AS PRÁTICAS ABOMINÁVEIS DO MERCADOR DA MORTE
ISTOÉ:
por Túlio Lemos16 de outubro de 2021, 12:17h
O ARQUITETO DA TRAGÉDIA
Na lenta gênese do nazismo, não faltaram alertas sobre a tragédia que se
desenvolvia. Mas sua dimensão só ficou evidente após o julgamento dos crimes
no Tribunal de Nuremberg e a descoberta dos campos de concentração, que
traduziram o horror em imagens. Com a conclusão dos trabalhos da CPI da Covid,
o Brasil está enfrentando seu momento Nuremberg. É hora de compreender a
extensão da catástrofe perpetrada pelo presidente e por seus asseclas. E é o que
a comissão está fazendo. Renan Calheiros deve entregar o relatório final nesta
terça-feira, 19, e ele será votado no dia seguinte.
[*]
O senador confirmou à ISTOÉ: o documento vai apontar que Bolsonaro adotou
práticas do regime nazista. Calheiros o chama de “mercador da morte”. Segundo
ele, dois casos aterradores, em especial, remetem a experiências macabras do
Terceiro Reich com seres humanos: o caso Prevent Senior e uma pesquisa com
proxalutamida que teria levado 200 voluntários à morte no Amazonas.
A Prevent é acusada de
obrigar médicos a prescrever remédios sem eficácia do kit-Covid, de ter
conduzido um pseudoexperimento e de mudar certidões de óbitos (omitindo os
causados pela doença). No caso da proxalutamida, droga defendida por
Bolsonaro e estudada para tumores de mama e próstata, os responsáveis haviam
recebido autorização para uma pesquisa com 294 voluntários em Brasília. Mas ela
foi aplicada no Amazonas em 645 pessoas. Além disso, o Conep (entidade
responsável por regular a participação de voluntários em pesquisas) denunciou em
setembro à Procuradoria-Geral da República que foram alteradas informações sobre
o critério de inclusão de voluntários e pacientes falecidos.
Apesar de os pesquisadores terem conhecimento dos
sucessivos óbitos e eventos adversos graves, continuaram com o recrutamento e os
estudos.
A Unesco considerou essa prática uma das infrações éticas mais graves da
história da América Latina e pediu o monitoramento da comunidade científica
nacional e internacional. “É inaceitável que esses tipos de eventos estejam
acontecendo em 2021. Nenhuma emergência sanitária ou contexto político ou
econômico justifica fatos como esses”, disse a organização em nota. Essas
práticas não aconteceram à revelia das autoridades. O próprio
presidente negligenciou as vacinas, propagandeou
fármacos milagrosos, promoveu notícias falsas e
sugeriu a invasão de hospitais. Tinha
conhecimento da suspeita de corrupção na venda de imunizantes e nada fez.
Por causa disso, Bolsonaro deve ser indiciado por 11
crimes. As denúncias incluem charlatanismo (três meses a um ano de
prisão), publicidade enganosa (três meses a um ano
de prisão), infração de medida sanitária (um mês a
um ano de prisão) e corrupção passiva (dois a treze
anos de prisão). Também entraram no rol de acusações: o
genocídio e o crime de responsabilidade,
passível de impeachment.
Reprodução/IstoÉ
Homicídio doloso
Os delitos foram compilados pelo grupo de juristas coordenado pelo ex-ministro
da Justiça Miguel Reale Jr. No material que a CPI recebeu dos especialistas,
eles não mencionaram o crime de homicídio. Em vez disso, imputaram ao chefe do
Executivo o crime de epidemia, com resultado de morte. Isso, no entanto, não
convenceu Renan Calheiros. Orientado por outros juristas, o relator está mais
inclinado a denunciar Bolsonaro por homicídio doloso, baseado nos fortes
indícios de omissão do governo no processo de compra de
vacinas.
As investigações comprovaram um quadro de descalabro na
administração da Saúde, com gabinetes paralelos, atravessadores inescrupulosos
oferecendo vacinas que não existiam em contratos bilionários e personagens
desqualificados dando orientações para lidar com a pandemia. Militares
foram escalados por sua suposta expertise em logística, mas o despreparo para
lidar com a emergência, além do voluntarismo para aderir a teses contra a saúde
da população, ficaram patentes nos depoimentos.
Apesar de seu papel central, o mandatário não é o único responsável. A CPI deve
indiciar mais de 40 pessoas por terem colaborado para tornar o Brasil o segundo
País com o maior número de óbitos no planeta. Pelos menos seis ministros,
titulares ou já demitidos, serão denunciados: Eduardo Pazuello (Saúde), Marcelo
Queiroga (Saúde), Onyx Lorenzoni (Trabalho e Previdência), Ernesto Araújo
(Relações Exteriores), Wagner Rosário (CGU) e Osmar Terra (Cidadania).
Auxiliares próximos do presidente como Fábio Wajngarten (antigo chefe da Secom),
Ricardo Barros (líder na Câmara) e empresários do círculo bolsonarista, como
Luciano Hang e Carlos Wizard, também. E dois filhos também podem ser incluídos.
Carlos Bolsonaro, pelo papel de articulador da rede de
fake news e por ter difundido o kit-Covid,
e Eduardo Bolsonaro por ser o elo dessa rede com supostos financiadores, como o
empresário Otávio Fakhoury (outro provável indiciado) e o próprio Hang.
Há farta documentação para embasar todas essas acusações, e a CPI, uma
das mais importantes desde a redemocratização, deve cumprir não apenas o papel
de expor os erros na pandemia. Vai recalibrar a régua moral do País no momento
em que as instituições estão sob ataque e há um desmanche em todas as áreas do
Estado – o recente corte quase total das verbas para
pesquisas científicas é apenas um sinal disso, justamente num segmento
que poderia preparar a Nação para enfrentar emergências semelhantes.
Estratégia contra blindagem
Tamanho corpo de evidências não significa que os culpados serão de fato punidos.
A comissão discutiu extensamente maneiras de evitar que o Procurador-Geral da
República, Augusto Aras, engavetasse o relatório do colegiado. Aliado diligente
na blindagem do mandatário, ele pode simplesmente se omitir diante do relatório.
Formalmente, tem um mês para remeter a denúncia ao STF. Uma das propostas em
discussão é fazer com que a defesa das próprias vítimas provoque diretamente a
Corte por meio de uma ação penal privada, subsidiária da pública, inserida no
âmbito do artigo 5º da Constituição. É o que defende o senador Alessandro
Vieira, um dos nomes mais experientes do colegiado. Entidades de direito privado
poderiam entrar com ações diretamente no STF. Essa alternativa já é debatida com
membros da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que podem assumir a causa em
nome de associações de vítimas da Covid. Mas trata-se de um expediente que pode
ser questionado por juristas.
Os últimos dias foram consumidos pela CPI com os detalhes do relatório final.
Vieira teme que questões levantadas pela comissão, como os atos médicos e a
autonomia do paciente, possam enfraquecer o embasamento técnico da peça. Além da
PGR, receberão o relatório o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Ministério
Público do Distrito Federal, além dos Ministérios Públicos Federais e Estaduais
(para investigar pessoas sem foro privilegiado). A estratégia da cúpula da CPI é
mobilizar esses órgãos “pela base”, fazendo com que seus membros pressionem
Aras. O presidente da Câmara, Arthur Lira, receberá o documento porque nele
estará listado o crime de responsabilidade cometido pelo mandatário (aqui, a
blindagem é certa, pois Lira é outro aliado fiel do presidente). Para dar mais
visibilidade às acusações, a CPI pretende ainda recorrer ao Tribunal
Internacional Penal, em Haia, onde Bolsonaro já responde a três acusações. De
qualquer forma, o acúmulo de provas já abasteceu processos em órgãos como
TCU, PF e Anvisa.
Reprodução/IstoÉ
Independentemente dessa nova fase que se inicia após a aprovação do relatório
final, a CPI já ajudou de forma decisiva no julgamento histórico da gestão
Bolsonaro. A crise na Saúde, agora agravada pela deterioração econômica,
derreteu a popularidade de Bolsonaro. Ele tem dificuldades até em circular em
público quando não está cercado de policiais e dos seguidores fanáticos. Foi
barrado quando tentava assistir a uma partida do Santos na Vila Belmiro porque
não tinha comprovante de vacinação. Aprendeu o que qualquer cidadão deveria
saber: é preciso respeitar as leis. Na visita ao Santuário de Nossa Senhora
Aparecida (SP), no dia 12, enfrentou vaias de populares, que o chamaram de
“lixo” e “genocida”. E levou um sermão do arcebispo, Dom Orlando Brandes,
que defendeu momentos antes as vacinas e citou os 600 mil mortos de Covid. O
religioso defendeu ainda em sua homilia uma pátria “sem corrupção e sem ódio”, e
disse que “para ser pátria amada não pode ser pátria armada”. “Uma pátria
é uma república sem mentira e fake news”, afirmou. Crítica mais direta,
impossível.
O descrédito faz o presidente voltar a ser ridicularizado no exterior. A BBC Two
produz em parceria com a PBS, rede pública americana, a série “The
Bolsonaros”, que deve estrear em março de 2022 nos EUA e na Europa. O
título remete às tradicionais famílias mafiosas retratadas nas telas. A TV
France 5 também deve lançar no próximo ano um documentário sobre o brasileiro. A
tragédia brasileira passa a ser encarada como drama ou comédia.
Código de Nuremberg
No âmbito da CPI, não é despropositado que Renan Calheiros compare os episódios
da Prevent e da proxalutamida
com as experiências desumanas de um dos próceres nazistas, o médico Joseph
Mengele. Não se trata de excesso retórico. Quando os países aliados julgaram os
principais seguidores de Hitler, foi desenvolvido o chamado Código de Nuremberg.
Isso ocorreu após a Corte instalada nessa cidade alemã ter se debruçado sobre as
experiências macabras com prisioneiros do regime, frequentemente com resultados
fatais. Emergiram do debate os princípios que as pesquisas com seres humanos
deveriam seguir. Antes de mais nada, elas deveriam proteger os voluntários, a
quem foi dado o direito de opinar e tomar decisões. E haveria a
responsabilização dos profissionais. Junto com outros códigos elaborados no
pós-Guerra, essas normas constituem o pilar da ética moderna no assunto. Foi
contra esse arcabouço civilizatório que Bolsonaro investiu, mobilizando
autoridades, entidades médicas e profissionais.
O presidente agiu pelo marketing ideológico e pelo
desespero de diminuir os danos políticos causados pela pandemia, além de
tentar mobilizar as bases radicais que ainda o apoiam,
movidas a fake news e polarização. Mas demonstrou princípios da ideologia
nazista, como a perversidade e o desprezo à vida. Ele estimulou que vítimas da
Covid fossem tratadas como cobaias e defendeu a eugenia, ao apontar que idosos
(“velhos vão morrer de qualquer jeito”) e fracos (“sem histórico de atleta”)
pudessem sucumbir. No início deste ano, pessoas morreram asfixiadas por falta de
oxigênio enquanto uma comitiva oficial divulgava o
kit-Covid. O mundo assistiu espantado a essa realidade. É duro admitir
que tamanha infâmia tenha sido praticada em plena democracia e aos olhos de
todos, mas ela aconteceu. Houve uma normalização dessas práticas.
Como o próprio Renan Calheiros aponta, a trajetória de Bolsonaro é
autoexplicativa. Ele defendeu matar 30 mil brasileiros
quando era deputado federal, idolatra “ditadores
carniceiros” e tem vínculos com “a face mais
assustadora da morte, as milícias”. Para o relator da CPI, o presidente é
um facínora. Apenas expressa em palavras duras uma realidade cristalina. O
presidente, por outro lado, permanece em negação, voltado para a própria bolha
que ainda o idolatra. Mesmo diante da iminência da entrega do relatório,
voltou a desacreditar a ciência. “Eu decidi não
tomar a vacina. Estou vendo novos estudos, a minha imunização está lá em cima,
para que vou tomar vacina? Seria a mesma coisa você jogar R$ 10 na loteria para
ganhar R$ 2”, declarou. Ao propagar tamanha sandice usando a autoridade de
presidente, demonstrou ignorância e irresponsabilidade e voltou a cometer um
crime. Desestimulou novamente a vacinação, enquanto o SUS luta para acelerá-la
nos estados em que a campanha está mais atrasada. Felizmente esse novo ataque
acontece enquanto a sociedade reafirma sua confiança na Saúde. Mesmo com a
sabotagem oficial, mais de 70% da população já
tomou a primeira dose, e 100 milhões estão totalmente imunizados. A cerimônia de
encerramento da CPI nos próximos dias deverá devolver o País à realidade. A
sociedade ainda está enlutada, mas ajustando contras com sua própria história.
*Texto publicado na edição deste fim de semana da Revista IstoÉ, 16 de outubro
de 2021.
[*]
Foi
apresentado em 26/10/2021, retido até o momento.
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