Quando vamos moralizar o Poder?
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RUTH DE AQUINO é colunista de ÉPOCA [email protected] (Foto: ÉPOCA) |
Presidente e ministros reduzirão em 30%
seus salários, “para dar o exemplo”.
Apertarão seus próprios cintos, cortarão
na própria carne. Isso acontecerá longe
daqui, na França. Será a primeira medida
do governo socialista de François
Hollande. Não resolve a crise francesa.
Mas carrega um tremendo simbolismo. São
34 novos ministros neste governo que já
começarão ganhando um terço a menos que
seus antecessores.
(Época, 21 de maio de 2012, pg. 114)
É, Ruth de Aquino, muito bonito o que
fez o presidente francês. Mas
aqui, embora a você pareça haver algum
bom exemplo, estamos a anos-luz de
distância dos franceses. Pois
longe reduzir o próprio salário, a nossa
Presidenta (como gosta de ser
chamada), aprovou para si mesma os 145%
de aumento que os parlamentares
decidiram no ano passado. Agora,
como você deve bem saber,
ela fez um
decreto reduzindo, foi o salário dos
médicos, e nós, funcionários públicos,
estamos há seis anos sem recomposição
das nossas perdas.
Infelizmente, eu votei nela, não porque
achasse que ela fosse ser boa para nós,
mas porque sabia que o outro candidato
seria pior. Todos que chegam à
Presidência se torna inimigo dos
funcionários, atribuindo a nós tudo de
ruim que vem de suas próprias políticas.
E não é só isso.
A equipe do governo – 17 homens e 17
mulheres – assinou um texto de duas
páginas que lista seus “deveres”. O
texto é público. Foi divulgado pelo
jornal Le Monde na quinta-feira. Alguns
itens seriam muito bem-vindos no Brasil.
A ideia geral é afastar qualquer
suspeita de conflito de interesse e
acabar com essa mistura desavergonhada
entre o público e o privado.
O código de conduta de Hollande obriga
ministros a renunciar a postos
executivos anteriores a sua nomeação no
governo. Inclui também a recusa a todos
os convites particulares, de empresários
ou amigos influentes. E a devolução de
qualquer presente com valor superior a €
150 (R$ 375). O texto desce a detalhes
do dia a dia, como o meio de transporte:
em trajetos inferiores a três horas,
ministros terão de usar o trem.
Mais regras. Os ministros terão de
confiar “a gestão de seu patrimônio a um
procurador”. Isso impede que tirem
proveito de informações confidenciais do
mercado para enriquecer ilicitamente. Na
hipótese de uma viagem pessoal e
familiar, serão obrigados a “se abster
de aceitar convites de governos
estrangeiros ou de pessoas físicas ou
jurídicas cuja atividade tenha relação
com sua pasta ministerial”. Deverão
renunciar a “qualquer participação num
organismo, mesmo aqueles sem fins
lucrativos, cuja atividade seja de
interesse a seu ministério”. Os
ministros também estão proibidos de
“qualquer intervenção que envolva a
situação de um parente ou amigo
próximo”. Nada de nepotismo e tráfico de
influência, em bom português.
Deveríamos, como os franceses, enfrentar
os desvios e abusos que desmoralizam
nossos governantes
O documento lembra a toda a equipe –
incluindo presidente, primeiro-ministro
e ministros – que “só as despesas
diretamente ligadas ao exercício de suas
funções podem ser pagas pelo Estado”.
Uma das regras provocaria um auê no
Brasil: “À exceção de uma circunstância
específica que exija uma escolta de
motocicletas, os deslocamentos dos
ministros em carros terão de respeitar
as regras de trânsito normais, que se
aplicam a qualquer cidadão”. No Brasil,
helicópteros estão sempre à disposição
de políticos que não fazem ideia da
angústia que é ficar preso num
engarrafamento.
Uau! Humilhante, não, excelentíssimos
políticos brasileiros. Para que fui me
meter na política, fiz concessões
absurdas, contrariei princípios, gastei
rios de dinheiro em campanha, comprei
votos, para, no final, ser despido de
meus privilégios de senhor da
casa-grande e senzala? Que terrível deve
ser a vida do homem comum.
As regras do “Estado imparcial”
prometido por François Hollande foram
criadas com um objetivo: dar satisfação
aos cidadãos que exigem transparência do
poder público. O texto foi chamado de
“código de deontologia”. Uma palavra
pouco conhecida, que vem do grego.
“Deon” significa “dever, obrigação”. Por
isso, a deontologia é conhecida como a
Teoria do Dever. Mas é sobretudo o dever
moral, da consciência de cada um. É a
ética individual, que leva alguém,
político ou não, a fazer algumas
escolhas na vida.
No Brasil, num momento histórico em que
se discute a Comissão da Verdade,
deveríamos ter a mesma coragem para
enfrentar os desvios, os abusos e a
falta de bons modos que desmoralizam
governadores, prefeitos, ministros e
congressistas. O Executivo deu um bom
exemplo na quinta-feira: Dilma mandou
divulgar os salários dos servidores do
governo federal, com base na Lei de
Acesso à Informação Pública. Chega de
torturar a verdade, tornando-a secreta.
Vamos moralizar o Poder.
O Legislativo e o Judiciário não
gostaram da ideia. Sarney, presidente
vitalício do Senado, ficou sem fala nem
ação. Marco Maia, presidente da Câmara,
também. Carlos Ayres Britto, presidente
do Supremo Tribunal Federal, se juntou
ao bloco dos temerosos. Eles acham que
expor os salários à nação pode ferir a
intimidade e a segurança dos servidores.
Contem outra.
O decreto do Executivo é claro. Devem
ser revelados os ganhos de todos os
ocupantes de cargos públicos. E isso
inclui aquele manancial de benefícios
conhecidos: “auxílios, ajudas de custo,
jetons, vantagens, pensões e
aposentadorias de quem continua na
ativa”. Verba para combustível, passagem
aérea, moradia, correio, escritório,
diárias de viagem e não sei mais o quê.
Uma caixa-preta mantida até hoje sob
sigilo. Por vergonha, será?