreia nos sacerdotes. O líder desses bandos de arruaceiros era Benito Mussolini (1883-1945), que trocara a bagunça das ruas pela liturgia parlamentar.

Mussolini ascendera ao Parlamento poucos meses antes da consagração de Pio XI e surpreendeu a todos com um discurso simpático ao catolicismo. Afirmou que Roma era o lar espiritual dos católicos de todo o mundo e que o fascismo ajudaria a promover os valores cristãos na sociedade italiana – um Estado católico para uma nação católica. Desde os tempos em que militara nas fileiras do socialismo, Mussolini fora um ateu dos mais furiosos e defendia com ardor a expropriação das propriedades eclesiásticas. No entanto, ele percebeu que a bênção de uma instituição tão enraizada na vida italiana como a Igreja Católica era essencial para quem sonhava em governar a Itália como os antigos papas governavam Roma. A história de como a Igreja Católica emprestou sua reputação para legitimar o regime fascista é contada no livro O papa e Mussolini: a conexão secreta entre Pio XI e a ascensão do fascismo na Europa, do historiador americano David I. Kertzer, estudioso da história política e religiosa da Itália. Kertzer debruçou-se sobre os arquivos do papado de Pio XI, abertos em 2006 por Bento XVI, para compor o livro, que venceu o Prêmio Pulitzer de melhor biografia em 2015 e acaba de chegar às livrarias brasileiras.

“O papa sabia que Mussolini era antirreligioso até o último fio de cabelo, mas viu nele a oportunidade de alcançar um acordo que restaurasse privilégios que a Igreja Católica gozava antes da unificação italiana”, disse Kertzer em entrevista a ÉPOCA. “O contexto histórico foi importante: ambos chegaram ao poder em 1922, apenas cinco anos depois da Revolução Russa. A disseminação do bolchevismo pela Europa aterrorizava o Vaticano e Mussolini pegou carona nesse sentimento anticomunista.” Em 1919, o cardeal Ratti, o futuro Pio XI, visitava a Polônia como diplomata do Vaticano quando o país foi invadido pelo Exército Vermelho. Ratti assistiu nervoso à contraofensiva polonesa que expulsou as tropas bolcheviques. A experiência foi traumática o suficiente para convencê-lo da fragilidade das democracias ocidentais para conter o mar vermelho do comunismo que ameaçava inundar a Europa. Por isso, não receou em unir sua cruz ao porrete dos fascistas para combater a foice e o martelo. “Nada é mais fatal para a civilização do que o comunismo. Em poucos dias, destrói a obra de séculos”, disse Pio XI ao embaixador da Bélgica.

Em nome da aliança com o poder, Pio XI abandonou o Partido Popular, a agremiação católica que representava os interesses da Igreja no Parlamento. Orientou também os fiéis a apoiar o fascismo e a imprensa vaticana a publicar elogios ao regime. Em seu discurso de posse como primeiro-ministro, em outubro de 1922, Mussolini invocou a ajuda de Deus, cujo nome nenhum chefe de governo italiano ousara pronunciar na tribuna desde a unificação. Levou ainda todo o seu gabinete para rezar de joelhos no Vaticano. Em 1924, quando militantes fascistas assassinaram o socialista Giacomo Matteotti por denunciar a fraude eleitoral de Mussolini, o Partido Popular se uniu à oposição para exigir a queda do primeiro-ministro e novas eleições. O papa repreendeu os parlamentares católicos e manteve o apoio a Mussolini, ajudando-o a superar a crise e consolidar seu poder.

Mussolini passou a baixar decretos que punham fim à separação entre Igreja e Estado. Mandou decorar todos os tribunais, salas de aulas e quartos de hospital italianos com crucifixos. Tornou crime insultar um padre ou falar mal do catolicismo e deu poder à polícia para demitir editores de jornais que criticassem o Vaticano. Incorporou feriados religiosos ao calendário e capelães católicos às Forças Armadas. Introduziu o ensino da religião católica no currículo escolar e restringiu as atividades dos protestantes. E destinou 3 milhões de liras para restaurar igrejas arruinadas pela Primeira Guerra Mundial. Em 11 de fevereiro de 1929, Mussolini e o cardeal Pietro Gasparri, secretário de Estado da Santa Sé e um dos aliados mais próximos de Pio XI, assinaram o Tratado de Latrão, no qual o governo italiano reconheceu a soberania política e territorial do Vaticano.

A amizade cada vez mais profícua de Mussolini com o ditador nazista Adolf Hitler forçou Pio XI a repensar a aliança católico-fascista. A perseguição nazista aos católicos alemães preocupava o papa. Se Mussolini importara até mesmo a legislação antissemita do nazismo, o que o impediria de se voltar contra a Igreja? “Quanto mais Mussolini se aproximava do nazismo, mais o papa se preocupava que ele se engajasse numa batalha contra os privilégios da Igreja, como fez Hitler”, afirma Kertzer.

Depois de quase duas décadas de aliança, Pio XI resolveu que a Igreja Católica se divorciaria do fascismo. Ele aproveitaria o décimo aniversário do Tratado de Latrão para denunciar a amizade de Mussolini e Hitler e alertar sobre a existência de espiões fascistas na burocracia vaticana – mas morreu antes de fazer seu discurso. Mussolini ordenou que todas as cópias do sermão-denúncia fossem destruídas e foi atendido pelo cardeal Eugenio Pacelli, futuro papa Pio XII, o controverso pontífice sobre quem pesam acusações de uma cumplicidade silenciosa com o nazifascismo.

É impossível saber quais teriam sido as consequências históricas do discurso de Pio XI, mas Kertzer afirma que, ao assumir uma posição contra Mussolini, a Igreja Católica poderia ter ajudado a esconjurar o regime que um dia abençoara. “Cerca de 99% dos italianos eram católicos. O papa e a maioria dos cardeais eram italianos. Pio XI tinha muita influência na Itália e, se ele tivesse instruído os padres a denunciar também a aliança nazifascista e orientar os fiéis, isso com certeza afetaria o curso da história italiana”, diz.

A histórica aliança católico-fascista ilustra a responsabilidade política de instituições tão sólidas e influentes como a Igreja Católica diante do avanço do autoritarismo. Quando surgem messias políticos prometendo salvação para as massas sem esperança, as reli­giões podem oferecer uma liturgia que agrade aos déspotas e embriague o povo, como fez Pio XI, ou reafirmar seus melhores valores para exorcizar a tirania, como faz o papa Francisco. Quando há novas tentações autoritárias pairando sobre o mundo, nem mesmo aqueles preocupados com os assuntos da eternidade podem se calar.
<https://epoca.globo.com/cultura/noticia/2017/05/como-igreja-catolica-ajudou-consolidar-o-fascismo.html>

 

O crucifixo no tribunal da nossa corte suprema, as aulas de religião nas escolas, etc. têm aí suas raízes.  Mussolini, assim como Hitler, foram a grande inspiração para o uso da religião por chefes do poder político que vez ou outra nos ameaçam.

 

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