Belo Horizonte, capital mineira, tem pouco mais de um século
de existência, mas apesar disso coleciona mistérios como
poucas outras cidades brasileiras conseguem fazer. Não faz
muito tempo, a pesquisadora Heloísa Starling, da
Universidade Federal de Minas Gerais, falando sobre o
assunto, explicou que os relatos dessas manifestações do
além servem, de alguma forma, para a população compensar as
dificuldades encontradas no cotidiano. Segundo os
esclarecimentos da professora, os vivos, através dos seres
de outros mundos, fantasiam um meio de voltar ao passado
para compensar algo do presente, ou então os utilizam para
estabelecer uma ponte entre o que é natural e sobrenatural.
Uma dessas narrativas tem ligação com o cemitério do Nosso
Senhor do Bonfim (ilustração), situado no bairro do
mesmo nome e próximo à região central da cidade. Inaugurado
em 08/02/1897, sua construção resultou de uma determinação
da Comissão Construtora da Nova Capital, que proibira os
sepultamentos no adro da Matriz de Nossa Senhora da Boa
Viagem. Na época, ordenou-se a utilização de um cemitério
provisório no espaço onde hoje cruzam as ruas Rio de
Janeiro, Tamoios, São Paulo e Tupis, sendo o definitivo - o
do Bonfim - erguido numa área além do perímetro urbano
traçado pela comissão construtora (delimitado pela atual
avenida do Contorno), ocupando uma área de aproximadamente
170.036 metros quadrados, num lugar denominado "Alto dos
Meneses".
A lenda da “loira do Bonfim” começou por volta das décadas
de 1940 e 1950, e segundo informações contemporâneas,
tratava-se de uma mulher que aparecia por volta das duas
horas da madrugada, sempre vestindo roupas brancas,
insinuando-se junto aos boêmios que aguardavam condução no
ponto de bonde existente diante de uma drogaria, no centro
da cidade. Dizia que morava no Bonfim, que estava afim de um
programa, e quando alguém se interessava, ela o levava para
o cemitério do bairro, desaparecendo assim que chegavam
àquele local. Como às vezes a criatura preferia chamar um
táxi, os motoristas desses veículos de aluguel, além dos
motorneiros e condutores dos bondes, passaram a não aceitar
a escala de trabalho no horário noturno. Não era por medo,
diziam eles, mas sim por precaução...
Existem, porém, algumas variações sobre essa história
fantasmagórica: na pri-meira delas, a loira é apenas um
vulto meio indefinido que aparece aos freqüentadores das
regiões boêmias existentes nas imediações do bairro do
Bonfim; uma segunda versão diz que ela, na verdade, não tem
a intenção de seduzir qualquer homem, limitando-se a chamar
um táxi e pedir ao seu motorista que a leve ao alto do
Bonfim, onde desaparece dentro do cemitério tão logo o
veículo pare diante de seu portão de entrada; a terceira diz
que certa noite a loira procurou a delegacia policial
existente no atual bairro da Lagoinha, vizinho ao do Bonfim,
e pediu que um dos policiais a acompanhasse até sua casa, no
que foi atendida: mas o detetive quase morreu de susto
quando descobriu que o destino da moça era o cemitério. Seja
como for, o fato é que, na época, os comentários sobre a
misteriosa mulher apavoraram muitos moradores da capital
mineira, que simplesmente deixaram de sair de casa após
certa hora da noite.
O poeta Carlos Drummond de Andrade faz menção a esse mito
belo-horizontino em seu poema “Canção da Moça-Fantasma de
Belo Horizonte”, incluído no livro “O Sentimento do Mundo”,
cujos versos dizem:
Eu sou a Moça-Fantasma / que espera na Rua do Chumbo / o
carro da madrugada. / Eu sou branca e longa e fria, / a
minha carne é um suspiro / na madrugada da serra. / Eu sou a
Moça-Fantasma. / O meu nome era Maria, /
Maria-Que-Morreu-Antes. / Sou a vossa namorada / que morreu
de apendicite, / no desastre de automóvel / ou suicidou-se
na praia / e seus cabelos ficaram / longos na vossa
lembrança. / Eu nunca fui deste mundo: / Se beijava, minha
boca / dizia de outros planetas / em que os amantes se
queimam / num fogo casto e se tornam / estrelas, sem ironia.
/ Morri sem ter tido tempo / de ser vossa, como as outras.
(...) As moças que ainda estão vivas / (hão de morrer, ficai
certos) / têm medo que eu apareça / e lhes puxe a perna...
Engano. / Eu fui moça, Serei moça / deserta, per omnia
saecula. / Não quero saber de moças. / Mas os moços me
perturbam. / Não sei como libertar-me. / Se o fantasma não
sofresse, / se eles ainda me gostassem / e o espiritismo
consentisse, / mas eu sei que é proibido / vós sois carne,
eu sou vapor. / Um vapor que se dissolve / quando o sol
rompe na Serra. / Agora estou consolada, / disse tudo que
queria, / subirei àquela nuvem, / serei lâmina gelada, /
cintilarei sobre os homens. / Meu reflexo na piscina da
Avenida Paraúna, / (estrelas não se compreendem), / ninguém
o compreenderá.
Em 1998 o cineasta Ricardo Horta aproveitou o tema e
produziu em Belo Horizonte um filme 16mm, colorido, com 10
minutos de duração, contando a história de um rapaz
fascinado e ao mesmo tempo aterrorizado por esse mito. Por
sua vez, Miguelanxo Prado (Corunha, Galiza, 1958), escritor
e ilustrador galego de banda desenhada, produziu “Belo
Horizonte” para a coleção Cidades Ilustradas, da editora
Casa 21, obra lançada em 2003, cujo enredo trata de uma
mulher loira que morava no cemitério do Bonfim, e por quem o
protagonista - um espanhol enviado a Belo Horizonte por sua
empresa - se encheu de amores.
Lacarmélio Alfeo de Araújo, quadrinista de rua da cidade de
Belo Horizonte, tem uma história da qual participa a Loira
do Bonfim.. Sua principal obra é a revista Celton - cujo
personagem principal tem o mesmo nome -, produzida desde
1998. As histórias da revista têm como palco Belo Horizonte
ou sua região metropolitana, e são contadas com riqueza de
detalhes típicos da região. Lendas locais, como a Loira do
Bonfim ou o Capeta do Vilarinho compõem os roteiros de
Celton, juntamente com temas atuais. Desde 1998, o autor -
que já foi até assunto do Globo Repórter - lançou 15
edições, totalizando cerca de 400 mil exemplares vendidos.
Este texto também foi
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FERNANDO KITZINGER DANNEMANN