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O PODER DO PENSAMENTO PRIMITIVO
06/05/2001
Apesar de dono de um cérebro superior ao dos outros animais,
o ser humano tende a se manter apegado ao ideário primata, sem perceber a peça
que lhe prega o próprio intelecto. Temos habilidades que não têm os outros
seres, mas perdemos algumas que eles mantêm, e, por cima disso, criamos tantos
tropeços que nos impedem de aproveitar melhor a nossa vida. E o que chega a
ser cômico é o mundo civilizado achar que suas superstições são mais razoáveis
do que as dos silvícolas.
Não temos um olfato que nos capacite perseguir um inimigo como o faz o cão; nem
somos capazes de contornar o mundo sem bons conhecimentos geográficos e bússolas
como fazem algumas aves. Para vencermos a resistência do ar, tivemos que criar
máquinas adequadas, enquanto os pássaros conseguem fazê-lo com seus próprios
membros. Todavia, donos de tantos inventos para superar as nossas
deficiências ante os animais inferiores, somos ainda levados a crer que nossos
instintos de sobrevivência sejam tentações de um demônio; que somos protegidos
por anjos da guarda e que a satisfação dos nossos desejos possa nos jogar em um
lago de fogo, chamado inferno, a arder eternamente, por obra de um deus
onipotente, que, não obstante submeter suas criaturas a um castigo infindável, é
considerado perfeito, justo e bom.
No ano passado, o Globo Repórter apresentava uma reportagem, em que os índios
amazônicos praticavam rituais que crêem ter poder de afugentar os maus espíritos
das florestas. Aos olhos de um cristão do mundo civilizado, essas práticas
místicas indígenas não são mais do que fruto de seu primitivismo, uma vez que
espíritos das florestas não existem, pertencendo somente ao imaginário desses
silvícolas. Concordo plenamente com os crentes civilizados nesse pormenor.
Espíritos das selvas são nada mais que criação da imaginação inculta. Todavia,
ao mesmo tempo, faço a pergunta: Esses religiosos ditos cultos têm alguma
prova da existência de outras entidades sobrenaturais? Se não há qualquer
fundamento para se crer na existência dos espíritos da selva, há alguma base
mais sólida do que a imaginação para crer na existência dos anjos? Alguém já viu
ou ouviu o Diabo? Eu, embora tendo praticado e estudado muito a religião,
jamais encontrei qualquer indício desses seres imaginados. A conclusão é que
nenhum outro religioso tem mais razão do que aqueles habitantes das selvas.
Quando, em épocas remotas, o homem criou a crença de ter uma alma imaterial e
independente do corpo, estava apenas tentando explicar o sonho. Não perceberam
os nossos ancestrais primevos que, se os sonhos fossem atos desses supostos
espíritos, cada vez que alguém sonhasse com uma pessoa essa teria
inevitavelmente o mesmo sonho, o que não ocorre na realidade. Se os antigos
interpretavam os trovões e os ecos das próprias vozes como as vozes dos deuses,
isso era apenas o desconhecimento dos fenômenos naturais. Os loucos, pessoas com
deficiência mental, eram considerados endomoninhados (possuídos pelos demônios),
por falta de melhor compreensão do complexo mecanismo cerebral.
Hoje, que todos esses mistérios foram desfeitos, argumenta-se, com suporte na
tese de Santo Agostinho, que todas essas coisas complexas da natureza não podem
ter vindo à existência por acaso, sendo isso prova suficiente de que haja um
criador supremo. Esse argumento me foi apresentado quando eu ainda era criança.
No entanto, o meu cérebro infantil foi capaz de entender a inutilidade da
premissa. Raciocinei: De onde não pode provir o simples poderia surgir o
complexo? Se do acaso não pode surgir a criatura, poderia dele surgir o criador
supremo? Se todas essas coisas só podem ter sido feitas por um poderoso e sábio
criador, esse criador deve ter sido criado por outro superior a ele.
Conseqüentemente, o criador do criador teria que ter seu criador também, e esse
o seu, em uma corrente infinita. Se, ao contrário, pode existir um “criador
não criado”, por que coisas simples da natureza não poderiam existir sem um ente
criador?
A evolução dos seres vivos, hoje aceita até pelo Papa, é algo inegável, que se
pode perceber na modificação dos vírus e bactérias e no desenvolvimento de
resistência que ocorre nos insetos. Se os fósseis encontrados pelos arqueólogos
mostram organismos tão mais simples quanto mais distante retrocedem no tempo,
não há como continuarmos apegados à idéia de que tudo foi criado há seis
milênios, cada um segundo a sua espécie imutável.
Uma vez que a chamada palavra de Deus afirma que o sol percorre o céu, “de uma a
outra extremidade do céu vai o seu caminho”; que as "estrelas cairão do
firmamento" "pela terra como a figueira, quando abalada pelo vento forte, lança
seus figos verdes", e hoje sabemos que o sol é apenas uma estrela com alguns
planetas, entre eles o nosso mundo, e que as estrelas são milhares e milhões de
vezes maiores do que a Terra, sendo impossível caírem sobre ela, só nos resta
concluir que essa palavra tão venerada não passa de concepção humana primitiva da época em
que ela foi escrita. Dessa forma, cristãos, muçulmanos, judeus ou quaisquer outros,
nenhum tem mais razão do que os selvagens que acreditam nos chamados espíritos
das florestas. Todavia, o pensamento primitivo continua ditando as regras para
as mentes da maioria das pessoas.
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RELIGIÃO
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