O LADO OBSCURO
DO MILAGRE ECONÔMICO
O lado obscuro do ‘milagre econômico’ da ditadura: o boom da desigualdade
Mesmo com o forte crescimento e criação de empregos no período militar, os
salários foram achatados e a distância entre ricos e pobres cresceu
São Paulo 28 NOV 2017 - 22:05 CET
Ditadura militar brasileira
Inauguração da Ponte Rio-Niterói. Reprodução
O Brasil polarizado tem reproduzido uma frase que estava na boca de alguns
saudosistas de tempos em que notícias sobre violência e economia em marcha lenta
pareciam raras. “Na época dos militares era melhor”, tornou-se bordão de quem
viveu aqueles anos, e ignora a repressão e a presença de censores nos jornais da
época para filtrar notícias negativas à ditadura. A ideia ressurgiu inclusive
entre jovens que se anunciam eleitores do pré-candidato à presidência Jair
Bolsonaro, por acreditar que no tempo do regime militar o Brasil era mais
alentador do que os dias atuais. Bolsonaro alimenta essa ideia tecendo elogios
ao período. Entre os argumentos mais utilizados pelo candidato e pelos
defensores da intervenção para mostrar a eficácia do regime está a conquista do
"milagre econômico", que ocorreu no Brasil entre 1968 e 1973. De fato, nesta
época, o país conseguiu crescer exponencialmente, cerca de 10% ao ano, e
atingiu, em 1973, uma marca recorde do Produto Interno Bruto (PIB), que aumentou
14%. O avanço veio acompanhado também de uma forte queda de inflação. A taxa,
medida na época pelo Índice Geral de Preço (IGP), caiu de 25,5% para 15,6% no
período.
O que não se explica diante desse número, entretanto, é o fato de o crescimento
ter sido muito bom para empresários, e ruim para os trabalhadores. Para que o
plano de crescimento funcionasse, os militares resolveram conter os salários,
mudando a fórmula que previa o reajuste da remuneração pela inflação,
o que
levou a perdas reais para os trabalhadores. A adoção de uma medida tão impopular
só foi possível através do aparato repressivo do regime sobre os sindicatos, que
diminui o poder dos movimentos e de negociação dos operários. Os militares
também interferiram em diversos sindicatos, muitas vezes substituindo seus
dirigentes. “Foi um crescimento às custas dos trabalhadores”, explica Vinicius
Müller, professor de história econômica do Insper. O arrocho salarial acabou
aliviando os custos dos empresários e permitiu reduzir a inflação.
A melhora na atividade econômica se explicava, à época, por uma combinação de
fatores. Uma conjuntura mundial mais favorável naqueles anos permitiu crédito
externo farto e barato, por exemplo. O Brasil, por sua vez, criou regras que
facilitaram a entrada de capital estrangeiro e investiu num programa de
desenvolvimento do parque industrial além de reformas estruturais. O crescimento
foi acompanhado pela abertura de novos postos de emprego no mercado formal e da
expansão do consumo interno. Economistas ouvidos pelo EL PAÍS explicam que o
milagre aconteceu principalmente regado a dinheiro internacional que aterrissou
através da entrada de multinacionais que encontraram no Brasil um terreno
propício para a expansão sob a tutela dos militares, e também por empréstimos
advindos de fundos internacionais. Era um ambiente oposto ao do período anterior
ao golpe de 1964, quando a grande convulsão política, em plena guerra fria, no
país tornava o ambiente econômico incerto e afugentava o investidor.
Problemas sociais
Como a distribuição dos resultados do crescimento econômico foi bastante
desigual, a concentração de renda também aumentou muito no período,
especialmente entre a população que possuía um grau maior de instrução. Isso
fez
com que a desigualdade social conhecesse níveis nunca vistos antes. Em 1960,
antes da ditadura, o índice de Gini, utilizado para medir a concentração de
renda estava em 0,54 (o coeficiente de Gini vai de 0 a 1, quanto mais perto de
1, mais desigual) e pulou para 0,63 em 1977. Os economistas foram unânimes em
dizer que os empresários e a classe média que possuía maior nível de instrução
foram beneficiados em detrimento da parte mais pobre da população.
Os altos índices de crescimento do PIB vividos enquanto a ditadura esteve
instalada no país também não foram acompanhados de uma melhora nos indicadores
sociais. Foi exatamente o oposto do que aconteceu.
Além disso, como o governo militar fez uma escolha de investir maciçamente na
industrialização, inclusive do campo, muitas pessoas decidiram abandonar o
sertão com o sonho de tentar uma vida melhor na cidade, incentivando um êxodo
rural sem planejamento e nunca revertido. Segundo o IBGE apenas 16% da população
morava no interior do país em 2010.
O crescimento econômico durante a ditadura começou a ser alavancado durante o
Governo de Castelo Branco, que adotou um ambicioso programa de reformas para
equilibrar as contas públicas, controlar a inflação e desenvolver o mercado de
créditos. Batizado de Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), ele foi
responsável por reformas fiscais, tributárias e financeiras. Castello Branco
implementou diversas medidas no sentido de incentivar um maior grau de abertura
da economia brasileira ao comércio e ao movimento de capitais com o exterior. A
partir de 1964, também foram introduzidos na legislação brasileira diversos
mecanismos de incentivos às exportações.
Mas foi no Governo do general Emílio Garrastazu de Médici, sob o comando do
então ministro da Fazenda, Antonio Delfim Netto, que o projeto econômico teve
como princípio o crescimento rápido, com expressivo aumento da produção – com
destaque para indústria automobilística- e grandes obras de infraestrutura. “O
Governo apostou em grandes obras e investimento estimulando o setor privado e
usando o crescimento como propaganda para legitimar o regime durante a época
mais repressiva da ditadura. Era muito importante que ele tivesse apoio de uma
parte da sociedade”, explica Muller.
Foi nessa época que nasceu o primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (IPND).
O plano investiu principalmente na construção de estradas e obras de
infraestrutura, como por exemplo, a Ponte Rio-Niterói (começou em 1969 e foi
inaugurada em 1974) e a nunca terminada rodovia Transamazônica.
Crise do petróleo
Na crista do ciclo do crescimento, a economia brasileira tão dependente de
empréstimos estrangeiros, passou a enfrentar certa dificuldade quando uma forte
crise econômica abalou o cenário internacional: o choque do petróleo. Conflitos
entre países membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep)
derrubaram a oferta do insumo entre 1973 e 1974, fazendo os preços quase
quadruplicarem no período (o barril subiu de três dólares para11,60), afetando
países importadores como o Brasil.
“Com a crise internacional de 1973, temos uma quebra deste modelo econômico
baseado no alto endividamento externo e, com isso, a economia vai perdendo
força”, afirma o historiador Pedro Henrique Pedreira Campos, professor da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Como a estabilidade
econômica era um argumento essencial para a manutenção do governo militar, os
economistas que faziam parte do regime optaram por não abrir mão do modelo e
decidiram que o país deveria continuar crescendo a qualquer custo, mesmo que
continuasse se endividando cada vez mais.
Foi nesse contexto que surgiu o segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (IIPND),
este ainda mais ousado que o primeiro, que investiu especialmente na criação e
expansão de empresas estatais. A Petrobras ganhou subsidiárias, a usina
hidrelétrica de Itaipu foi construída, mostrando o quanto a geração de energia
era uma bandeira importante naquele momento em que o Brasil ainda não tinha uma
matriz energética estabelecida e necessitava da importação desse bem.
Muller destaca que “os militares tinham planejamento a longo prazo” e que a
ideia inicial era de que o país ficasse independente da importação de energia e
começasse a gerar renda com a sua produção própria, essa renda seria utilizada
para saldar a dívida externa. O plano deles, entretanto, não contava com a
retração das maiores economias que, em determinado momento, chegaram para cobrar
a fatura. A crise se prolongou mais do que o Governo imaginava.
Mas a conta do crescimento desenfreado baseado em um alto grau de endividamento
ficou para a redemocratização. Ao deixarem o poder em 1984, a dívida
representava 54% do PIB segundo o Banco Central, quase quatro vezes maior do que
na época que eles tomaram o poder em 1964, quando o valor da dívida era de 15,7%
do PIB. A inflação, por sua vez, chegou a 223%, em 1985. Quatro anos depois, o
país ainda não tinha conseguido se recuperar e ostentava um índice de inflação
de 1782%. No jargão econômico, costuma-se dizer que os militares deixaram uma
“herança maldita”.
“Embora o regime tenha aparelhado muito bem grande parte do nosso parque
industrial, melhorado em aspectos técnicos e tecnológicos a infraestrutura,
quando veio a conta, a conta veio muito alta”, explica Guilherme Grandi,
professor da Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA/USP)”
Os militares e a corrupção
Outra percepção recorrente é a de que no período da ditadura não havia
corrupção. “Vários estudos já comprovaram que existia corrupção e era mais fácil
que esses malfeitos ocorressem porque não havia investigação”, ressalta Grandi.
Segundo ele, a relação promíscua entre interesses privados e órgãos públicos foi
aprimorada nesse período.
Pedreira Campos é autor do livro Estranhas Catedrais: as empreiteiras
brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988 que analisa mais profundamente
essa relação. “Houve vários casos de corrupção na ditadura, principalmente no
período da abertura envolvendo agentes do estado que foram acusados de se
apropriar de recursos públicos”.
A ausência de notícias sobre corrupção no período tem também outra explicação.
O
Brasil viveu sob um regime de censura que foi estabelecida nos meios de
comunicação que estavam orientados a publicar notícias que fossem favoráveis ao
governo. E é por conta dessa propensão a maquiar a realidade que notícias
denunciando escândalos de corrupção não estampavam a manchete dos jornais. “Um
cenário como esse é ideal para a prática da corrupção,
os indícios são de que
havia mais corrupção naquele período”, completa Pedreira Campos.
<https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/29/economia/1506721812_344807.html>
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