ANDRÉ GIDE, O IMORALISTA
02/1/2010
O imoralista
Lançamento de quatro livros do francês André Gide permite avaliar a atualidade das ideias de um dos mais influentes intelectuais da primeira metade do século passado
João Paulo
REPRODUÇÃO |
|
"É com consciência que atinjo a morte solitária. Saboreei as delícias da terra. É agradável para mim pensar que depois de mim, graças a mim, os homens se reconhecerão mais felizes, melhores e mais livres. Pelo bem da humanidade futura, realizei minha obra. Vivi." (André Gide) |
O nome de André Gide
(1869-1951) não é muito conhecido do leitor brasileiro de hoje. Mesmo com
grande parte de sua obra traduzida (com exceção de seus Diários, talvez a
maior realização confessional do século 20), seu estilo clássico e seus
temas parecem pertencer a outro momento. Tão longe e tão perto. Com a nova
edição de quatro livros do autor de uma só vez, em novas traduções e com um
conto inédito não publicado em vida (“O pombo-torcaz”), a reavaliação da
importância do escritor pode ser tomada quase como um balanço de geração.
André Gide foi mentor da juventude europeia entre as duas grandes guerras.
Depois dele, apenas Sartre ocupou com tanta importância os corações e mentes
dos jovens em busca de caminhos. E é bom lembrar que Gide não era guia
sereno, mas mestre do inconformismo.
A grande tarefa de sua longa e conturbada existência foi dar conta de
problemas ligados a religião, política, estética e sexualidade. Enfim, um
programa completo dos desafios humanos. À abrangência de seus interesses se
somava o clima de uma época marcada pelo desassossego e ceticismo. André Gide, com seus livros, foi compondo, passo a passo, a trilha existencial da
primeira metade do século 20, atuando como o mais improvável condutor de
consciências.
Individualista, quis libertar o homem para que pensasse por si mesmo;
homossexual, não apenas assumiu sua opção como escreveu livros corajosos em
defesa de suas escolhas;
comunista, foi capaz de desafiar o conservadorismo
e fazer autocrítica depois de conhecer a experiência real da União
Soviética, que rejeitou; de expressão ao mesmo tempo clássica e
experimental, deu o passo ousado que permitiu à literatura avançar além do
simbolismo; pleno de mistério, assumiu o
anticlericalismo e ateísmo como uma
questão fundamental da alma;
hedonista, pesquisou com sinceridade o campo da
moral e dos limites da animalidade que nos habita.
Gide era ainda um burguês que detestava a família (vem dele o mais profundo
grito contra a instituição, da qual fugiu e retornou inúmeras vezes como
filho pródigo), um homem rico que se sensibilizou com o destino miserável da
grande parte da humanidade, um puritano do antipuratismo. Todos esses
momentos, que parecem apresentar contradições, na verdade se realizam em
sínteses possíveis e precárias. Sua maior obra foi a sua vida. Dos embates
com sua sexualidade ao casamento casto com a prima que amou desde a
adolescência, seguido da defesa da pederastia que fez dele um monstro para
parte de seus contemporâneos, tudo foi construído por Gide de forma real,
por meio de experiências pessoais e reflexão pública. A alma na praça. Mesmo
assim – ou talvez por isso mesmo – em 1947 ele recebeu o Nobel de
Literatura. Já era considerado um clássico.
Sua extensa obra foi sendo criada como resposta a cada uma das questões que
enfrentou no campo de batalha de sua consciência. Pode-se mesmo ler toda ela
como um grande e único livro, que seria a tradução literária de seus
Diários, obra monumental que escreveu durante várias décadas. Gide foi autor
de dramas, confissões, diálogos, ensaios, sátiras, cartas, tratados,
novelas, contos e um único romance, assim por ele definido, sua obra-prima
Os moedeiros falsos, que introduziu verdadeira revolução na técnica
literária contemporânea.
NO ABISMO
Os quatro volumes que chegam aos leitores brasileiros (a editora anuncia a
intenção de dar prosseguimento à publicação da obra gidiana, inclusive com
um compêndio de seus diários) se relacionam com quase todos os aspectos
fundamentais tratados pelo autor, com exceção da política. O mais importante
é o romance Os moedeiros falsos, que chega acompanhado de um volume
complementar, Diário dos Moedeiros falsos. O livro, por sua estrutura,
inaugurou a técnica que o escritor nomeou como mise en abime. Um jeito de
narrar que ao mesmo tempo conta a história, fala de uma história que está
sendo contada e se distancia dela como quem comenta um fato externo. Algo
que hoje faz parte da literatura mais convencional, foi fruto do esforço
romanesco de Gide, que, assim, ampliou as possibilidades do romance. No
livro, o personagem, que também é escritor, está escrevendo um romance, que
se chama exatamente Os moedeiros falsos. A ele se soma um diário do
escritor, que é também composto pelo personagem, que vai comentando a obra
de ficção que vai sendo criada.
O enredo foi baseado em dois casos reais, colhidos por Gide em jornais da
época (1918, logo depois da Primeira Guerra): o suicídio de um aluno dentro
da sala de aula e a descoberta de uma quadrilha de rapazes que passam moedas
falsas. Os personagens desse caleidoscópio, Édouard, Bernard e Olivier,
representam os impasses de uma juventude em crise que quer ir além das
convenções, impulsionada por inconformismo, revolta, perversão e erotismo. O
romancista parece passear entre todas as possibilidades da narrativa, sem
cair na armadilha do grande romance no modelo de Balzac e Tolstoi,
incorporando elementos do folhetinesco enquanto parece testar os limites da
literatura de ficção.
Para compreender “por dentro” o processo de criação do romance, o leitor
pode ir aos Diários dos Moedeiros falsos, um diálogo de Gide com seus
personagens, que foi sendo escrito ao longo do processo de elaboração do
livro. É um trabalho de bastidores, que polemiza com os personagens, mas que
também se revela como um caderno de estudos, que entrega alguns dos
mecanismos criados por Gide. Como na seguinte observação: “O estilo dos
Moedeiros falsos não deve apresentar nenhum interesse de superfície, nenhuma
saliência. Tudo deve ser dito da maneira mais chã, aquela que fará com que
certos charlatães digam: o que é que você encontra para admirar aí dentro?”.
ATO GRATUITO
Outro livro do pacote Gide é a novela Os porões do Vaticano, de 1914. O
escritor classificou o livro (aliás, como fez com outras obras) como sotie,
uma espécie de farsa ou sátira. Isso explica os personagens meio
caricaturais e exemplares e o humor que deixa patente o prazer que deve ter
acompanhado a escrita. Na primeira parte do livro, o maçom Anthime
Armand-Dubois é um cientista que parece oscilar entre a fé e o ceticismo,
enquanto faz experiências com ratos e outros animais. Segue-se a
apresentação de Amédée Fleurissoire, católico que é pervertido e enganado, e
Julius de Baragliou, escritor que tenta escapar da mediocridade. Esses
fantoches meio abobalhados opõem-se ao herói ou anti-herói do livro,
Lafcadio, um homem absolutamente livre, um tipo gidiano exemplar. Surge
então o tema que se tornará depois clássico, o ato gratuito (no caso, atirar
um homem de um trem), que não é seguido de qualquer sensação de culpa, a
despeito de sua brutalidade ou bravata. O personagem, ao mesmo tempo em que
condena a hipocrisia, parece mergulhar na vaidade da busca da liberdade
absoluta e nos riscos do descompromisso. Inteligente, Gide não cai na
armadilha que ele mesmo enreda, o que o obriga, em seguida, a atacar a
hipocrisia de sua própria vida, ao expor sua homossexualidade em livros
fortes, Coridon e Se o grão não morre, que propõem, além do ato
confessional, até mesmo uma justificativa teórica de sua opção.
E é o tema do erotismo homossexual que percorre o conto “O pombo-torcaz”, a
novidade maior dos lançamentos gidianos. A narrativa é nitidamente
autobiográfica e fala do encontro do escritor, em 1907, com o jovem
Ferdinand, filho do empregado de um amigo do autor, que se encontrava
hospedado em Bagnois-de-Grenade. Gide narra com detalhes o envolvimento
erótico com o rapaz mais novo, que ele apelida de pombo-torcaz (ramier –
talvez o tradutor não precisasse de tanta exatidão ornintológica, já que
pombo bastaria), em razão de uma espécie de arrulho emitido durante o ato
amoroso. O relato lírico não foi publicado em vida por Gide, porque o moço
morreria poucos anos depois. O conto só foi publicado em 2002, por
iniciativa da filha do escritor, Catherine, que o encontrou entre os papéis
do pai adotivo. No prefácio, ela pergunta: “Poderá essa iniciação amorosa
ainda nos emocionar?”, para responder em seguida que considera o conto
“pleno de alegria de viver” e capaz de acrescentar algo a um tempo tão
marcado pela apresentação explícita do sexo. O imoralista havia se tornado
um exemplo de delicadeza. O volume tem prefácio de Jean-Claude Perrier e
longo posfácio de David Walker, que discute a questão da moral e sexualidade
na vida e obra do escritor.
Quando André Gide morreu, em 1951, Jean-Paul Sartre publicou o artigo “Gide
vivo”, síntese profunda e agradecida das batalhas do escritor. Sartre o
substituiria, mesmo a contragosto, como o mestre da França, em outro tempo e
com outras responsabilidades. Seu caminho para a liberdade foi ainda mais
radical, mas teve em quem se apoiar. Como reconheceu: “Gide é um exemplo
insubstituível porque escolheu tornar-se sua verdade. Decidido abstratamente
aos 20 anos, seu ateísmo teria sido falso; lentamente conquistado como
epílogo de uma procura de meio século, esse ateísmo torna-se sua verdade
concreta e a nossa. A partir daí, os homens de hoje podem tornar-se verdades
novas”. Gide e Sartre sabiam que religião, arte, política e sexualidade são
questões entre homens e homens, e não entre homens e deuses ou homens e
ideias. Liberdade é sempre uma questão de vida.
DE ANDRÉ GIDE
OS MOEDEIROS FALSOS
Editora Estação Liberdade, 424 páginas, R$ 62
Tradução de Mário Laranjeira
DIÁRIO DOS MOEDEIROS FALSOS
Editora Estação Liberdade, 114 páginas, R$ 31
Tradução de Mário Laranjeira
OS PORÕES DO VATICANO
Editora Estação Liberdade, 256 páginas, R$ 42
Tradução de Mário Laranjeira
O POMBO-TORCAZ
Editora Estação Liberdade, 96 páginas, R$ 28
Tradução de Mauro Pinheiro