NASCIMENTO
DOS DEUSES
Os deuses já povoaram
as mentes da humanidade desde antes de o homem se tornar homem. É do
instinto animal sentir a presença de outro animal ao ouvir qualquer ruído.
E aí está o embrião dos deuses.
A origem da religião e o nascimento
dos deuses
seg, 02/08/10
por Alysson Muotri
Para Charles Darwin, a origem da religião não era segredo. “Assim
que os importantes traços cognitivos relacionados à imaginação, questionamentos
e curiosidade juntam-se ao poder do raciocínio, o homem passa a desejar a
conhecer as razões dos fenômenos que o cercam, especulando vagamente sobre sua
própria existência…”, escreveu Darwin em “The Descent of
Man”, na minha tradução livre.
No entanto, a “fé” sempre causou perplexidade a Darwin.
Toda sociedade humana teve deuses. Sejam góticos, mitológicos ou maias,
eles sempre estiveram presente. Em todas as culturas, os homens colocam esforços
significativos na elaboração de catedrais, rituais. Sem nenhuma vantagem
aparente na sobrevivência ou reprodução da população. Então, porquê e como a
religião surgiu?
Não existe consenso entre os especialistas, mas novas ideias estão surgindo com
a junção das disciplinas de arqueologia e estudos da mente. Esse campo emergente
explora a hipótese de que a religião seria uma consequência natural da mente
humana. Ou seja, os caminhos evolucionários que teriam
criado nosso sofisticado cérebro, também teriam sido responsáveis pela crença no
sobrenatural.
A afirmação é baseada em dados recentes que sugerem que os
humanos teriam a tendência de procurar sinais de “agentes”, ou mentes como a
nossa, no mundo natural. Em paralelo, arqueólogos buscam indícios de
religião através da relação com outra atividade cognitiva humana: o
comportamento simbólico levando a sociedades mais complexas. Esses dois campos
tem se desenvolvido muito, mas a distância entre as evidências físicas
arqueológicas e os modelos teóricos da neurociência ainda é enorme.
Através de objetos achados durante escavações arqueológicas, cientistas tentam
unir o uso de símbolos com a emergência da espiritualidade humana. Cerca de 100
mil anos atrás, povos no sul da África, nas cavernas de Blombos, rabiscaram
figuras geométricas em alguns objetos. Apesar de não ser possível associar esses
registros com religião, é razoável pensar que o pensamento simbólico seria um
pré-requisito para o comportamento espiritual.
Num período próximo, cerca de 95 mil anos atrás,
encontrou-se esqueletos humanos em Qafzeh, Israel, sugerindo rituais de velório.
Neandertais, há uns 65 mil anos atrás, também velavam seus
mortos em algumas circunstâncias. Seriam essas as primeiras evidências de
uma angústia metafísica?
Talvez tudo isso seja muito subjetivo para alguns, mas as pinturas dos caçadores
da era do gelo são mais convincentes. Cerca de 30-35 mil
anos atrás na Europa, temos o florescer do expressionismo simbólico, no período
conhecido como a explosão do Paleolítico Superior.
Pinturas bem realísticas, retratando criaturas –
meio-homem meio-animal – foram encontradas nas paredes das cavernas
de Grotte Chauvet, na França. Também foram achadas pequenas esculturas em
cavernas da Alemanha, incluindo uma “Vênus” e três
“Homens-leão”, os primeiros seres quimeras.
A tal da Vênus ilustra bem a dificuldade em se conciliar as interpretações dos
pesquisadores. Se por um lado, a mulher sem cabeça, com
seios fartos e uma detalhada genitália é considerada como uma deusa da
fertilidade, por outro lado, outros a consideram um típico exemplo de “paleo-porno”.
Afinal, assim como a religião, a pornografia também sempre esteve presente em
qualquer sociedade humana.
Ainda seguindo pistas arqueológicas, templos de 11 mil anos atrás foram achados
em Gobekly Tepe, na Turquia. Ali, encontraram-se diversas esculturas de animais
selvagem, indícios de velórios e de remoção do crânio. Mesmo assim, é difícil
vincular esses achados com a adoração a deuses, a não ser que as culturas
comecem a chamá-los por nomes específicos. Nesse caso, nos resta as culturas
literárias da Mesopotâmia e Egito, cerca de 5 mil anos atrás. Nesses impérios,
fica claro o poder e temor aos deuses nas escrituras.
Teriam sido doutrinados a crer ou já teriam nascidos crentes?
Segundo as novas ideias que estão emergindo de um modelo de religião cognitivo,
humanos seriam tão especializados em compreender sinais e desejos de outros que
se tornaram supersensíveis a “agentes” causadores. Essa sensibilidade seria uma consequência de uma hipertrofia cognitiva social, criando uma tendência em nosso
cérebro de atribuir a um outro ser eventos estocásticos ou fenômenos naturais.
Seríamos intuitivamente teístas por natureza.
Pesquisas recentes têm mostrado que crianças em idade pré-escolar preferem
explicações teológicas a mecanísticas no que se refere a fenômenos naturais.
Quando questionadas se as pedras seriam pontiagudas porque são constituídas por
pequenas quantidades de matéria ou para proteção de animais que queiram
sentar-se nelas, as crianças optam pela última explicação. Elas buscam uma
qualidade animada para a pedra.
O valor de estudar isso em crianças é que elas podem distinguir melhor o que é
inato do que é cultural. Mas é interessante notar que testes semelhantes, feitos
em adolescentes sob pressão de responder rápido, resultaram em dados
semelhantes. Pode ser que, sob pressão, nosso cérebro haja instintivamente,
optando por explicações não científicas.
Essa disposição criacionista ecoa junto com uma outra tendência do cérebro
humano: nosso supersensível detector de “agentes”, isto é, a capacidade de
procurar por seres racionais mesmo em objetos inanimados. Num clássico
experimento da década de 40, psicólogos notaram que pessoas assistindo animações
de círculos, triângulos e quadrados tinham a inclinação de associar as formas
geométricas a personagens, até mesmo criando narrativas em eventos aleatórios.
É o famoso barulho no meio da noite. Pensamos logo: quem está aí? É uma pergunta
que surge quase instantaneamente. A tendência de procurarmos um agente pode ter
sido programada em nosso cérebro pela evolução através de uma seleção natural
que favoreceu falsos positivos. Afinal, um barulho no meio da noite pode muito
bem ser um ladrão (ou um leão), nos colocando em estado de alerta.
Logicamente que isso está longe de ser uma explicação para a crença em deuses ou
espíritos. Outra peça cognitiva que se encaixa perfeitamente nessa ideia vem da
“teoria da mente” (conceito já discutido em colunas anteriores). A teoria da
mente nada mais é do que a capacidade que temos de entender que um outro ser
também tem uma mente, com intenções, desejos e crenças dela mesma.
Essa capacidade é desenvolvida com o tempo, sabe-se que só a adquirimos por
completo depois dos 5 anos de idade, e nos auxilia a navegar nas complicadas
relações sociais humanas. Enquanto o cérebro de um chimpanzé esta programado
para lidar com relações pessoais num grupo de 50 indivíduos, o humano pode
encarar até 150 pessoas.
Mas se já suspeitamos que um agente é o responsável por um evento misterioso,
estamos a um passo pequeno para começarmos a imaginar que esse agente tem uma
mente que funciona de forma semelhante à nossa. Oras, é lógico que o ladrão
tropeçou no meio da noite procurando algo pra roubar. Elevando-se esse conceito
a uma dimensão mais sofisticada, chegamos a uma rica representação do que deve
ser a mente de um Deus. Passamos a atribuir desejos, paixões, ódio e vingança a
um “agente-Deus”, da mesma forma que as sentimos.
Além disso, devemos estar também programados para não aceitar a morte da mente.
Experimentos com crianças, mostrando um boneco de rato sendo engolido por um
boneco de jacaré, mostrou que elas entendem a morte carnal, isto é, compreendem
que o rato não precisa mais se alimentar, por exemplo. Mas falham em identificar
a morte da mente.
Continuam a achar que o rato pode ter fome ou que estaria preocupado com seu
irmão, indicando a persistência do estado psicológico, mas não físico. A
separação da mente e corpo é comum em muitas religiões, retratada na vida após a
morte ou reencarnação, sugerindo que talvez seja um fator humano universal na
sua essência.
Nosso cérebro social pode explicar porque crianças são atraídas por animais
falantes e fadas voadoras, mas religião é muito mais que isso. Derivar crenças a
partir da arquitetura cognitiva da mente é, sem duvidas, necessário, mas não
suficiente.
A velha alternativa continua valendo: a religião promove um comportamento
cooperativo entre indivíduos desconhecidos e assim cria grupos estáveis capazes
de adaptação em circunstâncias mais desafiadoras, como o frio intenso ou
escassez de alimento. A religião melhoraria a sobrevivência e reprodução de seus
membros.
Em suporte dessa ideia, vale lembrar que os homens são mais propensos a um
comportamento altruísta e solidário se sabem que estão sendo vigiados. Dessa
forma, a presença onipotente de um Deus supernatural e preocupado com a
moralidade serve de estímulo ao comportamento altruísta, especialmente em grupos
grandes ou quando o anonimato é possível. Mas existem poucas evidências
científicas de que esse é realmente o caso. Faltam estudos investigando se os
indivíduos realmente seguem todos os princípios da religião a que pertencem.
Acompanho essa discussão há um tempo e acredito que os objetos arqueológicos
respondem apenas a um pedaço das questões e os modelos cognitivos ainda estão
muito baseados em especulações. Mesmo assim, a forma como diferentes disciplinas
têm convergido para a resolução desse problema sugere um aumento no interesse
sobre o assunto.
Espero ver uma transformação nos próximos dez anos, com novas evidências e mais
dados apontando para o porquê e como as religiões de fato surgiram e dominam
sociedades humanas.
http://g1.globo.com/platb/espiral/2010/08/02/190/
Minhas análises me
levam a retroceder um pouco mais na origem dos deuses. Um animal da
savana, ao ouvir um rugido, sabe que próximo está um leão, porque já viu um
leão. Mas, ao ouvir um trovão, deve vir à sua cabeça a imagem de um animal muito
mais poderoso do que o grande felino. Assim, um ser desconhecido
relacionado aos fenômenos da natureza é algo sentido pelo instinto animal, e
essa noção de ser invisível sobrenatural já deve ser existente desde antes de o
homem ser homem. E, ao desenvolver a fala e começar a dar nomes às coisas,
o que o homem primitivo deve ter feito é chamar de deus esse ser invisível que
vocifera pelo trovão. Os selvagens do nosso país acreditavam em Tupã, o
deus do trovão; os antigos povos escandinavos tinham Thor, o deus do trovão; e
até os autores bíblicos tinham o trovão como a voz de Yavé. Aí está a
origem dos deuses: supostos seres autores dos fenômenos naturais, que todos os
animais imaginam e temem, e o homem passou a adorar e tentar agradar com
sacrifícios.
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