INFLAÇÃO E DÍVIDA PÚBLICA
A
inflação e a dívida pública
Economia e Infra-Estrutura
*
Maria Lucia Fattorelli
Qui, 16 de Junho de 2011 11:11
É evidente que toda a sociedade apoia o controle da inflação, porém, os
instrumentos utilizados pelo Banco Central não estão de fato combatendo a alta
de preços, mas se prestam a promover uma brutal transferência de recursos
públicos para o setor financeiro privado, a elevadíssimo custo, tanto
financeiro como social
Em razão da marca negativa deixada pela inflação galopante dos anos 1980 até
início dos anos 1990, não foi difícil convencer a população, parlamentares e
poderes constituídos de que o país necessitava de um "Regime de Metas de
Inflação".
Na realidade, tal regime foi imposto pelo FMI, em ambiente econômico
afetado por crises financeiras que abalaram diversas economias no final da
década de 1990.
A opção do governo brasileiro por recorrer ao Fundo em 1998 abriu caminho para a
interferência da instituição em diversos assuntos internos do país, entre eles a
exigência de que a definição de metas inflacionárias deveria ser uma das
principais diretrizes da política monetária. Colocando em prática o compromisso
assumido com o FMI, foi editado o Decreto 3.088, em junho de 1999, estabelecendo
a sistemática de "metas de inflação" como diretriz para fixação do regime de
política monetária.
Na mesma época, o Banco Central editou a Circular 2.868/99, por meio da qual
criou a taxa Selic e, desde então, tem utilizado a referida taxa de juros como
instrumento de controle da inflação, forçando sua elevação toda vez que a
expectativa de alta de preços ameaça superar as metas estabelecidas.
Outro instrumento colocado em prática pelo Banco Central para regular a inflação
tem sido o controle do volume de moeda em circulação, realizando as chamadas
"operações de mercado aberto", por meio das quais entrega títulos da dívida
pública às instituições financeiras em troca de eventual excesso informado pelos
bancos, de moeda nacional ou estrangeira.
Dados oficiais demonstram o equívoco desses dois instrumentos utilizados pelo
Banco Central:
1. A elevação da Selic não ajuda a controlar o tipo de inflação de preços
existente no país. Tal medida tem servido para elevar continuamente as já
altíssimas taxas de juros, impactando no crescimento acelerado da dívida
pública, além de prejudicar a distribuição de recursos para todas as áreas do
orçamento e impedir investimentos na economia real.
2. As operações de mercado aberto estão servindo para trocar dólares
especulativos que ingressam no país, sem controle, por títulos da dívida pública
que pagam os juros mais elevados do mundo. Tal mecanismo
tem provocado
megaprejuízos operacionais ao Banco Central − R$ 147 bilhões em 2009 e R$ 50
bilhões em 2010 −, o que representa significativo dano ao patrimônio público.
É evidente que toda a sociedade apoia o controle da inflação, porém, os
instrumentos que vêm sendo utilizados pelo Banco Central não estão de fato
combatendo a alta de preços, mas se prestam a promover uma brutal transferência
de recursos públicos para o setor financeiro privado – nacional e internacional
– a elevadíssimo custo interno, tanto financeiro como social, e por isso
precisam ser revistos.
Selic não controla a inflação
A teoria ortodoxa que defende a elevação da taxa de juros como remédio para
controlar a inflação se aplicaria somente quando a alta de preços decorresse de
excesso de demanda. Em tese, a elevação dos juros tentaria dificultar o consumo
e frear a demanda, buscando conter a subida de preços provocada pelo excesso de
procura dos produtos e serviços.
Essa teoria não é unânime, pois, mesmo diante de processo inflacionário causado
por excesso de demanda, a solução recomendável não seria a elevação dos juros,
pois essa alta provoca aumento dos custos financeiros das empresas, que são
repassados aos preços dos produtos. Além disso, juros altos provocam a
queda dos investimentos de longo prazo em novas plantas produtivas. Isso
reduz a oferta futura de produtos e serviços, dando margem a leituras
equivocadas de que a demanda estaria mais alta que a oferta, o que justificaria
novas elevações de juros em um círculo vicioso e danoso para a economia.
No Brasil, ao contrário do que alegam governo e rentistas,
a inflação atual não
é causada por suposto excesso de demanda, mas tem sido provocada por
contínuos e elevados reajustes dos preços de alimentos e preços administrados,
tais como combustíveis, energia elétrica, telefonia, transporte público,
serviços bancários. Esses itens afetam todos os preços de bens e serviços
vendidos no país, pois fazem parte da composição de seus custos. Adicionalmente,
o preço dos alimentos e demais preços administrados não são reduzidos quando o
governo promove uma elevação da taxa Selic.
Para combater esse tipo de inflação – denominada inflação de preços –, o
remédio adequado é o efetivo controle de tais preços, o que poderia ser feito
pelo governo sem grandes dificuldades, já que estamos falando justamente de
preços administrados, que em tese devem ser geridos pelo poder público.
O problema é que a maioria desses setores passou pelo processo de privatização –
cuja justificativa, na década de 1990, era o pagamento da dívida externa. Em
mãos privadas, a reivindicação de lucros cada vez maiores leva ao fornecimento
de serviços cada vez mais caros. É o caso, por exemplo, da
telefonia no Brasil, que após a privatização passou a
ser a mais cara do mundo, ao mesmo tempo que é campeã de reclamações
dos consumidores. As empresas de telefonia auferem lucros espantosos anualmente
e não realizam os investimentos necessários. O mesmo ocorre com empresas de
energia elétrica e transportes públicos, serviços altamente lucrativos, em
decorrência do alto preço das tarifas cobradas. A elevação contínua desses
preços tem pesado no cômputo da inflação e não sofre redução quando os juros
sobem.
Os combustíveis, então, nem se fala: exercem influência direta na composição de
todos os preços e serviços no país. O preço da gasolina
é um dos maiores do mundo, apesar de nossa autossuficiência, das
recentes descobertas de imensas jazidas e dos significativos lucros da
Petrobras. A parcela dos lucros correspondentes às ações da Petrobras
vendidas ao setor privado é distribuída na forma de dividendos, mas a fração do
lucro correspondente ao capital estatal é destinada ao pagamento da dívida
pública. Isso porque a Lei 9.530 trata do privilégio na destinação de
recursos para o pagamento da dívida, determinando que todos os lucros das
estatais destinados ao governo, superávits financeiros e demais disponibilidades
de estatais, fundos e autarquias têm essa finalidade.
Da forma como está regulamentado o "Regime de Metas de Inflação",
toda vez que a inflação ameaça ultrapassar a meta
estabelecida (atualmente em 4,5% ao ano), seu controle é feito por meio da
elevação da taxa Selic, desconsiderando-se as verdadeiras causas do aumento de
preços no Brasil.
O resultado tem sido o crescimento explosivo da dívida pública, cujo montante
supera R$ 2,5 trilhões, enquanto o pagamento de juros e amortizações consumiu
45% dos recursos do orçamento federal em 2010, conforme mostra o gráfico.
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Dívida Pública, concluída em 2010
na Câmara dos Deputados, comprovou que as altas taxas
de juros foram o principal fator responsável pelo contínuo crescimento da dívida
pública, apesar dos vultosos pagamentos anuais de juros e
amortizações. A CPI comprovou que a dívida pública brasileira não tem
contrapartida real em bens ou serviços, mas se multiplica em função de
mecanismos e artifícios meramente financeiros, bem como da incidência de "juros
sobre juros", o que configura "anatocismo", prática considerada ilegal pelo
Supremo Tribunal Federal.
Em resumo, as mesmas autoridades monetárias que defendem
a elevação das taxas de juros com a justificativa de
controle inflacionário permitem contínua elevação nos preços administrados, o
que é um total contrassenso. Adicionalmente, os órgãos de
defesa da livre concorrência não têm conseguido combater adequadamente os
cartéis privados que também afetam a formação dos preços.
Como são definidas as taxas de juros
A CPI da Dívida realizou importante e inédita investigação sobre aspectos do
endividamento interno e externo brasileiro, tendo se dedicado também a
investigar como são determinadas as taxas Selic, já que
os juros são o principal responsável pelo crescimento
acelerado da dívida brasileira.
O Banco Central informou à CPI que para estabelecer o patamar das taxas de juros
não utiliza fórmulas científicas, mas realiza consultas a "analistas
independentes", em reuniões periódicas. O resultado dessas reuniões constitui o
fundamento para a definição da Selic pelo Comitê de Política Monetária (Copom),
pois nelas são apresentadas estimativas sobre a evolução futura de variáveis
como inflação, evolução de preços e taxa de juros.
A CPI requereu ao Banco Central os nomes dos participantes dessas reuniões. A
resposta permitiu confirmar o que já se esperava: a
imensa maioria deles (95%) faz parte do setor financeiro, ou seja, são
representantes de bancos, fundos de investimento ou consultores de mercado.
São justamente os maiores interessados nas elevadas taxas de juros, que lhes
proporcionam elevados lucros, configurando evidente conflito de interesses.
O mais grave é que muitos desses participantes das reuniões do Banco Central são
também os mesmos analistas consultados por grandes meios de comunicação, que
passam a alardear temores relacionados ao temerário crescimento da inflação e a
necessidade de combater tal previsão, recomendando sempre a elevação das taxas
de juros como se fosse o único remédio eficaz para frear o retorno
inflacionário.
Em poucos dias de governo, ao mesmo tempo que a presidente Dilma Rousseff
procedeu ao contingenciamento recorde de R$ 50 bilhões para fazer "ajuste
fiscal", a taxa Selic subiu três vezes com a justificativa de que tal medida era
necessária para reduzir o ritmo da atividade econômica, diminuir a demanda e
controlar a inflação.
As operações de mercado aberto
Desde a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o Banco Central ficou
proibido de emitir títulos da dívida brasileira, o que é feito exclusivamente
pelo Tesouro Nacional. Na prática, essa proibição não tem valor, pois o
Tesouro emite títulos e os entrega ao Banco Central, sem qualquer contrapartida
ou limite, para que aquela autarquia exerça a política monetária.
A justificativa para essa prática, que dribla a LRF, é, mais uma vez, a
necessidade de o Banco Central "enxugar" o excesso de moeda em circulação, tendo
em vista que isso pode provocar inflação.
O volume dessas operações de mercado aberto já ultrapassa a cifra dos R$ 500
bilhões, e estatísticas oficiais costumam não incluir esse valor no saldo da
dívida, com a justificativa de que seriam títulos da dívida em poder do Banco
Central. Isso não corresponde à realidade, pois tais títulos são entregues aos
bancos em troca do "excesso de moeda" nacional ou estrangeira e fazem parte dos
compromissos assumidos pela República.
Desde que o dólar começou a se desvalorizar em todo o mundo, o volume dessas
operações de mercado aberto passou a aumentar aceleradamente, pois os
especuladores viram o gatilho acionado pelo "Regime de Metas de Inflação" como
uma tremenda oportunidade para trazer seus dólares para o Brasil e trocá-los
por títulos da dívida pública brasileira, que pagam os maiores juros do mundo,
isentos de qualquer tributo, podendo fugir do país quando bem entenderem,
engordados pela variação cambial.2
Como esse gatilho é acionado? O Banco Central acompanha o volume das reservas
bancárias – principalmente depósitos e saldos de caixa – dos bancos e das
instituições financeiras instaladas no país. Se esse volume supera determinado
patamar, entende-se que há excesso de moeda em circulação que precisa ser
enxugado a fim de evitar o risco inflacionário. Para diminuir esse excesso, o
Banco Central realiza as chamadas operações de mercado aberto, entregando
títulos da dívida aos bancos e ficando com a moeda excedente, que ultimamente
pode ser representada por montanhas diárias de dólares que vêm para o país em
busca do negócio mais generoso do mundo: troca de dólares por títulos da dívida
brasileira.
Por sua vez, o Banco Central fica com os dólares e os
destina às Reservas Internacionais, que já superam US$ 300 bilhões e não rendem
quase nada ao país, pois estão aplicadas em grande parte em títulos da dívida
norte-americana, que pagam juros próximos de zero. Além disso,
ainda temos de arcar com os custos de senhoriagem.
Conforme citado anteriormente, esse mecanismo tem sido um dos principais
responsáveis pelo enorme prejuízo operacional do Banco Central – R$ 147 bilhões
em 2009 e R$ 50 bilhões em 2010 –, que é repassado para o Tesouro Nacional e
pago com recursos do orçamento que deixam de ser destinados ao atendimento de
necessidades urgentes do povo brasileiro, ou pago mediante a emissão de mais
títulos da dívida pública.
Em resumo, para combater o risco inflacionário, estamos "enxugando" o excesso de
moeda que evidentemente não decorre de superaquecimento da atividade econômica
no país, mas de movimento especulativo que tem beneficiado escandalosamente o
setor financeiro nacional e internacional, cujos lucros batem recordes anuais e
superam dezenas de bilhões de dólares.
Com essas reflexões, verificamos a necessidade urgente de rever a política
monetária vigente no país. Com o rótulo de combater a
inflação, estamos garantindo os maiores lucros do mundo ao setor financeiro
privado, por meio da escandalosa transferência de recursos públicos que fazem
muita falta no combate à infame miséria que acomete mais de 100 milhões de
brasileiros. Estes nem sequer têm acesso a saneamento básico, apesar
de arcarem com pesada carga tributária embutida em todos os produtos de primeira
necessidade que conseguem comprar com esmolas, Bolsa Família ou pífios salários.
Alternativas para o efetivo combate à inflação existem
e são muito mais eficientes: redução da taxa de juros; controle e redução dos
preços administrados; reforma agrária para garantir a produção de alimentos não
sujeitos à variação internacional dos preços de commodities; controle de
capitais para evitar o ingresso de capitais abutres, meramente especulativos, e
fugas nocivas à economia real; adoção de medidas tributárias apropriadas ao
controle de preços. Para que essas medidas sejam adotadas, é necessário
enfrentar o endividamento público, cancro que adoece nosso rico país e impede o
curso da Justiça.
Notas:
1- Dados do IBGE sobre a inflação de janeiro a abril de 2011 comprovam que 73%
da inflação verificada no período e medida pelo Índice Nacional de Preços ao
Consumidor Amplo (IPCA) foi causada por problemas de oferta de alimentos ou por
preços administrados pelo próprio governo. Na expressiva parcela de 73% está
considerada a variação dos preços de alimentação, taxa de água e esgoto,
transporte público, combustíveis de veículos, educação, plano de saúde, energia
elétrica, telefonia, serviço bancário. Interessante observar que até mesmo o
setor bancário – que mais se beneficia com a elevação da Selic, pois é aquele
que detém a maior parte dos títulos da dívida – promoveu a elevação de suas
tarifas em 5,46% no período, número muito acima da média geral da inflação
estabelecida, de 3,23%. Tal fato denota a contradição entre o discurso e a
prática do referido setor.
2- A variação cambial tem favorecido os investidores e especuladores que trazem
dólares para o Brasil e convertem tais dólares em reais, aplicando-os na Bolsa
ou em títulos da dívida. Considerando que o dólar tem se desvalorizado
continuamente em relação ao real, decorrido algum tempo, quando resgatam suas
aplicações e as reconvertem a uma taxa de dólar mais baixo, obtêm um volume de
dólares bem maior.
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Maria Lucia Fattorelli, graduada em Administração e Ciências Contábeis, é
Auditora Fiscal da Receita Federal desde 1982, coordenadora da Auditoria Cidadã
da Dívida e membro do CAIC (Comisión para la Auditoría Integral de Crédito
Público) criada pelo Presidente Rafael Correa em 2007.
<http://socialismo.org.br/portal/economia-e-infra-estrutura/101-artigo/2093-a-inflacao-e-a-divida-publica>