A frase mais revolucionária do século 20 para a socióloga Rosiska Darcy de
Oliveira, de 60 anos, sem dúvida é: “O meu corpo me pertence”, dita por uma
mulher. Depois da pílula anticoncepcional, quebra-se um paradigma milenar
que separava o mundo dos homens e das mulheres e estabelecia uma hierarquia.
“No momento em que começam a ter recursos próprios e a saber que o corpo
lhes pertence, as mulheres mudaram a face do mundo”, assegura.
Para ilustrar o clima da época em que a opressão era companheira das
mulheres, Rosiska conta: “Eu era estudante de direito e, um belo dia, um
professor chegou à sala de aula com o discurso de que ia ler um texto muito
bom sobre Antígona, de Sófocles. A nota que ele tinha dado ao texto era 10,
mas gostaria que os alunos adivinhassem quem o tinha escrito. A turma
inteira falou o nome de todos os alunos presentes, menos o meu, que era a
autora do texto. O professor, então, disse que os barbados deveriam se
envergonhar porque foi a meninota no canto da sala (Rosiska) a responsável.
Todos ficaram intrigados de como uma mulher poderia fazer um trabalho melhor
do que o deles. Agradeci, mas recusei a nota 10 e nunca mais voltei àquela
faculdade. A partir desse dia me tornei feminista, para resistir à
opressão”, explica.
Nas ruas, além de expulsas dos bares, as mulheres aprendiam a baixar os
olhos quando cruzavam com um homem, “pois poderia parecer que elas estavam
olhando para provocar”. Era assim. No tempo de Rosiska, as mulheres não
tinham direito de ir e vir, acesso ao conhecimento, ao mercado de trabalho e
à sexualidade.
Quem viveu antes de Rosiska sabe como as mulheres foram reprimidas durante
muito tempo. Neuza Huebra de Souza Netto, de 84 anos, se casou com 17 anos e
8 meses com um médico recém-formado que chegou a sua cidade, Lajinha, para
montar uma clínica. Ele não só foi seu primeiro e único namorado, como ficou
casada com o clínico-geral Langlebert de Souza Netto por 60 anos, até que a
morte o levou, em agosto de 2002.
Viúva aos 76 anos, com cinco filhos, Neuza conserva a beleza da juventude.
Os cabelos brancos emolduram o rosto e destacam os olhos verdes. Vaidosa,
ela acostumou a se aprontar para o amado desde os tempo de namoro, com
roupas bem-feitas, colares de pérolas e brincos de ouro. “Namoramos oito
meses, mas não era igual a estes namoros de hoje não. Eu ficava de um lado e
o Laliu”, apelido que ele dá ao marido, “de outro. Beijinho era só corrido e
tudo escondido. Eram mãos dadas e olhe lá!”
Neuza votou pela primeira vez depois de casada, quando o marido foi
candidato a prefeito de Lajinha. Ela nunca trabalhou, mas depois de um tempo
de casada, em que mostrou todos os seus dotes ao marido, de saber lavar,
passar, cozinhar, teve permissão para contratar uma empregada doméstica.
Ciumento, o marido não a deixava chegar nem mesmo à janela do sobrado em que
moravam. “Ele tinha ciúme até da minha alma. Como não gostava de carnaval,
um dia pedi ao meu pai para me levar ao clube, ao que me perguntou se já
tinha pedido permissão ao meu marido. Pedi, só depois então meu pai me
levou.”
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Rosiska de Oliveira
ressalta que desafio é enfrentar novas definições do feminino |
PARTEIRA
Ela teve os cinco filhos de parto normal, sob os cuidados de uma parteira da
região, que quando ouviu o barulho do primeiro avião que passou pela cidade
disse que o mundo estava acabando. Todas as notícias chegavam pelo rádio,
que era de um tamanho tão grande que parecia uma televisão de 20 polegadas
de hoje. Dona Neuza se divertia com os capítulos de O direito de nascer.
Quando a televisão chegou não perdia as novelas, como O sheik de Agadir, com
Yoná Magalhães e Marieta Severo, o Repórter Esso, com Eron Domingues, os
programas Papai sabe tudo e O vigilante rodoviário.
Considerada pelos filhos e netos e bisnetos como uma mulher moderna, Neuza
garante: “Nada mais me assusta. Cada um deve se comportar como quiser”. E a
neta Bárbara, que mora com a avó, diz que ela é demais: “Convive com todos
os meus amigos, não critica por eles serem diferentes e gosta muito de
conversar. Apesar de não saber usar o computador, acha incrível como um
e-mail chega do outro lado do mundo na mesma hora”.
Neuza adora viajar e se encontrar com as cinco irmãs que são viúvas, sendo
que a mais nova está com 70 anos. “Quando nos encontramos, a gente nem
dorme. Dançamos, conversamos, tomamos vinho e cantamos a noite toda, porque
na vida a gente tem que se adaptar a tudo. Sou velha sim, mas não sou
chata”, admite.
Virgindade, separação conjugal, calça comprida, beber e fumar, e fazer sexo
com quem desejar foram tabus que a geração de Neuza não conseguiu derrubar:
“Conviver com mulher separada era como estar com uma doença contagiosa,
mesmo se ela fosse amiga da gente antes. Graças a Deus que as coisas
mudaram”.
<Estado de Minas,
07/03/2010>