ORIGEM DO DEUS JUDAICO-CRISTÃO-MUÇULMANO
"Mais da metade dos seres humanos do planeta acredita num mesmo deus único, o
Deus com maiúscula dos cristãos, judeus e islâmicos. Mas esse deus tem uma
origem e uma história.
Por Eduardo Szklarz / ilustrações Evandro Bertol Publicado em 18/01/2013, às
14h48 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36
Conheça a origem de Deus
Arquivo Aventuras
Shemá Israel. Adonai Eloheinu, Adonai Echad
("Ouve, Israel. O Senhor é nosso Deus. O Senhor é um.")
Assim começa o Shemá, a reza mais importante do judaísmo. Ao repeti-la duas
vezes ao dia, os judeus professam sua fé exclusiva em Yahweh, deus único,
onipotente, onisciente. Esse é o deus mais popular do mundo: entre cristãos,
judeus e islâmicos, 3,6 bilhões de pessoas professam uma das versões do culto a Yahweh, mais de metade de todos os seres humanos. Qual é a origem desse Deus com
maiúscula, que dominou meio mundo? E de onde surgiu essa ideia que há apenas um
deus, ao contrário do que quase todos os povos acreditaram durante a História?
Segundo a Bíblia (e o Alcorão), é simples: Deus existe, e só ele. Yahweh reinou
desde sempre, tendo contato direto com os primeiros homens, de Adão até Noé,
quando o Dilúvio matou toda a humanidade menos sua família. Depois de Noé, seus
filhos se dividiram para repovoar o mundo e os povos passaram a cultuar outros
deuses, erroneamente. Há cerca de 4 mil anos, Deus se revelou a Abrão, um
sumério da cidade de Ur (no atual Iraque), que mudou o nome para Abraão. Após
milênios de desventuras, incluindo um período de escravidão no Egito, que
termina com as sete pragas de Moisés contra os egípcios, os descendentes de
Abraão conquistaram um pedaço de Canaã e fizeram dele sua pátria. Desde Abraão
até hoje, os hebreus seguem o mesmo deus.
Fenícios e hebreus
Canaã era um território que correspondia às terras de Israel, Palestina, Líbano,
Jordânia e Síria. Os cananeus se dividiam em pequenos reinos, como Moab,
Amon e Edom, e cidades-estado, como Tiro, Sidon e Biblos - os habitantes dessas últimas
ganharam dos gregos o apelido de "fenícios" e fundaram um império. Cananeus
falavam línguas semíticas muito próximas, usavam o mesmo alfabeto e cultuavam
mais ou menos os mesmos deuses. Cercados por todos os lados de pagãos cananeus,
falando quase a mesma língua e usando o mesmo alfabeto, mesmas roupas e mesmos
utensílios, viviam os hebreus, no Reino de Israel - que, no entanto, não se
consideravam cananeus. Ou ao menos não se consideravam na época em que a Tanakh
(o Velho Testamento) foi escrita, entre os séculos 6 e 5 a.C., contando sua
origem estrangeira.
Essa migração não foi confirmada pela arqueologia. Não há evidências de uma
grande colonização estrangeira na região. Não há menção egípcia ao cativeiro dos
hebreus. As campanhas militares do final da Era do Bronze tinham outros
protagonistas: os egípcios, que tratavam a região como seu quintal, e os povos
do mar (veja mais na página 48), que a invadiram pelo norte.
Em 1400 a.C.,
quando Josué teria conquistado Jericó, a cidade estava deserta havia 150 anos.
Em outras palavras, os hebreus não eram inimigos dos cananeus. Eles eram
cananeus. "O crescente consenso entre os arqueólogos é que, no início, a maioria
dos israelitas era cananeu", diz Robert Gnuse, professor de Velho Testamento na
Universidade de Loyola, EUA. "Aos poucos, as pessoas que desenvolveram uma
identidade israelita tenderam a viver no alto das colinas de Canaã. Já as que
mantiveram a identidade canaanita habitavam as planícies."
Deus e sua esposa
A Bíblia narra a história dos hebreus como a imposição de um deus estrangeiro a
pagãos canaanitas. "Graças ao relato bíblico, o monoteísmo da antiga Israel tem
sido considerado uma revolução contra o pensamento religioso de seus vizinhos",
diz Mark S. Smith, professor de Estudos Bíblicos na Universidade de Nova York,
no livro The Origins of Biblical Monotheism (As Origens do Monoteísmo Bíblico,
inédito no Brasil). "Porém, estudos mais recentes têm buscado situar a história
bíblica do monoteísmo em seu contexto cultural mais amplo", isto é, o contexto
do politeísmo canaanita.
Textos e artefatos encontrados em Ugarit (atual Ras Shamra, na Síria), datados
dos séculos 15 a 12 a.C., indicam que os hebreus cultuavam o panteão de deuses
cananeus. "As quatro camadas da sociedade humana - rei, nobres, camponeses e
escravos - eram espelhadas em quatro camadas de divindades", diz o historiador
canadense K. L. Noll no artigo Canaanite Religion ("Religião Cananita"). O topo
do panteão era ocupado por um deus chefe, El, e por sua esposa, Asherah. Abaixo
vinham os deuses cósmicos, como Baal e Anath, que controlavam a tempestade, a
fertilidade e outros aspectos naturais. Na terceira camada vinham os deuses que
auxiliavam na vida diária das pessoas, como Kothar-wa-Khasis, o deus da
habilidade. Por fim os mensageiros, que não eram mencionados por nome.
Essa hierarquia de deuses é chamada de henoteísmo (ou monolatria). "Há uma
distância muito curta entre essa noção henoteísta e a ideia monoteísta, ou seja,
a de que um deus é realmente Deus e quaisquer outros seres sobrenaturais são
criaturas insignificantes sob seu comando", diz Noll. "A religião da Bíblia deu
esse passo." Entre os hebreus, os deuses das duas camadas intermediárias foram
eliminados, restando apenas o deus-chefe e os mensageiros. "Anjo" vem do grego
angelos, tradução para o hebraico malak, "mensageiro".
El, o deus-chefe cananeu, é um dos nomes de Deus na Bíblia, geralmente com um
adjetivo, como El Shaddai, "deus todo poderoso" ou Elohim, "deus dos deuses". O
nome Yahweh, por sua vez, não aparece em textos de outros cananeus. A primeira
menção a Yahweh é em inscrições egípcias do século 14 a.C., que se referem aos
"nômades de Yahweh" e o associam com pessoas que viviam em Edom - não nas terras
dos hebreus, mas um pouco mais ao sul.
O Velho Testamento parece sugerir uma origem politeísta, principalmente em seus
livros mais antigos (veja quadro). Existe várias passagens como "Senhor, quem é
como Tu entre os deuses?" (Êxodo 15:11). Ou: "Terrível é Deus na assembleia dos
santos, maior e mais tremendo que todos os que o cercam" (Salmos 89:7), que
parece falar em algum tipo de panteão.
Quando o culto a Yahweh se expandiu ao norte, a religião dos hebreus começou a
mudar. "Primeiro, houve uma fusão de várias divindades na figura de Yahweh,
entre elas El, Asherah e Baal", diz Mark Smith. Basta ler os poemas bíblicos
mais antigos para perceber essa fusão de deuses. Na Bíblia, Yahweh assume os
atributos de Baal como senhor da tempestade ("A voz do Senhor despede
relâmpagos", Salmos 29:7). Achados arqueológicos mostram sua fusão com El, ao
assumir a esposa dele:
em um templo hebreu do século 9 a.C., está escrito: "Yahweh
de Samaria e sua Asherah". Em uma tumba do século 8 a.C. do reino de Judá,
alguém deixou: "Yahweh e sua Asherah".
Pois é, os hebreus achavam que Deus era
casado.
Yahwehmania
Ao longo dos séculos, sacerdotes, profetas e monarcas reforçaram o culto
exclusivista a Yahweh. Por volta de 700 a.C., definitivamente havia uma religião
separada daquela praticada pelos vizinhos, com um grande foco nesse deus. Mas
não era universal. "Se você entrasse numa máquina do tempo e voltasse à
Palestina daquela época, veria que a maioria das pessoas era politeísta. Outras
eram henoteístas. Mas elas não se definiam assim. Não se preocupavam com isso",
diz Gnuse.
No entanto, um acontecimento mudaria essa história para sempre. Em 586 a.C., as
muralhas de Jerusalém vieram abaixo. O rei babilônio Nabucodonosor invadiu a
cidade, queimou o mítico Templo dedicado a Yahweh e mandou boa parte dos judeus
para o exílio na Babilônia. "O exílio durou apenas meio século, mas teve uma
força criadora impressionante", diz o historiador britânico Paul Johnson no
livro História dos Judeus. "Assim como os períodos de Abraão e Moisés haviam
produzido a religião de Yahweh, os anos durante e pós-exílio desenvolveram e
refinaram o judaísmo." Durante o exílio, rabinos e escribas compilaram e
editaram as tradições orais e os pergaminhos trazidos do templo destruído,
agregando textos novos para reverenciar Yahweh e condenar o culto a outros
deuses (leia quadro), dando origem ao Tanakh, o livro sagrado do judaísmo, o que
deu forma definitiva à religião. Em 539, o rei persa Ciro derrotou os babilônios
e permitiu a volta dos judeus para Canaã, o que foi visto como uma intervenção
direta de Yahweh. Nos anos que se seguiram, os editores deram os últimos
retoques no seu novo projeto de fé.
O primeiro dos dez mandamentos afirma: "Não terás outros deuses diante de mim"
(Êxodo 20:3). O que era a preferência por um deus torna-se uma lei vinda do céu,
escrita na pedra, e punível com morte.
Na Bíblia, um Deus em mutação
A Bíblia é como uma biblioteca: ela é formada por livros escritos por diferentes
autores ao longo de séculos, reunidos fora de ordem cronológica. Os
especialistas distinguem quatro grupos de autores principais, cada um deles
identificado por uma letra. Os primeiros a escrever, provavelmente na primeira
fase da monarquia israelita (922-722 a.C.), foram do grupo "J" (do reino de
Judá, que chamava seu deus de Yahweh) e "E" (de Israel, que preferiam o título
divino mais formal Elohim). J deu a Yahweh características bastante humanas. No
Gênese, por exemplo, Deus se arrepende, fica zangado e grita com Noé. Já a visão
de E é mais transcendente: Elohim quase não fala; prefere mandar um anjo como
mensageiro. "Mas nem J nem E acreditavam que o deus israelita era totalmente
monoteísta", diz a historiadora das religiões Karen Armstrong no livro A Bíblia
- Uma Biografia. Isso mudou com as duas escolas posteriores: "P" (priests,
"sacerdotes") e "D" (Deuteronomistas), que começaram a escrever após a
destruição do reino de Israel pela Assíria (722 a.C.) e continuaram durante o
exílio da Babilônia (586-539 a.C.). Eles projetaram a imagem de Yahweh como o
Deus único. Quando os editores finais da Bíblia Hebraica juntaram todo o
material, em algum momento entre os séculos 6 e 4 a.C., Deus havia se
transformado. O velho deus nacional de Israel, que convivia com o panteão
cananeu, tinha ficado para trás. Ele agora era Yahweh, o Deus todo-poderoso do
Universo.
Saiba mais
LIVRO - The Origins of Biblical Monotheins, Marx S. Smith, Oxford University
Press, 2003
<https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/acervo/conheca-origem-deus-731356.phtml>
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