Pagamento de propinas por empreiteiras se consolidou durante
ditadura, diz historiador
Mariana
Schreiber - @marischreiberDa BBC Brasil
em Brasília
16 dezembro 2016
Muitas das grandes empreiteiras se beneficiaram de relações especiais com o
Estado desde seu surgimento entre as décadas de 30 e 50, mas o pagamento de
propinas se consolidou durante a ditadura, afirma o historiador Pedro Henrique
Campos, em entrevista à BBC Brasil.
Campos diz que não se surpreendeu "nem
um pouco" com os detalhes da relação escusa entre empreiteiras e governantes
revelada nas delações da Operação Lava Jato: "Não só sabia que existia, mas acho
que era abertamente conhecido".
Ele pesquisou a história dessas
empresas, e em especial seus laços com a ditadura militar (1964-1985), em sua
tese de doutorado pela UFF, que deu origem ao livro Estranhas Catedrais.
Quando a Camargo Correa nasceu, por
exemplo, em 1939, nota o pesquisador, um dos seus fundadores era cunhado de
Adhemar de Barros, então governador-interventor de São Paulo que ficou
historicamente atrelado ao bordão "rouba, mas faz".
Já a Odebrecht nasceu na Bahia em
1944, mas é a forte relação que ela constrói com a Petrobras, desde a fundação
da estatal em 1953, que vai pavimentar o crescimento da empresa no país - é a
empreiteira que mais cresceu durante a ditadura, segundo Campos.
"Na trajetória antes, durante e depois
da ditadura, e até na ramificação da Odebrecht (para outros setores da economia,
como o petroquímico, com a Braskem) existe a pauta dessa relação com a
Petrobras", nota o pesquisador, atualmente professor do Departamento de História
e Relações Internacionais da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro).
Apesar de reconhecer o ineditismo da
Lava Jato ao aprofundar as investigações sobre essas relações escusas, Campos
manifesta ceticismo com os efeitos da operação na redução da corrupção
envolvendo empreiteiras.
Confira abaixo os principais trechos
da entrevista.
BBC Brasil: As recentes
revelações da delação de Cláudio Melo Filho, ex-diretor de Relações
Institucionais da Odebrecht, sobre a troca de favores e propina entre a empresa
e políticos te surpreenderam ou confirmaram o que você já tinha observado na sua
pesquisa?
Pedro Henrique Campos:
Não me surpreende nem um pouco, pelo contrário. Essas delações estão
desnudando um processo que, não só eu sabia que existia, mas acho que era
abertamente conhecido. Só que agora estão sendo revelados os detalhes.
Na minha pesquisa eu me detive sobre o
período da ditadura. Por mais que existissem práticas ilegais, de corrupção
naquele período, era diferente. Era um sistema menos complexo, não havia um
conjunto de instituições públicas funcionando no país, e a atenção dos
empreiteiros estava muito mais voltada para o Poder Executivo.
O Congresso, os partidos e a sociedade
civil naquela época não tinham muito poder. Então, a relação era diretamente com
os militares, ministros, presidentes de estatais.
Enquanto hoje, eles buscam acessar o
Poder Legislativo, os partidos, os parlamentares, para conseguir projetos de
lei, emendas parlamentares, aprovação de medidas provisórias, para ter acesso às
diretorias de estatais (muitas vezes cargos nomeados pelo presidente, mas
seguindo indicações de partidos e parlamentares).
Na minha pesquisa, eu vi que na década
de 80, o movimento de passar as ações do Executivo para o Legislativo não foi
feito de maneira arbitrária. As empresas planejam esse deslocamento das
atividades.
Eu cheguei a ler documentos internos
do sindicato dos empreiteiros, o Sinicon, em que eles falam isso, "temos que
mudar nossas ações, parar de falar com os militares, com os ministros,
presidentes e diretores de estatais, para falar mais com parlamentares, com os
partidos, com o Congresso e com a imprensa".
Agora, a prática de pagamento de
propinas, é algo anterior à ditadura e se consolida naquele período. Só que não
aparecia tanto porque os mecanismos de investigação que temos hoje não existiam
ou estavam amordaçados.
BBC Brasil: Pelo que você
pesquisou, seria correto dizer que essas empreiteiras investigadas na Lava Jato
sempre foram corruptas? Seria inerente ao setor?
Campos: A maior parte
das empreiteiras grandes hoje foi formada entre as décadas de 30 e 50, quando a
industrialização criou toda uma demanda por infraestrutura, com rodovias,
hidrelétricas. Elas vão nascer dedicadas a esse tipo de obras.
Aí tem uma particularidade do
capitalismo brasileiro que é uma centralidade muito evidente do Estado no
processo de desenvolvimento de acumulação de capital. Essas empresas, seus
dirigentes, seus donos, em geral partem de uma relação prévia com o aparelho de
Estado.
Vou citar dois casos. A Mendes Júnior
foi fundada em 1953 por um ex-funcionário da Estrada de Ferro Central do Brasil
e da Secretaria de Viação de Minas Gerais, que era o José Mendes Júnior. Ele
começa a ver que pode ganhar muito dinheiro do outro lado do balcão, porque tem
um mundo a se fazer de rodovias no início da década de 50. A Mendes Júnior já
foi a maior empreiteira brasileira.
A Camargo Corrêa é fundada em São
Paulo por dois grandes sócios, o Sebastião Camargo e o Sylvio Corrêa, que era
cunhado do Adhemar de Barros, em 1939. E o Adhemar era interventor (nomeado por
Getúlio Vargas para governar o Estado) de São Paulo. Então essa relação política
da empreiteira é decisiva para ela obter desde o princípio contratos, relação de
obras.
Eu, particularmente, acho que o termo
corrupção é muito abrangente, já que são várias práticas que entram sob esse
guarda-chuva da corrupção. Mas está claro que esses empresários dispõem de um
poder político muito expressivo, com práticas ilegais, no sentido de pautar as
políticas publicas.
BBC Brasil: Segundo sua
pesquisa, a Odebrecht foi a empresa que mais cresceu na ditadura. Pode falar um
pouco do histórico da empresa e como ela se adapta na transição para a
democracia?
Campos: Sua
trajetória é muito particular. Ela nasceu na Bahia, em 1944, fundada pelo
Noberto Odebrecht, e originalmente tinha atuação muito local.
Com a Sudene (Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste, criada em 1959), cresce, mas ainda fica restrita à
região nordestina. Consegue obras contra a seca, a hidrelétrica do rio São
Francisco, e de agências públicas federais que demandam investimentos no
Nordeste, sendo a principal delas a Petrobras.
A Petrobras é uma empresa fundada em
1953 no Rio, porém as atenções da empresa originalmente estão muito concentradas
no Nordeste, particularmente na Bahia. E Juracy Magalhães, primeiro presidente
da estatal, era um militar baiano (na verdade radicado na Bahia, ele é nascido
no Ceará), com toda uma associação com empresários locais, que são desde então
muito presentes na dinâmica interna da Petrobras.
A Odebrecht, na sua própria memória,
se gaba de ter contratos com a Petrobras desde os anos 1950, como gasodutos e
pequenas obras no Nordeste.
Na explosão de obras que a gente teve
antes da ditadura, no governo JK (Juscelino Kubitschek, presidente de 1956 a
1961), com as obras de Brasília e as rodovias do plano de metas, a Odebrecht não
fez nada disso. Ela não tem nenhuma relação com esses grandes empreendimentos,
que eram mais restritos naquele momento a empreiteiras mineiras, paulistas e
cariocas.
A Odebrecht vai crescendo então
consoante à própria expansão da Petrobras. Na trajetória antes, durante e depois
da ditadura, e até na ramificação da Odebrecht (para outros setores da economia)
existe a pauta dessa relação com a Petrobras.
BBC Brasil: Como no caso da
Braskem (empresa controlada pela Odebrecht em que a Petrobras tem participação
de 36% das ações)?
Campos: Isso, não é a
toa que o principal eixo de diversificação das ações do grupo Odebrecht sejam no
âmbito da petroquímica. A Braskem (criada em 2002 a partir da fusão de outras
empresas do grupo Odebrecht) tem tudo a ver com a parceria antiga e profunda que
a Odebrecht tem na Petrobras mesmo.
O principal produto que a Braskem
consome é o nafta (derivado de petróleo utilizado como matéria-prima para vários
produtos como eteno, propeno, benzeno e gás doméstico) da Petrobras. Então, tem
todo um jogo em torno do preço do nafta que a Petrobras vai praticar e é
decisivo para a lucratividade da Braskem. E a Odebrecht confia no poder que ela
tem dentro da estatal.
Inclusive a Braskem hoje é muito maior
que a construtora Odebrecht. Mas antes disso é emblemático que a primeira obra
principal da empresa fora do Nordeste seja o edifício sede da Petrobras no Rio
de Janeiro.
No início dos anos 1970, a Camargo
Corrêa é a maior empreiteira da ditadura, e a Odebrecht não consta nem entre as
dez primeiras nacionais. Aí, tem duas obras que mudam radicalmente o perfil e o
tamanho da Odebrecht, o Aeroporto Internacional do Galeão e a usina nuclear de
Angra dos Reis. São obras que exigem grau de confiança dos militares que outras
empreiteiras não dispõem.
BBC Brasil: Mas por que ela
ganha esses dois contratos e não outra empreiteira?
Campos: Eu não tenho
detalhes, documentos para comprovar isso. Mas a minha hipótese é que a Odebrecht
ganha as obras justamente por sua inserção na Petrobras e pelo fato da Petrobras
ser uma empresa controlada por uma direção em boa medida militar, antes e
durante a ditadura.
O presidente da Petrobras no período
Médici (general que presidiu o Brasil de 1969 a 1974) era o Ernesto Geisel
(general que após presidir a estatal sucedeu Médici no comando do país, de 1974
a 1979).
Geisel é uma figura que detém poder
político na ditadura muito forte, e parece ter uma relação de confiança com a
Odebrecht muito intensa. Ele é um dos que vão sinalizar pela indicação da
empreiteira para fazer essas duas obras.
São obras de segurança nacional. A
ditadura tinha o projeto do Brasil potência com controle da arma nuclear. E o
aeroporto internacional do Rio seria o maior do Brasil, para receber aviões
militares e civis. Não é qualquer empresa que eles iam deixar construir. A
Camargo Corrêa, por exemplo, tinha conexões internacionais. Isso gerava uma
aversão.
A Odebrecht tradicionalmente tem um
discurso nacionalista que obviamente é muito instrumentalizado. Não
necessariamente ela tem aversão ao capital estrangeiro, mas tem esse discurso,
lastreado um pouco nessa relação com os militares.
BBC Brasil: Em entrevista ao
jornal Folha de S.Paulo, em 2014, você manifestou ceticismo com a Lava
Jato. Mudou sua percepção? Está mais otimista?
Campos: Inicialmente
achei que era mais um escândalo envolvendo empreiteiras, como inúmeros que
tiveram antes. Eu realmente mordi minha língua e ela foi muito mais longe do que
eu imaginava. Eles primeiro prenderam executivos, o que já era impressionante,
mas depois prenderam os proprietários das empresas, algo supreendente.
Por outro lado, eu não diria que estou
otimista. Pelo contrário, eu estou mais pessimista ainda. Primeiro, que a
impressão que tenho é que a Lava Jato começa interessante, desmonta um esquema
envolvendo empreiteiras e Estado, mas ela parece ser usada com certas
finalidades políticas. Não é só isso a operação, mas os desdobramentos dela
parecem ter algum grau de instrumentalização política.
Segundo, não parece que os mecanismos
institucionais que permitem essas práticas estão sendo atacados. Ninguém está
falando de rever leis de licitações. Ninguém está falando de rever o sistema de
obras públicas no país de modo que as obras sejam mais sérias, mais baratas,
menos corruptas, de maior qualidade.
A gente tem sistemas no exterior em
que seguradoras fiscalizam se a obra está sendo feita no prazo, com qualidade,
sem desvio de recurso e feita com o preço justo. Eu não vejo essa discussão.
Não vejo discussão sobre como
funcionam as emendas parlamentares.
BBC Brasil: Algo que aumente a
transparência do lobby?
Campos: Sim, a
questão do lobby também, que é uma prática institucionalizada nos Estados Unidos
e aqui não.
E por outro lado,
os efeitos da Lava
Jato, são danosos em certa medida. Será que uma punição rigorosa vai mudar a
forma como ocorre (a corrupção), sem mudança legal, da estrutura do processo.
Aí vão quebrar as empreiteiras do país
e vão vir empresas de fora. Essas empresas estrangeiras são menos corruptas? Eu
tenho dúvidas se é uma questão moral das empresas. São empresas capitalistas que
buscam lucro e vão usar de artifícios diversos para isso.
O histórico que a gente tem é que as
estrangeiras são tão corruptas quanto. A gente tem a SBN (empresa holandesa que
aluga navios-plataforma) com a Petrobras, a gente tem o cartel das empresas de
metrô e trem em São Paulo, com a Alston, francesa, e a Siemens, alemã.
A diferença é que elas vão mandar
lucros para fora, vão contratar engenheiros estrangeiros, trazer mais
equipamentos, material, de fora. Eu vejo na verdade com muito receio e
inquietação os desdobramentos da Lava Jato.