domingo, 6 de abril de 2014
Sottomaior contesta artigo que atribui assassinato à falta de
fé
por Daniel Sottomaior
para A Gazeta, do Espírito Santo
Sottomaior: "Ódio aos ateus persiste em pleno século 21"
Em todas as épocas da história, uma parcela
significativa de homens e mulheres nutriu desprezo por outra parcela de
homens e mulheres, atribuindo-lhes a causa dos males da sociedade. No
Brasil, particularmente longo foi o sofrimento dos
negros por conta desse ódio pelo diferente, que escreveu páginas da
mais atroz maldade humana.
Mas já avançamos muito nessa área. Hoje, a afirmação de que o judaísmo “expõe
a sociedade a uma crise de valores que banalizam a vida” dificilmente
chegaria a um periódico importante porque a sociedade já evoluiu a ponto de
perceber que se trata de preconceito e que, se houve alguma crise de
valores, foi a das pessoas que demonizaram os judeus. O autor da frase
possivelmente estaria na cadeia no mesmo dia.
O fato é que a frase foi publicada pela Gazeta no último dia 23 (“Quem
ama definitivamente não mata”, Gabriel Tebaldi), e nada aconteceu
porque ela não se dirigiu aos judeus, mas a um outro grupo. Isso nos mostra
que a sociedade ainda não aprendeu que deve repelir o discurso de ódio em
si, independentemente da vítima. E aponta que, em pleno século XXI,
ainda existe um grupo de pessoas que é perfeitamente
lícito odiar, em plena luz do dia: os ateus.
Ao comentar o assassinato cruel de Barbara Richardelle, Tebaldi classifica
como “perfeito” o diagnóstico de que “falta Deus na
juventude” e atribui a banalização da vida à ”falta
de fé, seja ela qual for”. E só há um grupo sem deuses e sem fé:
somos nós, os ateus. Sinto-me profundamente constrangido, mas não me resta
alternativa senão vir ao jornal e dizer: não somos maus. Não somos
assassinos. E não pedimos sequer respeito ao ateísmo. Só queremos respeito
como cidadãos.
O preconceito contra ateus, como todos os outros, não se ancora nos fatos:
não são os ateus que enchem as cadeias, não
eram ateus os generais da ditadura e seus torturadores, não eram ateus os
donos de escravos. E os países com
mais ateus, como a França, têm os melhores índices sociais e a menor
violência – ao contrário dos países
com mais fé, como o Brasil.
Em menos de seis anos de existência, a Associação Brasileira de Ateus e
Agnósticos (ATEA) angariou mais de 12 mil membros em sua
difícil luta contra o preconceito, que invariavelmente
vem dos religiosos. Já conseguimos diversas vitórias expressivas,
como condenações na justiça de pessoas preconceituosas, que enchem de
esperança os ateus que foram discriminados pelos amigos, pelos colegas, ou
até mesmo pelos pais.
Pesquisas particulares apontam que cerca de 2% dos brasileiros são ateus.
Somos milhões, mas muitos de nós se escondem para não
sofrer com o amor cristão. Nosso sonho é que um dia todos eles possam
se exibir sem medo, em um país em que o preconceito não seja estampado, com
orgulho, até nos jornais.
Daniel Sottomaior é presidente da Atea (Associação Brasileira
de Ateus e Agnósticos).