Superinteressante
dezembro/2008
Quem escreveu a Bíblia?
A história de Deus foi escrita pelos
homens. Mas quem é o autor do livro mais
influente de todos os tempos? As
respostas são surpreendentes - e vão
mudar sua maneira de ver as Escrituras
por Texto José Francisco Botelho
Em algum lugar do Oriente Médio, por
volta do século 10 a.C., uma pessoa
decidiu escrever um livro. Pegou uma
pena, nanquim e folhas de papiro (uma
planta importada do Egito) e começou a
contar uma história mágica, diferente de
tudo o que já havia sido escrito. Era
tão forte, mas tão forte, que virou uma
obsessão. Durante os 1 000 anos
seguintes, outras pessoas continuariam
reescrevendo, rasurando e compilando
aquele texto, que viria a se tornar o
maior best seller de todos os tempos: a
Bíblia. Ela apresentou uma teoria para o
surgimento do homem, trouxe os
fundamentos do judaísmo e do
cristianismo, influenciou o surgimento
do islã, mudou a história da arte – sem
a Bíblia, não existiriam os afrescos de
Michelangelo nem os quadros de Leonardo
da Vinci – e nos legou noções básicas da
vida moderna, como os direitos humanos e
o livre-arbítrio. Mas quem escreveu,
afinal, o livro mais importante que a
humanidade já viu? Quem eram e o que
pensavam essas pessoas? Como criaram o
enredo, e quem ditou a voz e o estilo de
Deus? O que está na Bíblia deve ser
levado ao pé da letra, o que até hoje
provoca conflitos armados? A resposta
tradicional você já conhece: segundo a
tradição judaico-cristã, o autor da
Bíblia é o próprio Todo-Poderoso. E
ponto final. Mas a verdade é um pouco
mais complexa que isso.
A própria Igreja admite que a revelação
divina só veio até nós por meio de mãos
humanas. A palavra do Senhor é sagrada,
mas foi escrita por reles mortais. Como
não sobraram vestígios nem evidências
concretas da maioria deles, a chave para
encontrá-los está na própria Bíblia. Mas
ela não é um simples livro: imagine as
Escrituras como uma biblioteca inteira,
que guarda textos montados pelo tempo,
pela história e pela fé. Aliás, o termo
“Bíblia”, que usamos no singular, vem do
plural grego ta biblia ta hagia – “os
livros sagrados”. A tradição religiosa
sempre sustentou que cada livro bíblico
foi escrito por um autor claramente
identificável. Os 5 primeiros livros do
Antigo Testamento (que no judaísmo se
chamam Torá e no catolicismo Pentateuco)
teriam sido escritos pelo profeta Moisés
por volta de 1200 a.C. Os Salmos seriam
obra do rei Davi, o autor de Juízes
seria o profeta Samuel, e assim por
diante. Hoje, a maioria dos estudiosos
acredita que os livros sagrados foram um
trabalho coletivo. E há uma boa
explicação para isso.
As histórias da Bíblia derivam de lendas
surgidas na chamada Terra de Canaã,
que hoje corresponde a Líbano,
Palestina, Israel e pedaços da Jordânia,
do Egito e da Síria. Durante séculos
acreditou-se que Canaã fora dominada
pelos hebreus. Mas descobertas recentes
da arqueologia revelam que, na maior
parte do tempo, Canaã não foi um Estado,
mas uma terra sem fronteiras habitada
por diversos povos – os hebreus eram
apenas uma entre muitas tribos que
andavam por ali. Por isso, sua cultura e
seus escritos foram fortemente
influenciadas por vizinhos como os
cananeus, que viviam ali desde o ano
5000 a.C. E eles não foram os únicos a
influenciar as histórias do livro
sagrado.
As raízes da árvore bíblica também
remontam aos sumérios, antigos
habitantes do atual Iraque, que no 3o
milênio a.C. escreveram a Epopéia de
Gilgamesh. Essa história,
protagonizada pelo semideus Gilgamesh,
menciona uma enchente que devasta o
mundo (e da qual algumas pessoas se
salvam construindo um barco). Notou
semelhanças com a Bíblia e seus textos
sobre o dilúvio, a arca de Noé, o fato
de Cristo ser humano e divino ao mesmo
tempo? Não é mera coincidência. “A
Bíblia era uma obra aberta, com
influências de muitas culturas”, afirma
o especialista em história antiga
Anderson Zalewsky Vargas, da UFRGS.
Foi entre os séculos 10 e 9 a.C. que os
escritores hebreus começaram a colocar
essa sopa multicultural no papel. Isso
aconteceu após o reinado de Davi, que
teria unificado as tribos hebraicas num
pequeno e frágil reino por volta do ano
1000 a.C. A primeira versão das
Escrituras foi redigida nessa época e
corresponde à maior parte do que hoje
são o Gênesis e o Êxodo. Nesses livros,
o tema principal é a relação passional
(e às vezes conflituosa) entre Deus e os
homens. Só que, logo no começo da
Beeblia, já existiu uma divergência
sobre o papel do homem e do Senhor na
história toda. Isso porque o personagem
principal, Deus, é tratado por dois
nomes diferentes.
Em alguns trechos ele é chamado pelo
nome próprio, Yahweh – traduzido em
português como Javé ou Jeová. É um
tratamento informal, como se o autor
fosse íntimo de Deus. Em outros pontos,
o Todo-Poderoso é chamado de Elohim, um
título respeitoso e distante (que pode
ser traduzido simplesmente como “Deus”).
Como se explica isso? Para os
fundamentalistas, não tem conversa:
Moisés escreveu tudo sozinho e usou os
dois nomes simplesmente porque quis. Só
que um trecho desse texto narra a morte
do próprio Moisés. Isso indica que ele
não é o único autor. Os historiadores e
a maioria dos religiosos aceitam outra
teoria: esses textos tiveram pelo menos
outros dois editores.
Acredita-se que os trechos que falam de
Javé sejam os mais antigos, escritos
numa época em que a religiosidade era
menos formal. Eles contêm uma passagem
reveladora: antes da criação do mundo,
“Yahweh não derramara chuva sobre a
terra, e nem havia homem para lavrar o
solo”. Essa frase, “não havia homem para
lavrar o solo”, indica que, na primeira
versão da Bíblia, o homem não era apenas
mais uma criação de Deus – ele
desempenha um papel ativo e fundamental
na história toda. “Nesse relato, o homem
é co-criador do mundo”, diz o teólogo
Humberto Gonçalves, do Centro Ecumênico
de Estudos Bíblicos, no Rio Grande do
Sul.
Pelo nome que usa para se referir a Deus
(Javé), o autor desses trechos foi
apelidado de Javista. Já o outro autor,
que teria vivido por volta de 850 a.C.,
é apelidado de Eloísta. Mais sisudo e
religioso, ele compôs uma narrativa
bastante diferente. Ao contrário do
Deus-Javé, que fez o mundo num único
dia, o Deus-Elohim levou 6 (e descansou
no 7o). Nessa história, a criação é um
ato exclusivo de Deus, e o homem surge
apenas no 6o dia, junto aos animais.
Tempos mais tarde, os dois relatos foram
misturados por editores anônimos – e a
narrativa do Eloísta, mais comportada,
foi parar no início das Escrituras.
Começando por aquela frase incrivelmente
simples e poderosa, notória até entre
quem nunca leu a Bíblia: “E, no início,
Deus criou o céu e a terra...”
Em 589 a.C., Jerusalém foi arrasada
pelos babilônios, e grande parte da
população foi aprisionada e levada para
o atual Iraque. Décadas depois, os
hebreus foram libertados por Ciro,
senhor do Império Persa – um
conquistador “esclarecido”, que tinha
tolerância religiosa. Aos poucos, os
hebreus retornaram a Canaã – mas com sua
fé transformada. Agora os sacerdotes
judaicos rejeitavam o politeísmo e
diziam que Javé era o único e absoluto
deus do Universo. “O monoteísmo pode ter
surgido pelo contato com os persas – a
religião deles, o masdeísmo, pregava a
existência de um deus bondoso,
Ahura Mazda, em constante combate
contra um deus maligno, Arimã.
Essa noção se reflete até na idéia
cristã de um combate entre
Deus e o
Diabo”, afirma Zalewsky, da
UFRGS.
A versão final do Pentateuco surgiu por
volta de 389 a.C. Nessa época, um
religioso chamado Esdras liderou
um grupo de sacerdotes que mudaram
radicalmente o judaísmo – a começar por
suas escrituras. Eles editaram os livros
anteriores e escreveram a maior parte
dos livros Deuteronômio, Números,
Levítico e também um dos pontos altos da
Bíblia: os 10 Mandamentos. Além de
afirmar o monoteísmo sem sombra de
dúvidas (“amarás a Deus acima de todas
as coisas” é o primeiro mandamento), a
reforma conduzida por Esdras impunha
leis religiosas bem rígidas, como a
proibição do casamento entre hebreus e
não-hebreus. Algumas das leis
encontradas no Levítico se assemelham à
ética moderna dos direitos humanos: “Se
um estrangeiro vier morar convosco, não
o maltrates. Ama-o como se fosse um de
vós”.
Outras passagens, no entanto, descrevem
um Senhor belicoso, vingativo e
sanguinário, que ordena o extermínio de
cidades inteiras – mulheres e crianças
incluídas. “Se a religião prega a
compaixão, por que os textos sagrados
têm tanto ódio?”, pergunta a
historiadora americana Karen Armstrong,
autora de um novo e provocativo estudo
sobre a Bíblia. Para os especialistas, a
violência do Antigo Testamento é fruto
dos séculos de guerras com os assírios e
os babilônios. Os autores do livro
sagrado foram influenciados por essa
atmosfera de ódio, e daí surgiram as
histórias em que Deus se mostra bastante
violento e até cruel. Os redatores da
Bíblia estavam extravasando sua
angústia.
Por volta do ano 200 a.C., o cânone
(conjunto de livros sagrados) hebraico
já estava finalizado e começou a se
alastrar pelo Oriente Médio. A primeira
tradução completa do Antigo Testamento é
dessa época. Ela foi feita a mando do
rei Ptolomeu 2o em Alexandria, no Egito,
grande centro cultural da época. Segundo
uma lenda, essa tradução (de hebraico
para grego) foi realizada por 72 sábios
judeus. Por isso, o texto é conhecido
como Septuaginta. Além da
tradução grega, também surgiram versões
do Antigo Testamento no idioma aramaico
– que era uma espécie de língua franca
do Oriente Médio naquela época.
Dois séculos mais tarde, a Bíblia em
aramaico estava bombando: ela era a mais
lida na Judéia, na Samária e na Galiléia
(províncias que formam os atuais
territórios de Israel e da Palestina).
Foi aí que um jovem judeu, grande
personagem desta história, começou a se
destacar. Como Sócrates, Buda e outros
pensadores que mudaram o mundo, Jesus de
Nazaré nada deixou por escrito – os
primeiros textos sobre ele foram
produzidos décadas após sua morte.
E o cristianismo já nasceu perseguido:
por se recusarem a cultuar os deuses
oficiais, os cristãos eram considerados
subversivos pelo Império Romano, que
dominava boa parte do Oriente Médio
desde o século 1 a.C. Foi nesse clima de
medo que os cristãos passaram a colocar
no papel as histórias de Jesus, que
circulavam em aramaico e também em coiné
– um dialeto grego falado pelos mais
pobres. “Os cristãos queriam compreender
suas origens e debater seus problemas de
identidade”, diz o teólogo Paulo
Nogueira, da Universidade Metodista de
São Paulo. Para fazer isso, criaram um
novo gênero literário: o evangelho. Esse
termo, que vem do grego evangélion
(“boa-nova”), é um tipo de narrativa
religiosa contando os milagres, os
ensinamentos e a vida do Messias.
A maioria dos evangelhos escritos nos
séculos 1 e 2 desapareceu. Naquela
época, um “livro” era um amontoado de
papiros avulsos, enrolados em forma de
pergaminho, podendo ser facilmente
extraviados e perdidos. Mas alguns
evangelhos foram copiados e recopiados à
mão, por membros da Igreja. Até que, por
volta do século 4, tomaram o formato de
códice – um conjunto de folhas de couro
encadernadas, ancestral do livro
moderno. O problema é que, a essa altura
do campeonato, gerações e gerações de
copiadores já haviam introduzido
alterações nos textos originais – seja
por descuido, seja de propósito. “Muitos
erros foram feitos nas cópias, erros que
às vezes mudaram o sentido dos textos.
Em certos casos, tais erros foram também
propositais, de acordo com a teologia do
escrivão”, afirma o padre e
teólogo Luigi Schiavo, da Universidade
Católica de Goiás. Quer ver um exemplo?
Sabe aquela famosa cena em que Jesus
salva uma adúltera prestes a ser
apedrejada? De acordo com especialistas,
esse trecho foi inserido no Evangelho de
João por algum escriba, por volta do
século 3. Isso porque, na época, o
cristianismo estava cortando seu cordão
umbilical com o judaísmo. E apedrejar
adúlteras é uma das leis que os
sacerdotes-escritores judeus haviam
colocado no Pentateuco. A introdução da
cena em que Jesus salva a adúltera passa
a idéia de que os ensinamentos de Cristo
haviam superado a Torá – e, portanto, os
cristãos já não precisavam respeitar ao
pé da letra todos os ensinamentos
judeus.
A julgar pelo último livro da Bíblia
cristã, o Apocalipse (que descreve o fim
do mundo), o receio de ter suas
narrativas “editadas” era comum entre os
autores do Novo Testamento. No versículo
18, lê-se uma terrível ameaça: “Se
alguém fizer acréscimos às páginas deste
livro, Deus o castigará com as pragas
descritas aqui”. Essa ameaça reflete bem
o clima dos primeiros séculos do
cristianismo: uma verdadeira baderna
teológica, com montes de seitas
defendendo idéias diferentes sobre Deus
e o Messias. A seita dos docetas,
por exemplo,
acreditava que Jesus não teve um corpo
físico. Ele seria um espírito, e
sua crucificação e morte não passariam –
literalmente – de ilusão de ótica. Já os
ebionistas
acreditavam que Jesus não nascera Filho
de Deus, mas fora adotado, já adulto,
pelo Senhor. A primeira tentativa
de organizar esse caos das Escrituras
ocorreu por volta de 142 – e o
responsável não foi um clérigo, mas um
rico comerciante de navios chamado
Marcião.
A Bíblia segundo Marcião
Ele nasceu na atual Turquia, foi para
Roma, converteu-se ao cristianismo,
virou um teólogo influente e resolveu
montar sua própria seleção de textos
sagrados. A Bíblia de Marcião era bem
diferente da que conhecemos hoje. Isso
porque ele simpatizava com uma seita
cristã hoje desaparecida, o
gnosticismo.
Para os gnósticos, o Deus do Velho
Testamento não era o mesmo que enviara
Jesus – na verdade, as duas divindades
seriam inimigas mortais. O Deus
hebraico era monstruoso e sanguinário, e
controlava apenas o mundo material. Já o
universo espiritual seria dominado por
um Deus bondoso, o pai de Jesus.
A Bíblia editada
por Marcião continha apenas o Evangelho
de João, 11 cartas de Paulo e nenhuma
página do Velho Testamento. Se as
idéias de Marcião tivessem triunfado,
hoje as histórias de Adão e Eva no
paraíso, a arca de Noé e a travessia do
mar Vermelho não fariam parte da cultura
ocidental. Mas, por volta de 170, o
gnosticismo foi declarado proibido pelas
autoridades eclesiásticas, e o
primeiro editor da Bíblia cristã acabou
excomungado.
Roma, até então pior inimiga dos
cristãos, ia se rendendo à nova fé.
Em 313, o imperador romano Constantino
se aliou à Igreja. Ele pretendia
usar a força crescente da nova religião
para fortalecer seu império. Para isso,
no entanto, precisava de uma fé una e
sólida. A pressão de Constantino levou
os mais influentes bispos cristãos a se
reunirem no Concílio de Nicéia, em 325,
para colocar ordem na casa de Deus. Ali,
surgiu o cânone do cristianismo – a
lista oficial de livros que, segundo a
Igreja, realmente haviam sido inspirados
por Deus.
“A escolha também era política. Um
grupo afirmou seu poder e autoridade
sobre os outros”, diz o padre Luigi.
Esse grupo era o dos cristãos
apostólicos, que ganharam poder ao se
aliar com o Império Romano. Os
apostólicos eram, por assim dizer, o
“partido do governo”. E por isso
definiram o que iria entrar, ou ser
eliminado, das Escrituras.
Eles escolheram os evangelhos de Marcos,
Mateus, Lucas e João para representar a
biografia oficial de Cristo, enquanto as
invenções dos docetas, dos ebionistas e
de outras seitas foram excluídas, e seus
autores declarados hereges. Os textos
excluídos do cânone ganharam o nome de
“apócrifos” – palavra que vem do grego
apocrypha, “o que foi ocultado”. A
maioria dos apócrifos se perdeu – afinal
de contas, os escribas da Igreja não
estavam interessados em recopiá-los para
a posteridade. Mas, com o surgimento da
arqueologia, no século 19, pedaços
desses textos foram encontrados nas
areias do Oriente Médio. É o caso de um
polêmico texto encontrado em 1886 no
Egito. Ele é assinado por uma certa
“Maria” que muitos acreditam ser a
Madalena, discípula de Jesus, presente
em vários trechos do Novo Testamento. O
evangelho atribuído a ela é bem
feminista: Madalena é descrita como uma
figura tão importante quanto Pedro e os
outros apóstolos. Nos primórdios do
cristianismo, as mulheres eram aceitas
no clero – e eram, inclusive,
consideradas capazes de fazer profecias.
Foi só no século 3 que o sacerdócio
virou monopólio masculino, o que
explicaria a censura da apóstola e seu
testemunho. Aliás, tudo indica que
Madalena não foi prostituta – idéia que
teria surgido por um erro na
interpretação do livro sagrado.
No ano 591, o papa
Gregório fez um sermão dizendo que
Madalena e outra mulher, também citada
nas Escrituras e essa sim ex-pecadora,
na verdade seriam a mesma pessoa
(em 1967, o
Vaticano desfez o equívoco, limpando a
reputação de Maria).
Na evolução da Bíblia, foram aparecendo
vários trechos machistas – e suspeitos.
É o caso de uma passagem atribuída ao
apóstolo Paulo: “A mulher aprenda (...)
com toda a sujeição. Não permito à
mulher que ensine, nem que tenha domínio
sobre o homem (...) porque Adão foi
formado primeiro, e depois Eva”. É
provável que Paulo jamais tenha escrito
essas palavras – porque, na época em que
ele viveu, o cristianismo não pregava a
submissão da mulher. Acredita-se que
essa parte tenha sido adicionada por
algum escriba por volta do século 2.
Após a conversão do imperador
Constantino, o eixo do cristianismo se
deslocou do Oriente Médio para Roma. Só
que, para completar a romanização da fé,
faltava um passo: traduzir a palavra de
Deus para o latim. A missão coube ao
teólogo Eusebius Hyeronimus, que mais
tarde viria a ser canonizado com o nome
de são Jerônimo. Sob ordens do papa
Damaso, ele viajou a Jerusalém em 406
para aprender hebraico e traduzir o
Antigo e o Novo Testamento. Não foi nada
fácil: o trabalho durou 17 anos.
Daí saiu a Vulgata, a Bíblia latina, que
até hoje é o texto oficial da Igreja
Católica. Essa é a Bíblia que todo mundo
conhece. “A Vulgata foi o alicerce da
Igreja no Ocidente”, explica o padre
Luigi. Ela é tão influente, mas tão
influente, que até seus erros de
tradução se tornaram clássicos. Ao
traduzir uma passagem do Êxodo que
descreve o semblante do profeta Moisés,
são Jerônimo escreveu em latim:
cornuta esse
facies sua, ou seja, “sua
face tinha chifres”. Esse detalhe
esquisito foi levado a sério por
artistas como Michelangelo – sua famosa
escultura representando Moisés, hoje
exposta no Vaticano, está ornada com
dois belos corninhos. Tudo porque
Jerônimo tropeçou na palavra hebraica
karan, que pode significar tanto “chifre”
quanto “raio de
luz”. A tradução correta está na
Septuaginta: o profeta tinha o rosto
iluminado, e não chifrudo. Apesar de
erros como esse, a Vulgata reinou
absoluta ao longo da Idade Média –
durante séculos, não houve outras
traduções.
O único jeito de disseminar o livro
sagrado era copiá-lo à mão, tarefa
realizada pelos monges copistas. Eles
raramente saíam dos mosteiros e passavam
a vida copiando e catalogando
manuscritos antigos. Só que, às vezes,
também se metiam a fazer o papel de
autores.
Após a queda do Império Romano, grande
parte da literatura da Antiguidade grega
e romana se perdeu – foi graças ao
trabalho dos monges copistas que livros
como a Ilíada e a Odisséia chegaram até
nós. Mas alguns deles eram meio
malandros: costumavam interpolar textos
nas Escrituras Sagradas para agradar a
reis e imperadores. No século 15, por
exemplo, monges espanhóis trocaram o
termo “babilônios” por “infiéis” no
texto do Antigo Testamento – um truque
para atacar os muçulmanos, que
disputavam com os espanhóis a posse da
península Ibérica.
Escrituras em série
Tudo isso mudou após a invenção da
imprensa, em 1455. Agora ninguém mais
dependia dos copistas para multiplicar
os exemplares da Bíblia. Por isso, o
grande foco de mudanças no texto sagrado
passou a ser outro: as traduções. Em
1522, o pastor Martinho Lutero usou a
imprensa para divulgar em massa sua
tradução da Bíblia, que tinha feito
direto do hebraico e do grego para o
alemão. Era a primeira vez que o texto
sagrado era vertido numa língua moderna
– e a nova versão trouxe várias
mudanças, que provocavam a Igreja (veja
quadro na pág. 65). Logo depois um
britânico, William Tyndale, ousou
traduzir a Bíblia para o inglês. No Novo
Testamento, ele traduziu a palavra
ecclesia por “congregação”, em vez de
“igreja”, o termo preferido pelas
traduções católicas. A mudança nessa
palavrinha era um desafio ao poder dos
papas: como era protestante, Tyndale
tinha suas diferenças com a Igreja.
Resultado? Ele foi queimado como herege
em 1536. Mas até hoje seu trabalho é
referência para as versões inglesas do
livro sagrado.
A Bíblia chegou ao nosso idioma em 1753
– quando foi publicada sua primeira
tradução completa para o português,
feita pelo protestante João Ferreira de
Almeida. Hoje, a tradução considerada
oficial é a feita pela Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e
lançada em 2001. Ela é considerada mais
simples e coloquial que as traduções
anteriores. De lá para cá, a Bíblia
ganhou o mundo e as línguas. Já foi
vertida para mais de 300 idiomas e
continua um dos livros mais influentes
do mundo: todos os anos, são publicadas
11 milhões de cópias do texto integral,
e 14 milhões só do Novo Testamento.
Depois de tantos séculos de versões e
contra-versões, ainda não há consenso
sobre a forma certa de traduzi-la.
Alguns buscam traduções mais próximas do
sentido e da época original – como as
passagens traduzidas do hebraico pelo
lingüista David Rosenberg na obra O
Livro de J, de 1990. Outros acham que a
Bíblia deve ser modernizada para atrair
leitores. O lingüista Eugene Nida, que
verteu a Bíblia na década de 1960,
chegou ao extremo de traduzir a palavra
“sestércios”, a antiga moeda romana, por
“dólares”. Em 2008, duas versões
igualmente ousadas estão agitando as
Escrituras: a Green Bible (“Bíblia
Verde”, ainda sem versão em português),
que destaca 1 000 passagens relacionadas
à ecologia – como o momento em que Jó
fala sobre os animais –, e a Bible
Illuminated (‘Bíblia Iluminada”, em
inglês), com design ultramoderno e fotos
de celebridades como Nelson Mandela e
Angelina Jolie.
A Bíblia se transforma, mas uma coisa
não muda: cada pessoa, ou grupo de
pessoas, a interpreta de uma maneira
diferente – às vezes, com propósitos
equivocados. Em pleno século 21,
pastores fundamentalistas tentam
proibir o ensino
da Teoria da Evolução nas escolas dos
EUA, sendo que a própria Igreja
aceita as teorias de Darwin desde a
década de 1950. Líderes como
o pastor Jerry
Falwell defendem o retorno da escravidão
e o apedrejamento
de adúlteros, e no Oriente Médio
rabinos
extremistas usam trechos da Torá para
justificar a ocupação de terras árabes.
Por quê? Porque está na Bíblia, dizem os
radicais. Não é nada disso. Hoje, os
principais estudiosos afirmam que a
Bíblia não deve ser lida como um manual
de regras literais – e sim como o relato
da jornada, tortuosa e cheia de
percalços, do ser humano em busca de
Deus. Porque esse é, afinal, o
verdadeiro sentido dessa árvore de
histórias regada há 3 mil anos por
centenas de mãos, cabeças e corações
humanos: a crença num sentido
transcendente da existência.
Top 5 pragas
I. Quando os hebreus eram escravos no
Egito, o Senhor enviou 10 pragas contra
os opressores do povo escolhido. A
primeira delas foi transformar toda a
água do país em sangue (Êxodo 7:21).
II. Como o faraó não libertava os
hebreus, o Senhor radicalizou: matou,
numa só noite, todos os primogênitos do
Egito. “E houve grande clamor no país,
pois não havia casa onde não houvesse um
morto” (Êxodo 12:30).
III. Desgostoso com os pecados de Sodoma
e Gomorra, Deus destruiu as duas cidades
com uma chuvarada de fogo e enxofre
(Gênesis 19:24).
IV. Para punir as desobediências do rei
Davi, o Senhor enviou uma doença não
identificada, que matou 70 mil homens e
200 mil mulheres e crianças (2 Samuel,
24: 1-13).
V. Quando a nação dos filisteus roubou a
arca da Aliança, onde estavam guardados
os 10 Mandamentos, o Senhor os castigou
com um surto de hemorróidas letais. “Os
intestinos lhes saíam para fora e
apodreciam” (1 Samuel 5:9) .
Os possíveis autores
1200 a.C. - Moisés
Segundo uma lenda judaica, a Torá (obra
precursora da Bíblia) teria sido escrita
por ele. Mas há controvérsias, pois
existe um trecho da Torá que diz:
“Moisés morreu e foi sepultado pelo
Senhor próximo a Fegor”. Ora, se Moisés
é o autor do texto, como ele poderia ter
relatado a própria morte?
1000 a.C. - Javista
Viveu na corte do rei Davi, no antigo
reino de Israel, e era um aristocrata.
Ou, quem sabe, uma aristocrata: para o
crítico Harold Bloom, Javista era
mulher. Isso porque os personagens
femininos da Bíblia (Eva e Sara, por
exemplo) são muito mais elaborados que
os masculinos.
Século 4 a.C. - Esdras
Líder religioso que reformou o judaísmo
e possível editor do Pentateuco (5
primeiros livros da Bíblia). Vários
trechos bíblicos editados por ele pregam
a violência: “Derrubareis todos os
altares dos povos que ides expropriar,
queimareis as casas, e mudareis os nomes
desses lugares”.
Século 1 - Paulo
Nunca viu Cristo pessoalmente, mas foi o
primeiro a escrever sobre ele. Nascido
na Turquia, Paulo viajou e fundou
igrejas pelo Oriente Médio. Ele escrevia
cartas para essas igrejas, contando a
incrível aventura de um tal Jesus – que
foi crucificado e ressuscitou.
Século 1 - Maria Madalena
Estava entre os discípulos favoritos de
Jesus – e, diferentemente do que o
Vaticano sustentou durante séculos,
nunca foi prostituta. Pelo contrário:
tinha influência no cristianismo e é a
suposta autora do Apócrifo de Maria, um
livro em que fala sobre sua relação
pessoal com Jesus e divulga os
ensinamentos dele.
Século 1 - João
Escreveu o 4o evangelho do Novo
Testamento (João) e o Livro do
Apocalipse, o último da Bíblia. Para
ele, Jesus não é apenas um messias – é
um ser sobrenatural, a própria
encarnação de Deus. Essa interpretação
mística marca a ruptura definitiva entre
judaísmo e fé cristã.
Século 5 - Jerônimo
Nascido no território da atual Hungria,
este padre foi enviado a Jerusalém com
uma missão importantíssima: traduzir a
Bíblia do grego para o latim. Cometeu
alguns erros, como dizer que o profeta
Moisés tinha chifres (uma confusão com a
palavra hebraica karan, que na verdade
significa “raio de luz”).
Século 16 - William Tyndale
Possuir trechos da Bíblia em qualquer
idioma que não fosse o latim era crime.
O professor Tyndale não quis nem saber,
traduziu tudo para o inglês, e acabou na
fogueira. Mas seu trabalho foi
incrivelmente influente: é a base da
chamada “Bíblia do Rei James”, até hoje
a tradução mais lida nos países de
língua inglesa.
Top 5 matanças
I. Um grupo de meninos malcriados zombou
da calvície do profeta Eliseu. Pra quê!
Na hora, dois ursos famintos saíram de
um bosque e comeram as crianças (2 Reis
2:24).
II. Cercado por um exército de
filisteus, o herói Sansão apanhou a
mandíbula de um jumento morto. Usando o
osso como arma, ele massacrou mil
inimigos (Juízes, 15:16).
III. O profeta Elias convidou os
sacerdotes do deus Baal para uma
competição de orações. Era uma
armadilha: Elias incitou o povo, que
linchou os pagãos (1 Reis 18:40).
VI. Os judeus haviam perdido a fé e
começaram a adorar um bezerro de ouro.
Moisés ficou furioso e mandou sacerdotes
levitas matar 3 mil infiéis (Êxodo
32:19).
V. A nação dos amalequitas disputava o
território de Canaã com os judeus. O
Senhor ordena que todos os amalequitas
sejam chacinados (1 Samuel 15:18).
Top 5 sacanagens
I. Após a destruição de Sodoma, os
únicos sobreviventes eram Ló e suas duas
filhas. As filhas de Lot embebedaram o
pai e tiveram com ele a noite mais
incestuosa da Bíblia (Gênesis 19:31).
II. O Cântico dos Cânticos, atribuído ao
rei Salomão, é altamente erótico. Um dos
trechos: “Teu corpo é como a palmeira, e
teus seios, como cachos de uvas”
(Cânticos 7:7).
III. Os anjos do Senhor tiveram chamegos
ilícitos com mulheres mortais. “Vendo os
Filhos de Deus que as filhas dos homens
eram formosas, tomaram-nas como
mulheres, tantas quanto desejaram”
(Gênesis 6:2).
IV. A Bíblia diz que os antigos egípcios
eram muito bem-dotados. Após a fuga para
Canaã, a judia Ooliba tem
saudades dos tempos em que se prostituía
no Egito. Tudo porque “seus amantes
(...) ejaculavam como cavalos” (Ezequiel
23:20).
V. O hebreu Onã casou com a viúva de seu
irmão, mas não conseguia fazer sexo com
ela – preferia o prazer solitário. Do
nome dele vem o termo “onanismo”, que
significa masturbação (Gênesis 38:9).
As história da história
Como o livro sagrado evoluiu ao longo
dos tempos
Tanach - Século 5 a.C.
É a Bíblia judaica, e tem 3 livros: Torá
(palavra hebraica que significa “lei”),
Nebiim (“profetas”) e Ketuvim
(“escritos”). É parecida com a Bíblia
atual, pois os católicos copiaram seus
escritos. Contém as sementes do
monoteísmo e da ética religiosa, mas
também pregações de violência. A
primeira das bíblias tem trechos
ambíguos e misteriosos – algumas
passagens dão a entender que Javé não é
o único deus do Universo.
Septuaginta - Século 3 a.C.
O Oriente Médio era dominado pelos
gregos e pelos macedônios. Muitos judeus
viviam em cidades de cultura grega, como
Alexandria, e desejavam adaptar sua
religião aos novos tempos. Diz a lenda
que Ptolomeu, rei do Egito, reuniu um
grupo de 72 sábios judeus para traduzir
a Tanach – e fizeram tudo em 72 dias.
Por isso, o resultado é conhecido como
Septuaginta. Inclui textos que não
constam da Tanach.
Novo Testamento - Século 1
A língua do Antigo Testamento é o
hebraico, mas o Novo Testamento foi
escrito num dialeto grego chamado coiné.
Contém os relatos sobre vida, milagres,
morte e ressurreição de Jesus – os
evangelhos. Em alguns trechos, vai
deixando evidente a divergência entre
cristianismo e judaísmo. É o caso, por
exemplo, do Evangelho de João, em que
Jesus é descrito como uma encarnação de
Deus (coisa na qual os judeus não
acreditavam).
Católica - Século 4
Seus autores decidiram incluir 7 livros
que os judeus não reconheciam. São os
chamados Deuterocanônicos: Tobias,
Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruque,
Macabeus 1 e 2 (mais trechos dos livros
Daniel e Ester). A Bíblia católica bate
na tecla do monoteísmo: a palavra
hebraica Elohim, usada na Tanach
para designar a divindade, é o plural
de El, um deus
cananeu. Mas foi traduzida no
singular e virou “Senhor”.
Ortodoxa - Por volta do século 4
É baseada na Septuaginta, mas também
inclui livros considerados apócrifos por
católicos e protestantes: Esdras 1,
Macabeus 3 e 4 e o Salmo 151. A tradução
é mais exata (nesta Bíblia, Moisés nunca
teve chifres, um erro de tradução
introduzido pela Bíblia latina), e os
escritos não são levados ao pé da letra:
para os ortodoxos, o que conta são as
interpretações do texto bíblico, feitas
por teólogos ao longo dos séculos.
Protestante - Século 16
Ao traduzir a Bíblia para o alemão,
Martinho Lutero excluiu os livros
Deuterocanônicos e mudou algumas coisas.
Um exemplo é a palavra grega
metanoia, que na Bíblia católica
significa “fazer penitência” – uma
referência à confissão dos pecados, um
dos sacramentos católicos. Já Lutero
traduziu metanoia como “reviravolta”.
Para ele, confessar os pecados era
inútil. O importante era transformar a
vida pela fé.
Top 5 milagres
I. O maior de todos os milagres divinos
foi o primeiro: a Criação do mundo, pelo
poder da palavra. “E Deus disse: que
haja luz. E houve luz” (Gênesis 1:3).
II. Para dar-lhe uma amostra de seus
poderes, o Senhor leva Ezequiel a um
campo cheio de esqueletos – e os traz de
volta à vida. “O vento do Senhor soprou
neles, e viveram” (Ezequiel, 37; 1-28).
III. Graças à benção divina, o herói
Sansão tinha a força de muitos homens.
Certa vez, foi atacado por um leão. “O
espírito do Senhor deu-lhe poder, e
Sansão destroçou a fera com as próprias
mãos, como se matasse um cabrito”
(Juízes 14:6).
IV. Josué liderava uma batalha contra os
amalequitas, mas o Sol estava se pondo.
Como não queria lutar no escuro, o
hebreu pediu ajuda divina – e o Sol
ficou no céu (Josué 10:13).
V. Para fugir do Egito, os hebreus
precisavam atravessar o mar Vermelho. E
não tinham navios. Moisés ergueu seu
bastão e as águas do mar se dividiram.
Após a passagem dos hebreus, o profeta
deixou que as ondas se fechassem sobre
os exércitos do faraó (Êxodo 14; 21-30).
Para saber mais:
A Bíblia: Uma Biografia
Karen Armstrong, Jorge Zahar Editora,
2007.
Who Wrote the Bible?
Richard Elliott Friedman, HarperOne,
1997.
<http://super.abril.com.br/religiao/quem-escreveu-biblia-447888.shtml>