O QUE É A DÍVIDA PÚBLICA
e para que serve
Os perigos de uma tática: a auditoria da dívida pública
Sofia Manzano*
23/09/2015
postado por dariodasilva
Muitas organizações de esquerda apresentam a auditoria da dívida pública como
uma das principais lutas dos trabalhadores contra a burguesia. Essas
organizações entendem que os pagamentos dos juros e as amortizações efetuadas
pelo Estado são uma das formas mais perversas de a burguesia se apropriar do
fundo público, principalmente em momentos de crise do processo de acumulação do
capital, e, com isso, impõe ao Estado o fim, ou a redução, das políticas
públicas voltadas à assistência da população.
Os Estados, para atenderem a esses compromissos, cortam aposentadorias e
pensões, reduzem verbas da educação e da saúde, precarizam os direitos dos
trabalhadores do setor público e reduzem o acesso dos trabalhadores em geral aos
serviços mínimos necessários para a reprodução da vida. E tudo isso está
correto. Mesmo nós, do PCB, aprovamos em nosso último congresso, a auditoria da
dívida pública brasileira sob controle popular. No entanto, devemos fazer uma
reflexão sobre essa tática e as armadilhas que ela apresenta.
A dívida pública
Em primeiro lugar, faz-se necessário esclarecer o que é, de fato, a dívida
pública e qual a sua função. Toda dívida pública, de qualquer país, surge com o
capitalismo. E o seu aparecimento não está diretamente relacionado com as
funções que o Estado assume para com a população em geral, ou seja, ao fornecer
serviços públicos (como aposentadorias, pensões, saúde, educação, segurança,
etc.), mesmo porque, os Estados eram muito “pequenos” no início do capitalismo,
ou na era do capitalismo concorrencial. Quer dizer, as funções do Estado estavam
quase que exclusivamente relacionadas à defesa dos interesses da burguesia
nascente e não havia sido, ainda, alvo de conquistas das lutas dos trabalhadores
que exigiram do Estado o fornecimento de serviços públicos sociais.
Nesse período, durante todo o século XIX pelo menos, as funções do Estado se
restringiam a fazer valer os contratos privados, controlar a moeda a fim de que
não houvesse crises monetárias sérias, a proteção das fronteiras e dos
interesses comerciais e industriais de cada uma de suas burguesias. Estamos aqui
tratando de Estados como a Inglaterra, França, EUA, Rússia, Alemanha.
É nessa conjuntura que a dívida pública se transforma em um poderoso instrumento
de acumulação de capital e de política pública para fazer valer os direitos da
burguesia. Um dos motivos para a centralização da moeda, ou seja, para o
controle da moeda por parte do Estado e não mais de bancos privados, como
ocorria anteriormente, é permitir ao Estado efetuar conjuntamente a política
monetária e fiscal e defender aqueles interesses anteriormente elencados. Assim,
é importante ressaltar que, apesar de o Estado ter gastos correntes a pagar que,
muitas vezes, não são suficientemente cobertos pela arrecadação tributária, a
dívida pública e sua importância não estão relacionadas a uma administração
pública que gastou mais que arrecadou.
É comumente veiculado pelos meios de comunicação a analogia entre a dívida
pública e a dívida de uma família qualquer. Esse trabalho ideológico tem por
objetivo camuflar e encobrir a diferença abissal que existe entre os ganhos e
gastos de uma família de trabalhadores e suas dívidas, e o processo de inversão
capitalista e o manejo das políticas fiscal e monetária por parte dos Estados.
Então, de onde vem a dívida pública?
A dívida pública ganha relevância como instrumento que serve para “acolher”
capitais oriundos dos processos de superprodução e que precisam se “valorizar”
fora da esfera produtiva. Marx, n´O Capital, já alertava para isso em meados do
século XIX, período em que os Estados não apresentavam déficits primários, ou
seja, não era por gastarem mais que arrecadavam que a dívida pública crescia.
Também Barry Einchengreen demonstra as diversas maneiras de como a burguesia se
utilizava dos títulos de dívida pública para ganhar com a arbitragem entre os
diferentes valores do ouro e da prata entre os países, já que no período
imperava o Padrão-Ouro como lastro do sistema monetário.
Desde então, a dívida pública cresce porque os capitalistas desejam adquirir
títulos públicos, vale dizer, a demanda por títulos é que faz a dívida aumentar,
e não os gastos do governo que fazem com que sejam ofertados títulos. Isso é
muito importante esclarecer, pois a ofensiva ideológica burguesa quer fazer crer
o oposto. A consequência dessa constatação é que para a burguesia seria uma
catástrofe se não houvesse dívida pública, não só porque ela não teria uma fonte
segura e fácil de “valorizar” seu capital ocioso, mas principalmente porque sem
a possibilidade de aplicar esse capital em títulos da dívida pública, restaria
apenas duas opções aos burgueses “superavitários”: investir na produção e
acelerar vertiginosamente a crise do capitalismo; ou retirar essa riqueza de
processo de acumulação, vale dizer, essa riqueza deixaria de ser capital,
morreria enquanto capital.
Assim é para a acumulação do capital e a manutenção do capitalismo que a dívida
pública existe. Mas além de ser um “ativo” demandado por essa burguesia
“superavitária”, a dívida pública também serve para controlar e/ou estabilizar a
taxa de câmbio, importante para a estabilidade dos negócios internacionais. Por
isso, muitos títulos públicos são vendidos para “enxugar” liquidez proveniente
de superávits cambiais ou para dar segurança às empresas que fazem transações
internacionais com relação ao valor das moedas (swaps cambiais).
Quanto à legalidade das transações envolvendo a dívida pública, diante do Estado
de Direito da burguesia, não há dúvida de que “legal”. Todas as operações
efetuadas, mesmo aquelas que envolvem a aquisição de títulos “podres” por parte
dos Bancos Centrais para qualquer finalidade, são legais. Durante o
desmoronamento do sistema financeiro estadunidense, em 2008 e 2009, o Federal
Reserve (FED – Banco Central dos EUA), adquiriu uma enormidade de títulos
hipotecários e outros “ativos” que já não valiam nada, a fim de evitar a
bancarrota e o colapso do sistema. Durante a recuperação monetária da Alemanha,
após o colapso do Marco durante a República de Weimar, o então presidente do
Banco Central Alemão do eleito governo Hitler, promoveu a rápida recuperação,
tanto da economia alemã, como da moeda, utilizando títulos da dívida pública
desvinculados de qualquer necessidade real de gasto do Estado, serviam apenas
como garantia para destravar o processo de acumulação capitalista. Esses e
muitos outros exemplos podem ser encontrados na curta história do capitalismo e
demonstram que a legalidade dos títulos públicos é inegável, tenham eles a
origem que for.
Por outro lado, uma auditoria da dívida pública, principalmente se for feita
pelos movimentos políticos que representam os interesses dos trabalhadores,
acaba por legitimar essa mesma dívida, pois aceita a lógica e as regras impostas
pelo sistema do capital.
A auditoria da dívida pública como tática política
Ao se perceber que a dívida pública é o mais poderoso instrumento de escoamento
do fundo público para os cofres da burguesia, segmentos dos trabalhadores e suas
representações políticas começaram a clamar pela investigação da origem e da
legalidade da dívida pública, que, nesse século XXI, tornou-se gigantesca em
quase todos os países. Incialmente, essa tática parece bastante importante, pois
poderia demonstrar que a dívida pública não teve origem em gastos públicos
reais, ou seja, aqueles vinculados ao fornecimento dos serviços públicos para a
população. Poderia também demonstrar que o mercado financeiro (mercado onde os
títulos públicos são negociados) usa de toda criatividade para transferir para o
setor público, “ativos” financeiros que já não tem valor para o setor privado.
Poderia até mesmo demonstrar que a dívida pública poderia ser paga, se a parte
considerada “podre” dessa dívida fosse descartada devido a uma suposta
ilegalidade. No entanto, essa tática é perigosa.
Em primeiro lugar porque, mesmo que se verifique que todos os títulos públicos
que compõem a dívida pública de um país não tenha sido vendido para arcar com
déficits primários (ou seja, gastos reais do governo, excluindo juros e
amortizações da própria dívida), eles são válidos diante das regras vigentes.
Mesmo que se verifique que parte, ou toda a dívida pública de um país, tenha
sido causada por aquisição de “ativos” financeiros considerados “podres” pela
iniciativa privada, como se constatou com a dívida pública da Grécia
recentemente, essas operações são legais e, diante do aparato jurídico
existente, não há o que se fazer a respeito disso.
Em segundo lugar, a tática política de se lutar pela auditoria da dívida pública
ajuda a confundir ainda mais os trabalhadores em considerar a dívida pública
como se fosse a sua própria dívida, portanto, se for constatada qual é a parte
dessa dívida que é “limpa”, essa deveria e seria legitimamente paga. Isso não só
seria inadmissível para a luta revolucionária dos trabalhadores como reforçaria
ainda mais os mecanismos ideológicos da burguesia que precisa criar a confusão
entre dívida pública e dívida pessoal.
Em terceiro lugar, o Estado não é neutro e serve à burguesia, portanto, não é
tarefa da classe trabalhadora gerir o Estado capitalista.
No final das contas, qualquer que seja o resultado dessa auditoria, ele só serve
para legitimar ainda mais esse perverso mecanismo de transferência de riqueza e
confunde a classe trabalhadora para a sua verdadeira luta.
No que diz respeito à dívida pública, cabe à classe trabalhadora exigir o NÃO
PAGAMENTO, o CALOTE, ou pelo menos exigir que o dinheiro do fundo público,
oriundo da tributação que na maioria dos países recai sobre esses mesmos
trabalhadores, não seja usado em hipótese alguma para pagar nem juros e nem
amortizar a dívida. Que, se a dívida existe, seu gerenciamento fique restrito à
própria ciranda financeira de onde ela foi criada, ou seja, que se pegue
dinheiro emprestado de outros capitalistas para pagar os capitalistas. Que
nenhum centavo do fundo público seja usado para pagar juros ou amortizações. Só
dessa forma essa tática poderia servir para colocar em xeque esse mecanismo de
enriquecimento da burguesia à custa dos trabalhadores e, ao mesmo tempo,
desvelar os mecanismos ideológicos que estão por trás da dívida pública.
*Sofia Manzano é economista e professora do Departamento de Ciências
Sociais Aplicada da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), autora do
livro Economia Política para Trabalhadores (São Paulo: ICP, 2013).
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