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MULTIMISTURA VERSUS
ALIMENTOS INDUSTRIALIZADOS
"A
vitória dos enlatados
Governo troca mistura nutricional consagrada há décadas por produtos
industrializados
HUGO MARQUES, 19.Set.07 - 10:00
PIONEIRA Há mais de três décadas Clara Brandão criou um composto alimentar que
revolucionou a nutrição infantil
A cena foi comovente. O vice-presidente José Alencar preparava-se para plantar
uma árvore em Brasília quando foi abordado por uma nissei de 65 anos e 1,60 m de
altura. Era manhã da quinta-feira 6. A mulher começou a mostrar fotografias de
crianças esqueléticas, brasileiros com silhueta de etíopes, mas que tinham sido
recuperadas com uma farinha barata e acessível, batizada de “multimistura”.
Alencar marejou os olhos. Pobre na infância no interior de Minas, o vice não
conseguiu soltar uma palavra sequer. Apenas deu um longo e apertado abraço
naquela mulher, a pediatra Clara Takaki Brandão. Foi ela quem criou a
multimistura, composto de farelos de arroz e trigo, folha de mandioca e
sementes de abóbora e gergelim. Foi esta fórmula que, nas últimas três
décadas, revolucionou o trabalho da Pastoral da Criança, reduzindo as taxas de
mortalidade infantil no País e ajudando o Brasil a cumprir as Metas do Milênio.
E o que a pediatra foi pedir ao vicepresidente? Que não deixasse o governo tirar
a multimistura da merenda das crianças. Mais do que isso, ela pediu que o
composto fosse adotado oficialmente pelo governo. Clara já tinha feito o mesmo
pedido ao ministro da Saúde, José Gomes Temporão – mas ele optou pelos compostos
das multinacionais, bem mais caros. “O Temporão disse que não é obrigado a
adotar a multimistura”, lamenta Clara.
Há duas semanas a energia elétrica da sala de Clara dentro do prédio do
Ministério da Saúde foi cortada. Hoje, ela trabalha no escuro. “Já me avisaram
que agora eu estou clandestina dentro do governo”, ironiza a pediatra. Mas ela
nem sempre viveu na escuridão. Prova disso é que, na semana passada, o governo
comemorou a redução de 13% nos óbitos de crianças entre os anos de 1999 e 2004 –
período em que a multimistura tinha se propagado para todo o País.
Desde 1973, quando chegou à fórmula do composto, Clara já levou sua multimistura
para quase todos os municípios brasileiros, com a ajuda da Pastoral da Criança,
reduto do PT. Os compostos da multimistura têm até 20 vezes mais ferro e
vitaminas C e B1 em relação à comida que se distribui nas merendas escolares de
municípios que optaram por comprar produtos industrializados. Sem contar a
economia: “Fica até 121% mais caro dar o lanche de marca”, compara Clara.
Dra. Clara Terko Takaki Brandão
A Dra. Clara Terko Takaki Brandão é filha de imigrantes japoneses,
residentes no Brasil, e cresceu em uma chácara em Taboão da Serra, na
capital paulista. Teve uma infância muito simples. Para pagar as
despesas, ela e a família carregavam água, plantavam hortaliças e
frutas, fabricavam tijolos, cortavam e carregavam lenha, criavam,
abatiam e vendiam galinhas, porcos e coelhos e ainda dividiam a casa com
pensionistas.
Seus pais exigiam um bom rendimento escolar, mas, quando cursava o 1°
ano do Ensino Médio, teve que interromper os estudos para trabalhar.
Anos mais tarde concluiu o Ensino Médio em curso supletivo. Seu
professor de Biologia inscreveu-a no vestibular de Ciências Naturais,
atualmente, Biologia. Foi a terceira colocada na prova e cursou o
primeiro ano de faculdade com aprovação. No ano seguinte, passou no
vestibular para Medicina da Faculdade da Santa Casa. Continuou com as
aulas de Biologia durante a noite. Nas horas vagas, fazia bicos em troca
de dinheiro e comida. Pouco tempo depois, passou no vestibular de
Medicina da USP e ainda conquistou a única vaga que dava direito a
hospedagem, alimentação e uniformes. Formou-se em Medicina pela USP, em
1969, com especialização em Pediatria e, posteriormente, como nutróloga.
Começou a participar de trabalhos voluntários quando ainda cursava o
Ensino Médio. Durante a faculdade e a residência na pediatria do
Hospital das Clínicas, continuou engajada com esse tipo de serviço.
Depois de formada e casada, mudou-se para a cidade de Miracema do
Tocantins – TO. Lá montou, juntamente com o marido – também médico – e
outros colegas de profissão, o primeiro Centro de Educação e Recuperação
Nutricional, em 1972. A seguir viveu em Altamira – PA, na
Transamazônica, e em Santarém – PA.
Em 1975, em Santarém, motivada pela seca que produzia um grande número
de desnutridos, iniciou pesquisas sobre as preparações alimentares
regionais disponíveis. Criou, então, a ONG SEARA – Sociedade de Estudos
e Aproveitamento da Amazônia, que, com o apoio do Programa Casulo da LBA
– Legião Brasileira de Assistência, montou 13 creches que chegaram a
atender 390 crianças. No cardápio elaborado para as creches, sempre
valorizou uma preparação única, com muita variedade e enriquecida com um
concentrado de minerais e vitaminas. Assim nasceu a Multimistura.
Em quatro meses, usando cardápios enriquecidos e de alto valor
nutritivo, baixo custo, paladar regionalizado, preparo fácil e rápido e
que, acima de tudo, podia ser reproduzido em casa, as crianças se
recuperavam. Desde 1976, a SEARA continua esse trabalho, mesmo após a
extinção da LBA.
www.multimistura.org.br/biografia.htm |
Quando ela começou a distribuir a multimistura em Santarém, no Pará, 70% das
crianças estavam subnutridas e os agricultores da região usavam o farelo de
arroz como adubo para as plantas e como comida para engordar porco. Em 1984, o
Unicef constatou aumento de 220% no padrão de crescimento dos subnutridos. Dessa
época, Clara guarda o diário de Joice, uma garotinha de dois anos e três meses
que não sorria, não andava, não falava. Com a multimistura, um mês depois Joice
começou a sorrir e a bater palmas. Hoje, a multimistura é adotada por 15 países.
No Brasil só se transformou em política pública em Tocantins.
Clara acredita que enfrenta adversários poderosos. Segundo ela, no governo, a
multimistura começou a ser excluída da merenda escolar para abrir espaço para o
Mucilon, da Nestlé, e a farinha láctea, cujo mercado é dividido entre a Nestlé e
a Procter & Gamble. “É uma política genocida substituir a multimistura pela
comida industrializada”, ataca a pediatra. A coordenadora nacional da Pastoral
da Criança, Zilda Arns, reconhece que a multimistura foi importante para
diminuir os índices de desnutrição infantil. “A multimistura ajudou muito”, diz.
“Mas só ela não é capaz de dizimar a anemia; também se deve dar importância ao
aleitamento materno.” ISTOÉ procurou as autoridades do Ministério da Saúde ao
longo de toda a semana, mas nenhuma delas quis se pronunciar. “O multimistura é
um programa que não existe mais”, limitou-se a informar a assessoria de
imprensa.
http://www.istoe.com.br/reportagens/2931_A+VITORIA+DOS+ENLATADOS
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