PERIODIZAÇÃO
HISTÓRICA E O MITO DO “FIM-DO-MUNDO”
Os mitos sobre o fim do Mundo têm
atravessado a História da Europa, em geral, e a de Portugal, em particular,
desde há séculos. Não possuindo qualquer fundamento científico-técnico, cabe à
História a função de enquadrar a temática no Pensamento Racionalista. Assim, uma
rigorosa explicitação histórica sobre os conceitos de “calendário”, “era”,
“século” e “milénio” determinam o fim desse irracionalismo.
O calendário solar, utilizado em todo o Planeta, teve início no século VI e não
no ano 1 do nascimento de Jesus. Dinis-o-Exíguo, a pedido do pontífice João I,
inventa, nos anos 20 do século VI, um calendário cuja contagem se faz a partir
do nascimento de Cristo.
Como referência, Dinis apoiou-se na data da fundação de Roma, Ab urbe condita, AUC, em 753 antes de Cristo. Jesus nasceu no ano do falecimento de
Heródes-o-Grande, monarca da Galileia entre 37 e 4 a.C., em 753. Nesse mesmo
ano, o 1.º imperador romano, Octávio César Augusto (63 a.C.-14 d.C.), solicitou
um recenseamento geral da população. Este ocorreu, na realidade, no ano 4 antes
de Cristo. Jesus nasceu, portanto, no ano 749 da fundação de Roma e não em 753,
nem no dia 25 de Dezembro. Deste modo, Dinis-o-Exíguo errou na contagem dos
anos, pois 2008 corresponde, na verdade, a 2012. Por fim, em 731, o monge inglês
Beda-o-Venerável (674-735) inventou os conceitos “antes de Cristo”, a.C., e
“depois de Cristo”, d.C.
Com o surgimento do calendário
divulgou-se o vocábulo “Era”. Em Portugal, a Era Cristã só foi introduzida a 22
de Agosto de 1422, por determinação de D. João I (1385-1433). Até àquela data,
os Portugueses seguiam a Era de César, ou Hispânica. De facto, foi no ano de 38
a. C. que o Senado Romano, Senatus Romanus, SPQR, atribuiu o título de Imperator
a Octávio César Augusto. Desta forma, enquanto que em Portugal se estava em
1338, na restante Europa vivia-se em 1300, pois a Era de César levava um avanço
de 38 anos sobre a Era Cristã, criada por Dinis-o-Exíguo. Por este meio, a todos
os documentos portugueses datados antes de 1422 tem de se retirar 38 anos.
Até à centúria de Quinhentos, a palavra “século” correspondia a um lapso
temporal indefinido, a um período inferior ou superior a cem anos. É só com
Matias Flavius, em 1560, que um século passa a corresponder a um período de 100
anos. Todavia, o conceito torna-se mais usual em Setecentos. Como a maioria da
população era analfabeta, poucos eram aqueles que – ainda no século XVIII –,
sabiam que estavam nesse século. A contagem fazia-se por anos. É nos inícios de
Oitocentos, isto é, há cerca de 200 anos, que se introduzem os termos
“princípio”, “meio” e “fim de século”. Finalmente, é nos anos 70-80 do século XX
que se inventa a noção de “balanço de fim de século”.
“Milénio” é outra construção histórica artificial e apenas surge quando da
estipulação, por Matias Flavius, de que um século tem 100 anos. Por conseguinte,
na Bíblia, por exemplo, já se faz menção a períodos de mil anos. Ao contrário do
século, cada milénio sempre correspondeu a um período de 1.000 anos. Embora o
vocábulo “milénio” surja no Apocalipse, de São João, os milenaristas, que
pensavam e afirmavam que o Mundo ia terminar numa data específica, surgem muito
depois do ano 1.000. A ideia de milénio como um período histórico de mil anos só
surge em 1605, com Baranus. São os autores do século XIX, incluindo
historiadores, como o francês Jules Michelet (1798-1874), que criam a noção de
que o ano 1.000 foi um período de obscurantismo, de terror, de pânico. De facto,
segundo os românticos, só a partir dos séculos XI-XII é que a situação começou –
como afirmavam –, a alterar-se lentamente.
No ano 1.000, quando se pensava que o Mundo poderia acabar, principalmente por
causa dos mitos do monge visionário francês Raoul Glaber (985-1045/47), ainda
não tinham sido criados os séculos e os milénios como os conhecemos hoje. No ano
1.000, a área que corresponde ao actual território português estava sob domínio
muçulmano. Por isso, vivia-se em 378, uma vez que a Era Muçulmana se inicia em
622, com a fuga de Maomé de Meca para Medina, Hégira. Cada cultura tem a sua
própria “Era”, logo a noção de “fim do Mundo” é irracional e obscura. Apesar de
tudo, o ano 2.000 também foi afectado por essa crença. A conhecida frase “a mil
chegarás, a dois mil não passarás” – que é mais uma invenção desprovida de
lógica –, causou receio em inúmeros sectores da sociedade. Seguramente, nas
vésperas do ano 3.000 voltará a repetir-se a mesma situação, pois a Humanidade
teima em insistir no fim do Mundo.
Os mais recentes avanços científico-técnicos salientam que o Sol, de classe
espectral G2, que é uma estrela média, tem cinco mil milhões de anos, ou seja,
metade do seu período de vida. As reacções de fusão nuclear no seu interior – em
que quatro átomos de hidrogénio, H, são transformados num de hélio, He, mais
leve, com libertação de energia –, permitirão ao Sol existir outros 5 mil
milhões de anos, antes de, lentamente, se transformar numa estrela gigante
vermelha, abarcando as órbitas dos planetas terrestres, até Marte, para, no fim,
resultar uma anã-branca. Aí sim, será o fim da Terra."
Vasco Jorge Rosa da Silva
Bolseiro da FCT
Para saber mais:
– CARMELO, Luís, La représentation
du réel dans des textes prophétiques de la littérature aljamiado-morisque,
Utrecht, Un. Utrecht, 1995;
– CLÉBERT, Jean-Paul, História do fim do Mundo, Mem Martins, Europa-América,
1995;
– COHN, N., Na senda do milénio: milenaristas revolucionários e anarquistas
místicos da Idade Média, Lisboa, Editorial Presença, 1981;
– DECOUFLÉ, André-Clément, O ano 2000: uma anti-história do fim do Mundo,
Lisboa, Editorial Notícias, 1977;
– DUBY, Georges, O ano mil, Lisboa, Edições-70, 1986;
– O fim do mundo aproxima-se!...: porquê um livro, se não sou escritor: sinais,
nunca foram tão evidentes, Viseu, Novelgráfica, 1999;
– FREIRE, João Paulo, O fim do Mundo no ano 2000, Braga, Raúl Guimarães e
Gualdino Correia, 1927;
– SCHWARTZ, Hillel, Os finais de século: lenda, mito e história de 900 ao ano
2000, Lisboa, Difusão Cultural, Lisboa, 1992;
– http://bocc.ubi.pt/pag/carmelo-luis-murmurar-milenios.html;
– http://www.xtec.es/~rmolins1/solar/imatges/west.jpg.
Fig. 1 – Os cometas e os meteoros eram considerados, na Europa da Idade Média e
da Época Moderna, astros anunciadores do “fim-do-Mundo”.
(Fontes: http://www.gazetalusofona.ch/index.php?option=com_content&task=view&id=658&Itemid=12).
Nota: A idade do sol apontada como "
cinco mil milhões de anos" deve ser lida
"cinco bilhões de anos", não cinco
milhões.
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