CHRISTOPHER HITCHENS,
escritor, colunista da revista
Vanity Fair, autor e colaborador regular do New York Times
e The New York Review of Books. Escreve quinzenalmente em
ÉPOCA
"Eis uma pequena experiência de como pensar
sobre ética prática. Suponha que você está tomando um drinque com um
recém-conhecido e surge o assunto sobre atos ilegais, e ele lhe pergunta:
“Já teve algum problema com as autoridades?”. Você pode talvez mencionar ter
sido preso em uma manifestação ou passado na alfândega com excesso de
produtos do free shop. Ou lembrar aquele encontro desagradável com
traficantes, aquela tentativa infeliz de informação privilegiada na Bolsa.
Seu parceiro pode mostrar maior proximidade
com a Justiça. Uma vez cumpriu pena por falsificação ou por uma briga
doméstica que saiu um pouco de controle. Talvez vocês ainda possam almoçar
na próxima sexta-feira. Mas aí ele diz: “Bem, eu conhecia um casal que
confiou em mim para tomar conta dos seus filhos. Dois meninos, um de 12 anos
e outro de 10. Eu me divertia bastante com eles quando ninguém estava
olhando. Disse que era nosso segredo. Fiquei triste quando tudo acabou”.
Espero que eu não dê a impressão de julgar precipitadamente se disser que, a
essa altura, o almoço está cancelado ou adiado indefinidamente. “Sou um
padre católico, e não incomodamos a polícia ou os tribunais com isso. Nós
cuidamos de nós mesmos.”
Você sentiria alguma repulsa a mais ou a menos
se o homem continuasse a conversa assim?
É exatamente sobre isso que somos forçados a
ler todos os dias. A felicidade e a saúde de incontáveis crianças foram
sistematicamente destruídas por homens que podiam contar com seus chefes
clericais para protegê-los contra a retaliação legal e, ao que parece, até
mesmo da condenação moral. Um pouco de “terapia” ou uma mudança repentina de
localidade era o pior que a maioria deles tinha a temer.
Quase toda semana debato com porta-vozes
religiosos. Invariavelmente, eles me dizem que, sem uma crença na autoridade
sobrenatural, eu não teria base para minha moral. Ainda assim, eis uma
antiga igreja cristã que lida com certezas terríveis na hora de condenar
pecados como divórcio, aborto e homossexualidade. Para isso não há perdão, e
o absolutismo moral é invocado. Se o assunto for estupro de crianças, porém,
haverá todo tipo de invenção de desculpas.
Se houvesse uma apuração séria das
denúncias de pedofilia,
o próprio papa Bento XVI teria de depor.
É interessante também que a mesma igreja fez
tudo o que pôde para esconder o estupro e a tortura das autoridades
seculares, até forçando as vítimas crianças (como no caso do cardeal
irlandês Sean Brady) a assinar juramentos de sigilo que as impediam de
testemunhar contra quem as violentou. Por que eles teriam tanto medo da
justiça secular? Até agora, o cardeal Brady e muitos como ele não foram nem
dispensados pela Igreja nem processados pelo poder civil. Quando vamos ver o
que pais e parentes das crianças devastadas querem e precisam ver: um
cúmplice importante do encobrimento realmente diante de um júri?
A carta lamentável e eufemística do papa Bento
XVI para seu “rebanho” na Irlanda nem sequer propõe que tais pessoas
deveriam perder sua posição na Igreja. Essa precaução covarde tem um bom
motivo: se houvesse uma investigação séria, ele mesmo teria de depor. Quando
era apenas o arcebispo Joseph Ratzinger, Bento XVI protegeu um padre
criminoso perigoso em sua diocese de Munique e Freising, em 1980, mandando-o
fazer “terapia” em vez de pedir sua prisão. Não contente com isso, Ratzinger,
já então cardeal e prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé do
Vaticano, divulgou uma carta na qual instruía todos os bispos a não cooperar
com nenhuma investigação interna, entre elas a de abuso sexual cometido por
padres.
Dezoito das 27 dioceses católicas romanas da
Alemanha estão agora enfrentando investigações do governo. A ministra alemã
da Justiça, Sabine Schnarrenberger, disse que a Igreja ergueu “um muro do
silêncio”. Esse muro, idealizado por quem hoje comanda a instituição,
precisa ser derrubado. O líder supremo da Igreja é agora, à primeira vista,
suspeito de uma empreitada criminosa e da tentativa de obstruir a Justiça. A
instauração de processos precisa seguir, ou senão vamos admitir que há
homens e instituições que estão acima e além de nossas leis." (Revista
Época, 29/03/2010, pág. 78).