RELATO DE UM PRESO POLÍTICO
TORTURADO
Este é o depoimento de um preso
político, frei Tito de Alencar Lima, 24 anos. Dominicano. (redigido por ele
mesmo na prisão). Este depoimento escrito em fevereiro de 1970 saiu
clandestinamente da prisão e foi publicado, entre outros, pelas revistas Look e
Europeo.
"Fui levado do presídio Tiradentes para a 'Operação Bandeirantes', OB (Polícia
do Exército), no dia 17 de fevereiro de 1970, 3ª feira, às 14 horas. O capitão
Maurício veio buscar-me em companhia de dois policiais e disse: 'Você agora vai
conhecer a sucursal do inferno'. Algemaram minhas mãos, jogaram me no
porta-malas da perua. No caminho as torturas tiveram início: cutiladas na cabeça
e no pescoço, apontavam-me seus revólveres.
Preso desde novembro de 1969, eu já havia sido torturado no DOPS. Em dezembro,
tive minha prisão preventiva decretada pela 2ª auditoria de guerra da 2ª região
militar. Fiquei sob responsabilidade do juiz auditor dr Nelson Guimarães. Soube
posteriormente que este juiz autorizara minha ida para a OB sob “garantias de
integridade física'.
Ao chegar à OB fui conduzido à sala de interrogatórios. A equipe do capitão
Maurício passou a acarear-me com duas pessoas. O assunto era o Congresso da UNE
em Ibiúna, em outubro de 1968. Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos
naquela época. Apesar de declarar nada saber, insistiam para que eu
“confessasse'. Pouco depois levaram me para o “pau-de-arara'. Dependurado nu,
com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões
dos pés e na cabeça. Eram seis os torturadores, comandados pelo capitão
Maurício. Davam-me 'telefones' (tapas nos ouvidos) e berravam impropérios. Isto
durou cerca de uma hora. Descansei quinze minutos ao ser retirado do
'pau-de-arara'. O interrogatório reiniciou. As mesmas perguntas, sob cutiladas e
ameaças. Quanto mais eu negava mais fortes as pancadas. A tortura, alternada de
perguntas, prosseguiu até às 20 horas. Ao sair da sala, tinha o corpo marcado de
hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado, carregou-me
até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5 m, cheia de pulgas e
baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia
sobre o cimento frio e sujo.
Na quarta-feira fui acordado às 8 h. Subi para a sala de interrogatórios onde a
equipe do capitão Homero esperava-me. Repetiram as mesmas perguntas do dia
anterior. A cada resposta negativa, eu recebia cutiladas na cabeça, nos braços e
no peito. Nesse ritmo prosseguiram até o início da noite, quando serviram a
primeira refeição naquelas 48 horas: arroz, feijão e um pedaço de carne. Um
preso, na cela ao lado da minha, ofereceu-me copo, água e cobertor. Fui dormir
com a advertência do capitão Homero de que no dia seguinte enfrentaria a “equipe
da pesada'.
Na quinta-feira três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De
estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão cercado por sua
equipe, voltou às mesmas perguntas. 'Vai ter que falar senão só sai morto
daqui', gritou. Logo depois vi que isto não era apenas uma ameaça, era quase uma
certeza. Sentaram-me na 'cadeira do dragão' (com chapas metálicas e fios),
descarregaram choques nas mãos, nos pés, nos ouvidos e na cabeça. Dois fios
foram amarrados em minhas mãos e um na orelha esquerda. A cada descarga, eu
estremecia todo, como se o organismo fosse se decompor. Da sessão de choques
passaram-me ao 'pau-de-arara'. Mais choques, pauladas no peito e nas pernas a
cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo
todo ferido e sangrando, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Conduziram-me a
outra sala dizendo que passariam a carga elétrica para 230 volts a fim de que eu
falasse 'antes de morrer'. Não chegaram a fazê-lo. Voltaram às perguntas, batiam
em minhas mãos com palmatória. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não
ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo
doía mais; tudo parecia massacrado. Mesmo que quisesse, não poderia responder às
perguntas: o raciocínio não se ordenava mais, restava apenas o desejo de perder
novamente os sentidos. Isto durou até às 10 h quando chegou o capitão Albernaz.
'Nosso assunto agora é especial', disse o capitão Albernaz, ligou os fios em
meus membros. 'Quando venho para a OB - disse - deixo o coração em casa. Tenho
verdadeiro pavor a padre e para matar terrorista nada me impede... Guerra é
guerra, ou se mata ou se morre. Você deve conhecer fulano e sicrano (citou os
nomes de dois presos políticos que foram barbaramente torturados por ele), darei
a você o mesmo tratamento que dei a eles: choques o dia todo. Todo 'não' que
você disser, maior a descarga elétrica que vai receber'. Eram três militares na
sala. Um deles gritou: 'Quero nomes e aparelhos (endereços de pessoas)'. Quando
respondi: 'não sei' recebi uma descarga elétrica tão forte, diretamente ligada à
tomada, que houve um descontrole em minhas funções fisiológicas. O capitão
Albernaz queria que eu dissesse onde estava o Frei Ratton. Como não soubesse,
levei choques durante quarenta minutos.
Queria os nomes de outros padres de São Paulo, Rio e Belo Horizonte 'metidos na
subversão'. Partiu para a ofensa moral: 'Quais os padres que têm amantes? Por
que a Igreja não expulsou vocês? Quem são os outros padres terroristas?'.
Declarou que o interrogatório dos dominicanos feito pele DEOPS tinha sido 'a
toque de caixa' e que todos os religiosos presos iriam à OB prestar novos
depoimentos. Receberiam também o mesmo 'tratamento'. Disse que a 'Igreja é
corrupta, pratica agiotagem, o Vaticano é dono das maiores empresas do mundo'.
Diante de minhas negativas, aplicavam-me choques, davam-me socos, pontapés e
pauladas nas costas. À certa altura, o capitão Albernaz mandou que eu abrisse a
boca 'para receber a hóstia sagrada'. Introduziu um fio elétrico. Fiquei com a
boca toda inchada, sem poder falar direito. Gritaram difamações contra a Igreja,
berraram que os padres são homossexuais porque não se casam. Às 14 horas
encerraram a sessão. Carregado, voltei à cela onde fiquei estirado no chão.
Às 18 horas serviram jantar, mas não consegui comer. Minha boca era uma ferida
só. Pouco depois levaram-me para uma 'explicação'. Encontrei a mesma equipe do
capitão Albernaz. Voltaram às mesmas perguntas. Repetiram as difamações. Disse
que, em vista de minha resistência à tortura, concluíram que eu era um
guerrilheiro e devia estar escondendo minha participação em assaltos a bancos. O
'interrogatório' reiniciou para que eu confessasse os assaltos: choques,
pontapés nos órgãos genitais e no estomago palmatórias, pontas de cigarro no meu
corpo. Durante cinco horas apanhei como um cachorro. No fim, fizeram-me passar
pelo 'corredor polonês'. Avisaram que aquilo era a estréia do que iria ocorrer
com os outros dominicanos. Quiseram me deixar dependurado toda a noite no
'pau-de-arara'. Mas o capitão Albernaz objetou: 'não é preciso, vamos ficar com
ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer
as coisas sem deixar marcas visíveis'. 'Se sobreviver, jamais esquecerá o preço
de sua valentia'.
Na cela eu não conseguia dormir. A dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça
dez vezes maior do que o corpo. Angustiava-me a possibilidade de os outros
padres sofrerem o mesmo. Era preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria
aguentar mais o sofrimento prolongado. Só havia uma solução: matar-me.
Na cela cheia de lixo, encontrei uma lata vazia. Comecei a amolar sua ponta no
cimento. O preso ao lado pressentiu minha decisão e pediu que eu me acalmasse.
Havia sofrido mais do que eu (teve os testículos esmagados) e não chegara ao
desespero. Mas no meu caso, tratava-se de impedir que outros viessem a ser
torturados e de denunciar à opinião pública e à Igreja o que se passa nos
cárceres brasileiros. Só com o sacrifício de minha vida isto seria possível,
pensei. Como havia um Novo Testamento na cela, li a Paixão segundo São Mateus. O
Pai havia exigido o sacrifício do Filho como prova de amor aos homens. Desmaiei
envolto em dor e febre.
Na sexta-feira fui acordado por um policial. Havia ao meu lado um novo preso: um
rapaz português que chorava pelas torturas sofridas durante a madrugada. O
policial advertiu-me: 'o senhor tem hoje e amanhã para decidir falar. Senão a
turma da pesada repete o mesmo pau. Já perderam a paciência e estão dispostos a
matá-lo aos pouquinhos'. Voltei aos meus pensamentos da noite anterior. Nos
pulsos, eu havia marcado o lugar dos cortes. Continuei amolando a lata. Ao
meio-dia tiraram-me para fazer a barba. Disseram que eu iria para a
penitenciária. Raspei mal a barba, voltei à cela. Passou um soldado. Pedi que me
emprestasse a 'gillete' para terminar a barba. O português dormia. Tomei a
gillete. Enfiei-a com força na dobra interna do cotovelo, no braço esquerdo. O
corte fundo atingiu a artéria. O jato de sangue manchou o chão da cela.
Aproximei-me da privada, apertei o braço para que o sangue jorrasse mais
depressa. Mais tarde recobrei os sentidos num leito do pronto-socorro do
Hospital das Clínicas. No mesmo dia transferiram-me para um leito do Hospital
Militar. O Exército temia a repercussão, não avisaram a ninguém do que ocorrera
comigo. No corredor do Hospital Militar, o capitão Maurício dizia desesperado
aos médicos: 'Doutor, ele não pode morrer de jeito nenhum. Temos que fazer tudo,
senão estamos perdidos'. No meu quarto a OB deixou seis soldados de guarda.
No sábado teve início a tortura psicológica. Diziam: 'A situação agora vai
piorar para você, que é um padre suicida e terrorista. A Igreja vai expulsá-lo'.
Não deixavam que eu repousasse. Falavam o tempo todo, jogavam, contavam-me
estranhas histórias. Percebi logo que, a fim de fugirem à responsabilidade de
meu ato e o justificarem, queriam que eu enlouquecesse.
Na segunda noite recebi a visita do juiz auditor acompanhado de um padre do
Convento e um bispo auxiliar de São Paulo. Haviam sido avisados pelos presos
políticos do presídio Tiradentes. Um médico do hospital examinou-me à frente
deles mostrando os hematomas e cicatrizes, os pontos recebidos no hospital das
Clínicas e as marcas de tortura. O juiz declarou que aquilo era 'uma estupidez'
e que iria apurar responsabilidades. Pedi a ele garantias de vida e que eu não
voltaria à OB, o que prometeu.
De fato fui bem tratado pelos militares do Hospital Militar, exceto os da OB que
montavam guarda em meu quarto. As irmãs vicentinas deram-me toda a assistência
necessária Mas não se cumpriu a promessa do juiz. Na sexta-feira, dia 27, fui
levado de manhã para a OB. Fiquei numa cela até o fim da tarde sem comer.
Sentia-me tonto e fraco, pois havia perdido muito sangue e os ferimentos
começavam a cicatrizar-se. À noite entregaram-me de volta ao Presídio
Tiradentes.
É preciso dizer que o que ocorreu comigo não é exceção, é regra. Raros os presos
políticos brasileiros que não sofreram torturas. Muitos, como Schael Schneiber e
Virgílio Gomes da Silva, morreram na sala de torturas. Outros ficaram surdos,
estéreis ou com outros defeitos físicos. A esperança desses presos coloca-se na
Igreja, única instituição brasileira fora do controle estatal-militar. Sua
missão é: defender e promover a dignidade humana. Onde houver um homem sofrendo,
é o Mestre que sofre. É hora de nossos bispos dizerem um BASTA às torturas e
injustiças promovidas pelo regime, antes que seja tarde.
A Igreja não pode omitir-se. As provas das torturas trazemos no corpo. Se a
Igreja não se manifestar contra essa situação, quem o fará? Ou seria necessário
que eu morresse para que alguma atitude fosse tomada? Num momento como este o
silêncio é omissão. Se falar é um risco, é muito mais um testemunho. A Igreja
existe como sinal e sacramento da justiça de Deus no mundo
'Não queremos, irmãos, que ignoreis a tribulação que nos sobreveio. Fomos
maltratados desmedidamente, além das nossas forças, a ponto de termos perdido a
esperança de sairmos com vida. Sentíamos dentro de nós mesmos a sentença de
morte: deu-se isso para que saibamos pôr a nossa confiança, não em nós, mas em
Deus, que ressuscita os mortos' (2Cor, 8-9).
Faço esta denúncia e este apelo a fim de que se evite amanhã a triste notícia de
mais um morto pelas torturas.
Frei Tito de Alencar Lima, OP
Fevereiro de 1970'."
<http://www.adital.com.br/freitito/por/pedras.html>
E é lamentável que hoje ainda existam uma porção de pessoas preconizando o
retorno desse regime de terror! E não digam que o relato do Frei Tito é
mentira, porque o que existe de provas sobre as barbaridades do regime é
alarmante.
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