PERIODIZAÇÃO HISTÓRICA E O MITO DO “FIM-DO-MUNDO”

24/01/2010

 

Os mitos sobre o fim do Mundo têm atravessado a História da Europa, em geral, e a de Portugal, em particular, desde há séculos. Não possuindo qualquer fundamento científico-técnico, cabe à História a função de enquadrar a temática no Pensamento Racionalista. Assim, uma rigorosa explicitação histórica sobre os conceitos de “calendário”, “era”, “século” e “milénio” determinam o fim desse irracionalismo.


 O calendário solar, utilizado em todo o Planeta, teve início no século VI e não no ano 1 do nascimento de Jesus. Dinis-o-Exíguo, a pedido do pontífice João I, inventa, nos anos 20 do século VI, um calendário cuja contagem se faz a partir do nascimento de Cristo.

Como referência, Dinis apoiou-se na data da fundação de Roma, Ab urbe condita, AUC, em 753 antes de Cristo. Jesus nasceu no ano do falecimento de Heródes-o-Grande, monarca da Galileia entre 37 e 4 a.C., em 753. Nesse mesmo ano, o 1.º imperador romano, Octávio César Augusto (63 a.C.-14 d.C.), solicitou um recenseamento geral da população. Este ocorreu, na realidade, no ano 4 antes de Cristo.  Jesus nasceu, portanto, no ano 749 da fundação de Roma e não em 753, nem no dia 25 de Dezembro. Deste modo, Dinis-o-Exíguo errou na contagem dos anos, pois 2008 corresponde, na verdade, a 2012. Por fim, em 731, o monge inglês Beda-o-Venerável (674-735) inventou os conceitos “antes de Cristo”, a.C., e “depois de Cristo”, d.C.

Com o surgimento do calendário divulgou-se o vocábulo “Era”.  Em Portugal, a Era Cristã só foi introduzida a 22 de Agosto de 1422, por determinação de D. João I (1385-1433).  Até àquela data, os Portugueses seguiam a Era de César, ou Hispânica. De facto, foi no ano de 38 a. C. que o Senado Romano, Senatus Romanus, SPQR, atribuiu o título de Imperator a Octávio César Augusto. Desta forma, enquanto que em Portugal se estava em 1338, na restante Europa vivia-se em 1300, pois a Era de César levava um avanço de 38 anos sobre a Era Cristã, criada por Dinis-o-Exíguo. Por este meio, a todos os documentos portugueses datados antes de 1422 tem de se retirar 38 anos.


 Até à centúria de Quinhentos, a palavra “século” correspondia a um lapso temporal indefinido, a um período inferior ou superior a cem anos. É só com Matias Flavius, em 1560, que um século passa a corresponder a um período de 100 anos. Todavia, o conceito torna-se mais usual em Setecentos. Como a maioria da população era analfabeta, poucos eram aqueles que – ainda no século XVIII –, sabiam que estavam nesse século. A contagem fazia-se por anos. É nos inícios de Oitocentos, isto é, há cerca de 200 anos, que se introduzem os termos “princípio”, “meio” e “fim de século”.  Finalmente, é nos anos 70-80 do século XX que se inventa a noção de “balanço de fim de século”.


 “Milénio” é outra construção histórica artificial e apenas surge quando da estipulação, por Matias Flavius, de que um século tem 100 anos. Por conseguinte, na Bíblia, por exemplo, já se faz menção a períodos de mil anos. Ao contrário do século, cada milénio sempre correspondeu a um período de 1.000 anos. Embora o vocábulo “milénio” surja no Apocalipse, de São João, os milenaristas, que pensavam e afirmavam que o Mundo ia terminar numa data específica, surgem muito depois do ano 1.000. A ideia de milénio como um período histórico de mil anos só surge em 1605, com Baranus. São os autores do século XIX, incluindo historiadores, como o francês Jules Michelet (1798-1874), que criam a noção de que o ano 1.000 foi um período de obscurantismo, de terror, de pânico. De facto, segundo os românticos, só a partir dos séculos XI-XII é que a situação começou – como afirmavam –, a alterar-se lentamente.


 No ano 1.000, quando se pensava que o Mundo poderia acabar, principalmente por causa dos mitos do monge visionário francês Raoul Glaber (985-1045/47), ainda não tinham sido criados os séculos e os milénios como os conhecemos hoje. No ano 1.000, a área que corresponde ao actual território português estava sob domínio muçulmano. Por isso, vivia-se em 378, uma vez que a Era Muçulmana se inicia em 622, com a fuga de Maomé de Meca para Medina, Hégira. Cada cultura tem a sua própria “Era”, logo a noção de “fim do Mundo” é irracional e obscura. Apesar de tudo, o ano 2.000 também foi afectado por essa crença. A conhecida frase “a mil chegarás, a dois mil não passarás” – que é mais uma invenção desprovida de lógica –, causou receio em inúmeros sectores da sociedade. Seguramente, nas vésperas do ano 3.000 voltará a repetir-se a mesma situação, pois a Humanidade teima em insistir no fim do Mundo.


Os mais recentes avanços científico-técnicos salientam que o Sol, de classe espectral G2, que é uma estrela média, tem cinco mil milhões de anos, ou seja, metade do seu período de vida. As reacções de fusão nuclear no seu interior – em que quatro átomos de hidrogénio, H, são transformados num de hélio, He, mais leve, com libertação de energia –, permitirão ao Sol existir outros 5 mil milhões de anos, antes de, lentamente, se transformar numa estrela gigante vermelha, abarcando as órbitas dos planetas terrestres, até Marte, para, no fim, resultar uma anã-branca. Aí sim, será o fim da Terra."

Vasco Jorge Rosa da Silva
Bolseiro da FCT

 

Para saber mais:

– CARMELO, Luís, La représentation du réel dans des textes prophétiques de la littérature aljamiado-morisque, Utrecht, Un. Utrecht, 1995;
– CLÉBERT, Jean-Paul, História do fim do Mundo, Mem Martins, Europa-América, 1995;
– COHN, N., Na senda do milénio: milenaristas revolucionários e anarquistas místicos da Idade Média, Lisboa, Editorial Presença, 1981;
– DECOUFLÉ, André-Clément, O ano 2000: uma anti-história do fim do Mundo, Lisboa, Editorial Notícias, 1977;
– DUBY, Georges, O ano mil, Lisboa, Edições-70, 1986;
– O fim do mundo aproxima-se!...: porquê um livro, se não sou escritor: sinais, nunca foram tão evidentes, Viseu, Novelgráfica, 1999;
– FREIRE, João Paulo, O fim do Mundo no ano 2000, Braga, Raúl Guimarães e Gualdino Correia, 1927;
– SCHWARTZ, Hillel, Os finais de século: lenda, mito e história de 900 ao ano 2000, Lisboa, Difusão Cultural, Lisboa, 1992;
– http://bocc.ubi.pt/pag/carmelo-luis-murmurar-milenios.html;
– http://www.xtec.es/~rmolins1/solar/imatges/west.jpg.
Fig. 1 – Os cometas e os meteoros eram considerados, na Europa da Idade Média e da Época Moderna, astros anunciadores do “fim-do-Mundo”.

(Fontes: http://www.gazetalusofona.ch/index.php?option=com_content&task=view&id=658&Itemid=12).

 

Nota: A idade do sol apontada como " cinco mil milhões de anos" deve ser lida "cinco bilhões de anos", não cinco milhões.

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